quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Descrições fenomenológicas 49. Um homem espera

Victor Vasarely, Serigraphie Originale. Avec une Etude de Imre Pan, 1960

A esquina do prédio assinala o cruzamento de duas ruas, daquelas que se encontram nas grandes cidades mas ao serem olhadas com demora lembram as das pequenas vilas de província, se não mesmo de algumas aldeias mais populosas, memórias que vêm agarradas aos corpos e às vidas que para ali foram transplantados. Nas paredes há cartazes anunciando toda a espécie de espectáculos. Teatro, circo, um combate de boxe, até uma representação da Manon Lescault. São assim as grandes cidades, onde em espaço tão próximo convivem espécies que ninguém se lembraria de sentar à mesma mesa. Voltada para a rua principal, existe uma farmácia, com a sua porta metálica e uma montra com produtos de beleza. Entram e saem pessoas com ar sofrido, silenciosas, pois a doença, sua ou de alguém próximo, precipita-as para um irremediável desconsolo, mesmo que o mal não seja mais que uma leve constipação, que o ponderado conselho do farmacêutico ajudará a debelar com brevidade. O trânsito passa indiferente e lento, lançando baforadas de fumo que se elevam, deixando um odor rançoso no ar. No passeio, exactamente na esquina do prédio, um homem especado espera. Tudo nele é anacrónico. O chapéu de abas bege com fita negra, o fato com colete, a gravata com um padrão que se terá usado há um século. A mão esquerda repousa no bolso das calças, enquanto a direita segura um cigarro, levando-o à boca para aspirar o fumo, que logo expele pelas narinas. Forma-se então uma pequena nuvem azulada pela luz. O homem olha fixamente para o fim da rua, indiferente aos clientes que entram e saem da farmácia. Quem ele espera, por certo, não precisará de medicamentos nem de conselhos sobre o estado de saúde. Por vezes, nota-se-lhe na face um rito de desapontamento, mas logo desaparece sob uma sombra de irritação, que acaba disfarçada por um sorriso paciente e uma bonomia jocosa. Parece saber que a espera será infrutífera, embora não possa deixar de se lhe entregar. Nunca é tentado a ver as horas no relógio de corrente adormecido num bolso do colete, como se a sua expectativa não fosse marcada pelo ritmo dos minutos e das horas, demasiado exíguo para assinalar o tempo que terá de aguardar. Quando o cigarro acaba, atira-o com indiferença para o chão, pisa-o com desdém e acende um novo com um fósforo retirado de uma pequena caixa de cartão. O olhar não se desprende do fim da rua, o corpo está grudado ao passeio. Da farmácia sai uma bela mulher, passa por ele, olha-o surpreendida e continua. Os olhos dele nem se movem presos à esperança daquilo que há-de vir do fim da rua e crescer para dentro do seu olhar nunca cansado de esperar.

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