sábado, 12 de setembro de 2020

A ruptura do discurso


Nos últimos tempos três assuntos têm concentrado os interesses das redes sociais que dão atenção ao fenómeno político. O racismo, a festa do Avante e a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento no ensino não superior. Todos eles suscitaram uma enorme turbulência – muito para além daquilo que esses assuntos possam pesar na vida dos portugueses. Foram tratados com tal fervor, que se chega a ter a impressão de se estar perante casos decisivos para o futuro da comunidade. Mais importante do que aduzir razões para um ou outro dos lados, é tentar perceber o que se está a passar. Este artigo foca-se no problema da ruptura do discurso entre a direita e a esquerda sociais.

Racismo, cidadania, género, privilégio, risco, etc. são palavras entendidas de forma diferente pelas partes em confronto. Dois exemplos. Para uns, não ser racista significa tratar qualquer pessoa enquanto indivíduo, mas não reconhecer que ser negro – ou cigano, etc. – seja uma categoria política. Para outros, porém, esta concepção é ela mesmo racista, pois nega a situação histórica em que ser negro foi condição de ser oprimido. Um segundo exemplo, liga-se com o ensino da cidadania. Uns acham que esta deve incluir as questões de género e da sua formação social, outros nem sequer julgam que o conceito de género seja pertinente ou tenha significado. As partes em confronto na sociedade não se entendem sobre o significado dos conceitos que usam. Esta ruptura na linguagem é bastante preocupante e contém em si germes de situações de clivagem política que poderão colocar a democracia em apuros. Porquê?

Em primeiro lugar, porque a linguagem é um veículo de entendimento. Para nos entendermos é necessário que partilhemos significados e um certo sentido comum da linguagem. Sem isso não há entendimento. Em segundo lugar, porque estão a desaparecer os mecanismos de mediação (de tradução). Na vida democrática não é novidade a existência de diferenças no uso dos conceitos políticos. No entanto, havia mecanismos sólidos, como a comunicação social de referência ou a universidade, que faziam interpretações aceitáveis globalmente e proporcionavam o entendimento. Isso desapareceu levado pelo hooliganismo das redes sociais. Nem a comunicação social nem a universidade possuem já prestígio para fazer uma espécie de tradução aceitável dos conceitos por uma ampla maioria. Está bem enganado quem pensar que os conflitos em torno de palavras são jogos florais ou guerras de alecrim e manjerona. São um problema muito perigoso para o qual não se avista solução.

2 comentários:

  1. As palavras são muito perigosas. Mudam de sentido quando menos se espera.

    Um abraço

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    1. Não são mesmo de confiança. Por vezes, são mesmo poligâmicas. asam com vários sentidos ao mesmo tempo.

      Abraço

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