terça-feira, 8 de setembro de 2020

Descrições fenomenológicas 57. Entre ruínas 1

Leopoldo Novoa, Next time the fire, 1992

Um grande quintal. Há nele ainda vestígios de caminhos construídos por lajes irregulares de calcário. Muitas delas foram arrancadas do lugar, empilhadas ao fundo junto de uma arrecadação, como se alguém as tivesse colhido para as levar para outro lugar, onde houvesse pés humanos para as pisar e assim se defenderem do contacto directo com a terra. Fungos e musgo denunciam que o projecto foi abandonado há muito. Uma armação de ferro, de onde um dia penderam duas cadeiras de baloiço, mantém-se de pé, presa nas sapatas de cimento que se enterram pelo chão. As pernas e a trave são uma combinação de ferrugem e de verde escuro, restos de tinta que o tempo e a corrosão dos materiais ainda não apagaram. Os ganchos, de onde penderam as correntes que seguravam os assentos, continuam a esperar que alguém se recorde do seu préstimo, para que neles o ferro ranja enquanto crianças vão e vêm, entre gritos e gargalhadas de prazer. O que fora uma sebe é agora um renque de arbustos desalinhados, entrecortado por espaços vazios, por onde animais selvagens entram e saem. A casa mantém o telhado, onde crescem ervas daninhas, talvez cactos e fetos. Há telhas partidas, mas não muitas. As paredes que um dia foram brancas amareleceram, com pedaços de caliça a despegarem-se, à espera que o vento os derrube para se pulverizarem ao tocarem o chão. No primeiro andar, em vez de janelas há portas que dão para varandas exíguas feitas de pedra e rodeadas de balaústres. Colónias de fungos fizeram lá a sua casa, tingindo-as de uma mescla de cores sombrias, onde predomina um cinzento moderado com manchas redondas de antracite e linhas de verde dos musgos trazidos pela humidade. Os caixilhos das janelas do rés-do-chão perderam cor. O vermelho deu lugar ao castanho claro da madeira ressequida, gretada, por onde passeiam formigas. Numa delas, as portadas de vidro estão abertas. A obscuridade do abandono sai em golfadas de esquecimento para a rua, cai sobre o quintal, toca a terra, os objectos esquecidos, os tapetes de folhas mortas que uma brisa empurra, ouvindo-se um rumorejo suave como se fantasmas as pisassem com cuidado para não despertar alguma memória que o sono do tempo adormeceu.

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