segunda-feira, 4 de maio de 2020

Saber e poder


Um velho lugar-comum diz que saber é poder. O conjunto de facécias, a propósito da pandemia do COVID-9, vindas de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, torna evidente uma outra coisa, poder é saber. O saber científico torna-se irrelevante, quando não motivo de chacota, e a enunciação feita a partir do poder, por mais perigosa e contraditória que seja, torna-se saber. O presidente é que sabe, sublinha a claque. A claque, note-se, é composta por largas fatias do eleitorado. Esta experiência em dois grandes países pertencentes ao mundo ocidental atinge tanto o poder como o saber.

Quanto ao poder, as democracias funcionam muito bem se as suas normas informais são respeitadas pelas partes, se a sua natureza representativa e liberal é escrupulosamente observada. Fragilizam-se com facilidade, até se tornarem caricaturas perigosas, quando essas regras informais são implodidas por demagogos. As democracias enfrentam, neste momento, um desafio dos mais decisivos. Elas podem morrer nas mãos de tiranos e de elites obscenas, sob o aplauso de claques ululantes. Os regimes democráticos precisam de uma vacina que os imunize contra o poder contagiante do vírus da demagogia.

Também a ciência passa por um momento terrível. Refiro-me à intervenção do poder político, como nos casos já referidos, para desconsiderar as conclusões científicas e impor medidas ao arrepio do recomendado pelo conhecimento. Isto não é novidade, mas pensava-se que em democracia a autonomia da ciência seria respeitada, que o poder político evitaria entrar em choque com o saber científico. Havia precedentes. O decretar político do criacionismo como teoria científica ou a negação do impacto da acção humana na degradação ambiental do planeta. Agora, com a pandemia, podemos estar numa nova fase da escalada do poder para controlar a ciência e negá-la como lugar da verdade.

Durante muito tempo, o mundo ocidental ufanou-se de ser o lugar da civilização. Aliava a democracia política, a prosperidade, a relativa igualdade entre cidadãos e um saber científico livre e respeitado. O século XXI não lhe tem sido propício. Uma crescente desigualdade, ataques, cada vez mais fortes, à democracia dentro dos países democráticos e agora a própria ameaça à ciência e à sua autonomia. Imaginou-se que regressar a um tempo em que fanáticos controlavam aquilo que se podia saber era um delírio de mentes pessimistas, começamos a ter evidências de que não é assim e que a vida civilizada pode acabar. É muito perigoso quando o poder acha  que é nele que está o lugar do saber e da verdade.

[A minha crónica de Maio em A Barca]

2 comentários:

  1. Bem observado.
    Por vezes interrogo-me sobre se alguma vez o poder não achou que era nele que estava o lugar do saber.

    Um abraço

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    1. Em democracia temos a esperança (mas é mesmo só a esperança) de que o poder não se arvore no lugar do saber. Seria aquilo a que se chamaria humildade democrática, uma virtude pouco ou nada exercitada.

      Abraço

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