Yale Joel, American travelers building a sand replica of France’s medieval abbey at Mont-Saint-Michel in the background, 1948 |
segunda-feira, 30 de novembro de 2020
Sonhos numa noite de Verão 25
domingo, 29 de novembro de 2020
A Garrafa Vazia 30
sábado, 28 de novembro de 2020
Beatitudes (33) Noites de Inverno
Hiroshi Hamaya, Winter starts on peak of Mount Fuji. Japan, 1962 |
sexta-feira, 27 de novembro de 2020
Nocturnos 39
Ivan Nikolaevič Kramskoj, Moonlit Night, 1880 |
quinta-feira, 26 de novembro de 2020
Descrições fenomenológicas 60. Um porto
Esteban Vicente, Goyescas, 1983 |
Da porta da pequena ermida situado no outeiro, quase em cima da costa, vê-se o movimento marítimo de um porto antigo. À direita, as grandes construções, armazéns e, um pouco mais ao fundo, estaleiros, entregues à construção e à reparação de barcos de pequeno e médio porte. Levados pela necessidade, operários e homens do mar atravessam apressados o cais, enquanto gente aturistada deambula por ali ávida, como todos os turistas, de ver aquilo que nunca haverá de ver e muito menos compreender. O céu está mesclado de nuvens que ora coam a luz, criando uma atmosfera de irrealidade, uma paisagem de fantasia, o exercício romântico de um pintor obcecado com o sublime das emoções que lhe perturbam a alma, ora deixam o campo aberto para que os raios solares incendeiem as águas e ateiem súbitas e estranhas cintilações de fogo nas pedras do molhe, que se vê à esquerda. As águas, tranquilas até à afabilidade, entretêm-se nesse jogo de mudança de cores, ora cinzentas, ora verde-azuladas, ora quase acastanhadas. Não é dia de grande tráfego portuário. Alguns veleiros sulcam as águas, as velas desfraldadas, uns aproximando-se de terra, outros afastando-se, diminuindo de tamanho até se tornarem um ponto a desaparecer na linha do horizonte. Num dos cais, à borda das águas, mesmo alinhado com a ermida, está, sobre um pilar de pedra cinzenta, um oratório não muito grande, encimado por cruz de madeira. Diante dele, está parada uma pequena embarcação. Dois homens inclinam a cabeça e permanecem assim por largos minutos, murmurando súplicas e desfiando gratidões. Depois, põem o barco em movimento e afastam-se lentamente, enquanto o sol irrompe de novo e resplandece como se tivéssemos voltado ao quarto dia da criação e os grandes luzeiros acabassem de ter sido colados pela mão de Deus na tela gigantesca do firmamento.
quarta-feira, 25 de novembro de 2020
Simulacros e simulações (3)
terça-feira, 24 de novembro de 2020
A Garrafa Vazia 29
segunda-feira, 23 de novembro de 2020
Perfis 9. O monge
Jakub Schikaneder, Contemplation (Monk on the sea shore), 1893 |
Não é uma estátua nem um homem que a natureza tenha petrificado. Não está perdido, nem anda à deriva. No silêncio rumorejante das águas e na infinidade das areias, procura uma voz, uma palavra, o eco reverberante de um mistério. Talvez a sua alma não seja ainda suficientemente pura e nela haja, escondida em secreto desvão, uma gargalhada transbordante por aqueles que se alvoroçam e agitam com os negócios do mundo, as dores da riqueza ou da miséria, as ânsias do poder ou da servidão. Ele tem o seu caminho. Percorre-o ao crepúsculo, mesmo ao sol do meio-dia, mesmo nas trevas da noite. Nunca a luz que o guia é demasiado cintilante, nunca se apaga, mas persiste hora após hora naquela suave claridade que a tudo deixa ver e a que a tudo oculta. Vigia o oceano, observa o voo das gaivotas, contempla o revérbero de um minúsculo grão de areia, escuta o silabar do vento, e em tudo isso encontra sempre uma outra figura e uma outra voz. Dá pequenos passos como se temesse esmagar a terra, como se não tivesse pressa de chegar a lado algum, pois qualquer sítio é o seu lugar. Pára, respira com suavidade e deixa-se tomar pela ondulação do tempo. Nela, tacteia a eternidade e sente o aroma do infinito. Torna a caminhar. Atrás dele ficam as marcas dos seus passos, mas não olha para trás, para aquilo que as ondas apagarão. Por vezes, coloca a mão sobre os olhos e enfrenta o Sol que se esvai no horizonte. Logo se volta e olha a terra. Mais um passo e os sentidos perdem-se dentro de si. Ouve um cântico. Não sabe de onde vem, se das esferas celestes, se do ventre da terra, se das águas volúveis. A sua voz deixa-se arrastar e ele canta, pois aquele é o seu cântico, o que escutava antes de ser, o que entoará ao deixar de ser.
