sábado, 15 de agosto de 2020

Emancipar a direita da esquerda?

Está em curso um conjunto de manobras para integrar o Chega, de André Ventura, numa possível alternativa de direita ao governo de centro-esquerda de António Costa. Ao mesmo tempo, assiste-se a diversas proclamações de pessoas ligadas à direita onde se afirma ser tempo de a direita ser aquilo que quer ser e não aquilo que a esquerda quer que ela seja. Em resumo, afirma-se que os diversos projectos políticos do centro-direita não representam a direita, mas aquilo que a esquerda permite que a direita seja. Este tipo de proclamações entusiasma algumas pessoas, talvez mais do que deveria, mas é um sintoma de um perigoso caminho de degradação da vida política e uma tentativa de romper o pacto que une os portugueses.

Imaginemos um cenário ao contrário. Imaginemos que radicais de esquerda afirmam que é tempo de a esquerda ser esquerda e de se libertar da tutela da direita. Fará sentido? Podemos crer que sim. É um facto que tanto o BE e o PCP, para não falar do PS, toleram, convivem e praticam políticas que são tradicionalmente de direita. Admitem a democracia liberal, a economia de mercado, a existência de propriedade privada dos meios de produção, a liberdade religiosa. Nenhum destes itens fez parte da esquerda original. O que aconteceu é que estes partidos, não deixando de ser de esquerda, sentiram necessidade de participar no consenso político para que a sociedade funcione. Militantes radicais de esquerda encontrarão razões para afirmar que a esquerda que existe – PS, PCP e BE – é apenas aquilo que a direita permite que ela seja. Podem afirmar que chegou a hora de a esquerda se libertar da tutela da direita.

O que certas correntes de direita – onde o Chega é um elemento central – pretendem é o mesmo que estes militantes radicais de esquerda: destruir o consenso tácito que permite à nossa sociedade funcionar e à generalidade das pessoas encontrar um lugar nela. É evidente que a direita democrática é condicionada pela esquerda, mas não o é mais nem menos do que a esquerda democrática o é pela direita. Este duplo condicionamento é o melhor que nos pode acontecer, pois evita que tenhamos de suportar o que há de pior na direita e o que há de pior na esquerda, e em ambas há coisas muito más. Quando o Chega fala em pôr fim à terceira República, a que nasceu com o 25 de Abril, propõe-se destruir o pacto que permite a Portugal ser um país politicamente moderado e civilizado, onde direita e esquerda se limitam mutuamente. Será que os portugueses querem que direita e esquerda se libertem da tutela uma da outra e fiquem entregues aos seus terríveis demónios?

6 comentários:

  1. Na minha opinião, o que há de pior na direita é muito pior do que o que há de pior na esquerda.

    Abraço

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    1. Não o creio. A capacidade de praticar o mal, a partir do poder, está democraticamente distribuído por ambas. Na esquerda, nem vale a pena lembrar o período do estalinismo. Bastam os exemplos dos Khmers vermelhos, no Cambodja, e a grande revolução cultural, na China. Para não falar no Terror na revolução francesa, levado a efeito pela esquerda da época. Em ambas, se não controladas, há um enorme potencial para o mal.

      Abraço

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  2. Exceptuando o Terror na revolução francesa, não sou capaz de ver os outros exemplos terríveis como uma prática de esquerda, não obstante serem normalmente 'interpretados' como tal.

    Abraço

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    1. Quando emergem os dois campos na Revolução Francesa, nem a direita nem a esquerda são particularmente atentas ou interessadas na questão democrática, mas na questão do poder. Julgo que tanto numa como noutra isso tem um valor matricial, que depois se vai adoçando, digamos assim. No entanto, tanto numa como noutra, caso lhes seja possível e a situação o propicie, não deixarão de recorrer à violência e usarão a lógica terrível do "nós" contra o "eles". O que acontece é que se tem considerado que essa lógica do "nós" contra o "eles" é mais imoral quando se trata de um assunto rácico, cultural, religioso do que quando se trata de uma questão de classe, mas creio que ambas as lógicas são absolutamente imorais, ainda por cima qualquer uma delas transborda muito facilmente para outros campos, como se pode observar no século XX.

      Abraço

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  3. Por norma a esquerda faz o mal em nome do bem. A direita faz sempre o mal pelo mal.
    Como escreveu o meu velho amigo Mário de Carvalho no seu mural, "Alarme!: Precatai-vos contra o perverso IST'ÉTUDAMESMACOISISMO"

    Abraço

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    1. O problema é que alguém de direita dirá exactamente a mesma coisa. A esquerda faz o mal porque é intrinsecamente perversa e a direita faz o mal em nome do bem. Outro problema é que não há um árbitro isento que possa decidir a pendência. O melhor, nestas circunstâncias, é evitar o julgamento e que cada parte mantenha a sua narrativa, sem que queira anular a outra. Caso contrário, só o tribunal das armas pode tomar a decisão e, penso, esse será o pior dos tribunais.

      Abraço

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