sábado, 8 de fevereiro de 2020

Entre o redil e o prado


Num dos artigos anteriores falou-se aqui do discurso do rancor que se desenvolve em Portugal. Esse discurso não é específico do nosso país, atinge os países ocidentais, nos quais, por um motivo ou outro, lavra uma cólera não disfarçada, um desejo de confronto cada vez maior, onde a normal divergência política ameaçar radicalizar-se, dividindo os campos entre amigos e inimigos. A desconfiança na democracia é grande, mesmo nos velhos baluartes do regime democrático como os EUA e o Reino Unido. No entanto, o que está em jogo, no actual ambiente, é muito mais do que um regime político.

Observe-se o movimento da Terra plana. Contra todas as evidências científicas, cresce um pouco por todo o lado uma opinião que quer contestar a forma esférica da Terra. Se fosse um acontecimento isolado, seria risível. Não é. Mais antigo e movido por razões religiosas, está o criacionismo que pretende ser uma teoria alternativa ao evolucionismo das espécies. Os criacionistas não lutam apenas contra a evidência científica, pretendem abolir a distinção fundamental entre ciência e religião, um dos pilares da modernidade. Só mais um exemplo, entre outros possíveis. O movimento antivacinas não põe em causa apenas a ciência, mas também a saúde pública, fazendo reaparecer doenças mortais praticamente erradicadas.

O desprezo pela democracia liberal e pelos direitos dos indivíduos não pode ser desligado destes movimentos anticientíficos. O que está em jogo em tudo isto é um ataque cada vez mais concertado à herança do Iluminismo. Certamente que este é criticável em alguns dos seus aspectos. No entanto, ele moldou aquilo que era, até há pouco, o ideal que guiava as sociedades democráticas e civilizadas: sermos pessoas livres, responsáveis pelo seu destino, racionais, comprometidas com a verdade do conhecimento. Em todos estes movimentos, que ocupam já o poder em grandes países, há desprezo ou mesmo um ódio declarado aos valores das Luzes.

O vigor com que as plebes democráticas ululam pelas redes sociais contra o mundo intelectual é o sinal do perigo em que vivemos. Talvez o programa iluminista, ao democratizar-se, tenha cometido um erro crucial. Muitos seres humanos não querem ser livres, não suportam o peso da responsabilidade individual e o imperativo de pensar por si mesmo para gerir a sua vida. Precisam de um pastor que os guarde e os dirija com mão de ferro. Parte significativa destas revoltas contraculturais e destes movimentos inorgânicos contra a democracia liberal poderão não ser mais do que o balir dos rebanhos chamando o pastor que, arrimado ao cajado, os conduza entre o redil e o prado.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

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