terça-feira, 25 de agosto de 2020

Perfis 3. A bailarina

Manuel Casimiro, Estrutura, 1970
Olhou em volta, espreitou por detrás de uns arbustos e dos troncos das árvores, apurou o ouvido e fez o catálogo dos sons, passou-os mentalmente em revista para ver se alguns deles poderia vir de um ser humano. Certificou-se que não havia ninguém que a pudesse surpreender e começou a despir-se. Os sapatos saltaram-lhe dos pés, o vestido caiu no solo, o corpo nu fulgurou na luz da madrugada. Liberta do que a incomodava, flectiu a perna esquerda até que o joelho tocou no chão e a perna e o pé se estenderam, formando com a coxa um ângulo recto. A direita vinha do quadril paralela ao chão, quando o joelho se dobrou de modo a que a perna, apoiada no pé, desenhou com a coxa um ângulo de quarenta e cinco graus. O púbis era uma sombra na geometria dos membros inferiores. O tronco ergueu-se muito direito, deixando ver os seios redondos e contidos. Então, levantou os braços e começou a inclinar a parte superior do corpo para trás, até que as mãos e, de seguida, a cabeça tocaram o chão. Os seios pareciam espalmar-se devido à tensão a que o corpo se submetia. O ventre subia e descia, imperceptivelmente, segundo o arbítrio da respiração. Repousou naquela posição longos segundos, até que levou o joelho direito ao chão para que a perna e a coxa, alinhadas agora com as da esquerda, desenhassem também elas um ângulo de noventa graus. Assim firmada no solo, ergueu os braços, depois o tronco, desfazendo o arco que construíra, e logo os inclinou para a frente até que mãos, braços e cabeça descansaram na relva, como se fosse aquele o momento em que saudava, não sem contida alegria, a natureza, num longo abandono, numa preparação para o momento em que, ao dançar, se esqueceria da gravidade e da terra ascenderia aos céus.

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