quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

O PISA e as duas culturas


O que nos mostram os resultados do PISA (um programa internacional de avaliação de alunos; ver aqui)? Mais importante do que discutir sobre o desempenho dos alunos portugueses (e do sistema educativo português) é perceber a grande fractura cultural que o estudo torna patente. Esta fractura tem já uma forte componente política e perspectiva um futuro sombrio para o mundo ocidental. Como se pode verificar (ver aqui e aqui), os primeiros lugares são todos eles ocupados por regiões chinesas e Singapura. Também o Japão, com um desempenho menos brilhante na área da leitura, está no topo nas áreas das ciências e da matemática.

O problema reside na diferença de culturas entre estes países e regiões e os outros. Os resultados dos estudantes asiáticos devem-se a uma cultura de disciplina, esforço, rigor, propensão para enfrentar obstáculos e ultrapassá-los. Esta cultura é muito diferente daquela que reina em Portugal e muitos países de cultura ocidental. As virtudes da disciplina, do esforço e do rigor estão desvalorizadas perante uma cultura da gratificação imediata, da desistência perante obstáculos, da ausência de rigor. Argumentar-se-á que não são todos os alunos assim. É verdade, mas também é verdade que muitos são e que a cultura de exigência é mal vista por muitos alunos, muitos pais, parte significativa das sociedades ocidentais e até, de forma mais ou menos sub-reptícia, pela ideologia educativa que se apossou de muitos sistemas educativos ocidentais. Perante estas realidades, não é de espantar o contínuo crescimento da influência política dos povos asiáticos e o decréscimo persistente do peso dos europeus. É na escola que isso começa.

2 comentários:

  1. No geral concordo com a sua análise, mas há matizes que é necessário ter em conta.

    Há uns meses li um artigo muito extenso e muito exaustivo de um especialista em segurança aérea sobre os acidentes com dois aviões Boeing 737 na Indonésia e na Etiópia. Uma das causas foi a deficiência num sistema automático de segurança que foi evoluindo à medida que o avião evoluiu, tornando-se completamente diferente da sua versão inicial, sem que essa evolução tivesse sido supervisionada, como devia, pelas autoridades aeronáuticas norte-americanas. Durante décadas, os lobbies da indústria aeronáutica foram conseguindo que algumas competências da autoridade pública nesta matéria fossem delegadas na própria indústria, que acabou por se inspeccionar a si própria.

    Esta foi uma das causas dos dois desastres, tanto assim que esse modelo de avião ainda está proibido de voar, mas não fpoi a única.

    Outra causa foi a proliferação das transportadoras de baixo custo em países que se estão a desenvolver rapidamente, de modo que são concedidas licenças a transportadoras que não podem operar na Europa mas podem operar na Ásia e em África e que necessitam de formar a maior quantidade possível de pilotos no mínimo possível de tempo.

    E isto traz-nos à terceira causa, que tem a ver directamente com a diferença entre os sistemas educativos na Ásia e no Ocidente. Na Europa e na América exige-se que um piloto da aviação civil tenmha o "feeling" do avião, que seja capaz de o sentir quase como uma extenção do seu próprio corpo; por isso os pilotos são encorajados a pilotar pequenos aviões de recreio nos seus tempos livres.

    Mas a tradição educativa asiática centra-se nos factos brutos e desconfia de "feelings." Um piloto chinês ou indonésio conhece na perfeição os três ou quatro mil procedimentos contidos no manual para qualquer modelo, recebeu treino em simuladores e acumulou horas de voo (de um modo por vezes um pouco aldrabado, como pôr três tripulantes no cockpit em vez dos dois necessários).

    Conta o autor do artigo que teve dificuldade, quando foi conselheiro da autoridade aeronáutica chinesa, em convencer os seus anfitriões de que o domínio bruto de conhecimentos e competências directas, por mais exaustivo que seja, não é suficiente para formar um piloto. E eu pergunto a mim mesmo se será suficiente para formar um médico, um economista ou um juiz.

    Que o PISA avalia alguma coisa, avalia. E não tenho dúvida nenhuma de que é melhor avaliar alguma coisa do que não avaliar nada. Mas o que é que o PISA avalia exactamente? Todos nos lembramos de se falar muito, aqui há alguns anos, da vaga de suicídios entre os adolescentes japoneses e dos métodos pedagógicos brutais a que eram sujeitos para passar nos exames. Agora não falamos tanto no assunto - ou porque o problema se mitigou, ou porque mudou a nossa abordagem.

    Mas se há realmente duas culturas, e se o PISA está enviesado a favor de uma delas, será bom que o descubramos a tempo, sob pena de nos pormos a imitar o Japão para descobrirmos no fim que afinal esse modelo também tem as suas desvantagens e o nosso, que entretanto deitámos ao lixo, as suas vantagens.

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    1. Claro, há diferenças e não devemos imitar sistemas educativos que correspondem a culturas diferentes. No entanto, as virtudes necessárias a um bom desempenho educativo - o esforço, o espírito de sacrifício, etc. - não são estranhas à cultura ocidental tanto numa ambiência católica como reformada. Julgo que essas virtudes (laicizadas, claro) seriam úteis, mas estão com mercado baixo, digamos assim. Duvido que o PISA esteja enviesado a favor dos orientais, até pelo peso dos países ocidentais no processo. Há tempos, já não consigo recordar qual foi o TIMSS, argumentava-se que os asiáticos tinham melhores resultados, mas que isso se devia a uma aprendizagem estereotipada e pouco criativa. Parece que foram estudar os itens de matemática em que se exigia mais criatividade e, com espanto, descobriram que os melhores resultados eram dos mesmos asiáticos. Voltando à metáfora do feeling, esse feeling ou a criatividade parecem-me nascer de um grande esforço, como num desporto qualquer aquilo que parece criativo nasce de um longo exercício. O mesmo se passa na grande arte. Aliás, a própria virtude aristotélica - a excelência - estará ligada a esse exercitar-se longamente. Nós temos uma grande tradição do exercício como caminho da excelência, não precisamos de recorrer à asiática. Precisamos de não esquecer a nossa.

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