domingo, 28 de julho de 2019

Descrições fenomenológicas 43. Uma rua do passado

Esteban Vicente, Series Alison: Armonía, 1976

Uma paliçada separa um jardim familiar do passeio. Vêem-se algumas árvores, canteiros de flores, sombras, estreitos caminhos por onde a família passará, ora para usufruir do pequeno paraíso, ora para superintender o cuidado que o jardineiro, contratado à hora, dará ao lugar. Depois, ergue-se o prédio, uma daquelas grandes casas citadinas que mais tarde serão divididas e transformadas em apartamentos, mas isso será muito depois. Na rua, ainda não se vêem automóveis, apenas uma ou outra tipoia e, de quando em vez, uma sege apressada, como se um destino longínquo aguardasse os ocupantes. O passeio é uma mistura de lajes brancas e de gravilha, rematado, no lado da estrada, ainda de macadame, por uma calçada estreita de pedra escura. A espaços iguais surgem candeeiros de iluminação pública, alimentados a gás, apontam para o céu, acusando-o de, chegada à noite, se demitir da obrigação de iluminar os homens, e, por essa omissão, eles, pobres artefactos humanos, se verem constrangidos a tomar-lhe o lugar e a fazer tão mal aquilo que, durante o dia, o céu faz de forma inexcedível. Ao longe, um grupo de pessoas, com os seus fatos dos finais do século XIX, conversam à sombra de uma árvore. Ouvem-se gargalhadas, palavras soltas, o burburinho de quem se diverte. Mais à frente, uma mulher, de vestido claro que lhe chega aos pés, com mangas em balão, cintado de forma generosa, para que os seios cobertos por folhos triunfem exuberantes diante dos olhos que para eles se voltem. Caminha apressada, passos firmes, segurando, na mão direita, uma sombrinha que lhe protege o chapéu na cabeça e vela o rosto, tingindo-o com um enigma, que talvez ninguém descobrirá. A pressa que os passos indiciam mostra a urgência que a move. Passa por ela um cão. Ouve-se rosnar e um súbito silêncio cai, enquanto a mulher desaparece no fim da rua.

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