sábado, 1 de agosto de 2020

Anatole France, A Revolta dos Anjos


Estava-se no ano de 1914, um ano de má memória na história do mundo, quando foi publicado o romance A Revolta dos Anjos, de Anatole France. Não se trata de uma utopia ou, numa versão negativa, de uma distopia, nas quais se apreenda um aspecto particularmente sedutor ou decididamente repulsivo do poder político. Há, na verdade, uma prosaica meditação sobre o poder, mas ela é feita através de uma fantasiosa rebelião dos anjos contra o poder de Deus, a retomado do projecto luciferino de conquista do poder. A obra combina elementos teológicos com elementos políticos, como se fosse um sinal irónico sobre o que a história da Europa começaria a trazer com o advento das teologias políticas que foram ocupando, a partir de 1917, o poder em importantes países europeus.

No centro da intriga está uma decisão filosófica sobre a origem do conhecimento e da verdade. Não se trata, todavia, da querela entre racionalistas e empiristas, pendência marcadamente moderna, mas da questão sobre se o conhecimento autêntico tem uma origem divina ou humana, libelo trazido pelo fim daquilo a que se convencionou chamar, talvez com demasiada condescendência pelas opiniões renascentistas, Idade Média. Esse problema não é colocado por nenhum homem, mas por um anjo, um anjo da guarda de um dos protagonistas humanos da narrativa. A família Esparvieu tinha um hobby sério, demasiado sério. Coleccionava livros, não quaisquer livros, mas aqueles que de uma forma ou de outra se ligavam ao conhecimento, fossem de ciência, religião, filosofia. Fantasias da imaginação, como o romance, estavam excluídas. A colecção era, além de numerosa, muito valiosa, e acabou por exigir a contratação de um bibliotecário, o senhor Sariette, que fez dela e da sua ordem a razão da existência.

Os problemas começam quando súbitos e inexplicáveis desordenamentos e roubos de livros se sucedem. Se do ponto de vista físico não se encontram razões para estes acontecimentos, o mesmo não se passa do ponto de vista metafísico. Um dos Esparvieu, Maurice, tinha, para além de uma garçonnière, onde recebia as suas amantes, um anjo da guarda. E é após um encontro amoroso que o anjo se decide manifestar. A função aborrecia-o e decidiu, aproveitando-se da sua condição, estudar a biblioteca dos Esparvieu. Os acontecimentos inexplicáveis tinham uma explicação. A sede do conhecimento levou-o à luz e a luz conduziu-o à revolta contra o seu Senhor, que, via-o agora, era ávido de louvores, um tirano. Da blasfémia à revolta é um pequeno passo e o anjo demissionário de Maurice, como todo o revolucionário recém-convertido à revolução, deseja com ardor depor o tirano e colocar outro no seu lugar, neste caso Lúcifer, o anjo da luz.

Parte substancial da narrativa gira em torno da organização e preparação desse grande acontecimento que se haveria de passar no reino dos Céus, com o assalto final ao Castelo divino, deposição do Monarca absoluto e sua substituição pelo anjo da luz. O antigo anjo protector de Maurice começa a estabelecer, na Terra, ligações com os muitos anjos que tinham abandonado a suas antigas funções, dedicando-se a diversas ocupações, desde a conspiração terrorista até à jardinagem, passando pela sedução de mulheres. O descontentamento, como todos sabemos, não é uma prerrogativa dos homens. Antes deles, já os anjos se revoltaram com os resultados que todos sabemos. Os planos subversivos foram progredindo e tinham todas as possibilidades de saírem vencedores, não fora a recusa de Lúcifer em derrubar e ocupar o lugar de Deus.

A Revolta dos Anjos não é uma mera fantasia sobre o mundo do além e do aquém, uma espécie de antecipação da literatura fantástica que nos nossos dias tem tido tão grande fortuna. A obra é uma reflexão irónica sobre as ilusões políticas revolucionárias e algumas pretensões nascidas com o Iluminismo. A ironia nasce do próprio estatuto de verdade da obra romanesca. Recorde-se que na biblioteca dos Esparvieu, preocupada com o conhecimento e a verdade, o romance, produto da ficção, estava proscrito. Esta ironia não nega a possibilidade de haver uma verdade na ficção, mas questiona-a e, ao mesmo tempo, questiona, na economia do romance, se a verdade residirá no conhecimento proveniente da ciência, da filosofia e da teologia. Do ponto de vista da relação entre conhecimento e revolta política, isto é, entre o Iluminismo e Revolução, a ironia não é menor. O que torna o anjo da guarda de Maurice em revolucionário é o conhecimento. Este leva-o a negar Deus, ao mesmo tempo que O afirma ao pretender combatê-lo. Que a revolução não ocorra porque o futuro incumbente do trono se recuse a isso em nome da inutilidade do acontecimento, pois teria de desempenhar o papel daquele a quem derrubaria, não é a menor das ironias.

6 comentários:

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    1. 'Os deuses têm sede' foi um livro que me impressionou bastante pela crítica que um homem, que decididamente não era um conservador, faz aos acontecimentos extremados da Revolução Francesa. Pelo que vejo pelo seu excelente texto, este livro é também uma obra notável sobre o auqém e o além deste mundo. Vou tentar adquiri-lo

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    2. 'Os deuses têm sede' não li ainda. Já adquiri a tradução da Cavalo de Ferro, mas está em lista de espera. 'A Revolta dos Anjos' é bastante engraçado e, de certa maneira, também um reflexão política subtil. Foi o primeiro romance que de Anatole France e fiquei com vontade de ler mais.

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  2. Já pensei comprar este livro, a verdade é que depois temi-o, este postal voltou a despertar-me curiosidade por ele.

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    1. O livro é bastante engraçado e Anatole France escreve muito bem.

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