domingo, 22 de novembro de 2020
Nocturnos 38
Caspar David Friedrich, Sea Shore in Moonlight, 1835-36 |
sábado, 21 de novembro de 2020
Pandemia e a vantagem do meio termo
Depois de uma pequena acalmia, a pandemia de COVID-19 escalou.
Contágios, internamentos, utilização de cuidados intensivos e mortes, tudo isso
apesenta números que são já assustadores. É fácil criticar os governos,
difícil, porém, é ter, com os recursos existentes e com os conhecimentos
disponíveis, respostas que agradem a todos ao mesmo tempo. Este artigo não versa
sobre o combate epidemiológico, sobre o qual não tenho ideia alguma, nem, tão
pouco, sobre a gestão política concreta. Pretendo chamar a atenção para um
outro aspecto que a resposta a dar a esta pandemia suscita.
Assiste-se, não poucas vezes, a um combate feroz entre duas ideias sobre a sociedade. Para uns, a colectividade deve sobrepor-se ao indivíduo, por vezes de tal maneira que abole as liberdades deste e sufoca-o no meio da massa. Para outros, a comunidade é uma ficção, só os indivíduos, com os seus interesses próprios, existem. Entre estes dois extremos, há concepções intermédias. A pandemia surge como uma razão forte para preferirmos, seguindo a lição da moral aristotélica, o meio termo entre o colectivismo e o individualismo.
A espécie humana não conseguirá responder a esta pandemia com o mínimo de sucesso se os mecanismos comunitários, de onde se destacam as instituições públicas de saúde, não funcionarem, se o Estado, enquanto representante da comunidade, não mobilizar mecanismos de solidariedade que atenuem o impacto na economia e na vida das pessoas. A força da comunidade tem um papel muito importante na presente situação. No entanto, ela é apenas o outro lado da dimensão individual. O combate à pandemia passa pelos indivíduos, pela sua autonomia, pela sua liberdade e pela sua responsabilidade. Passa pela capacidade de pôr freio ao egoísmo espontâneo, usando a sua liberdade para se conter e evitar a propagação da doença.
Nem um colectivismo que reduz os seres humanos à massa, nem um individualismo egoísta e negador da comunidade têm grande coisa a oferecer. Ao primeiro, falta a liberdade das pessoas que implica a sua responsabilidade individual. Ao segundo, falta-lhe a importância dos mecanismos de solidariedade dentro da comunidade. A resposta à pandemia exige um equilíbrio, um meio termo que é, na verdade, a justa medida, que nos permitirá enfrentar, com menos perdas, o terrível inimigo que nos coube. A resposta sensata à pandemia reforça a posição daqueles que defendem, para a vida política, um equilíbrio entre o liberalismo e o socialismo, entre a liberdade dos indivíduos e a solidariedade dentro da comunidade.
sexta-feira, 20 de novembro de 2020
Ensaio sobre a luz (88)
Hiroshi Hamaya, A girl carrying a baby on her shoulders as she goes to make errands in the snow covered landscape of Aomori. Japan, 1955 |
quinta-feira, 19 de novembro de 2020
A Garrafa Vazia 28
quarta-feira, 18 de novembro de 2020
Nocturnos 37
Fred Kradolfer, New York, 1921 |
terça-feira, 17 de novembro de 2020
Perfis 8. O homem do saco
Margaret Bourke-White, World’s Highest Standart of Living. There’s no way like the American Way, 1937 |
segunda-feira, 16 de novembro de 2020
Simulacros e simulações (2)
domingo, 15 de novembro de 2020
Knut Hamsun, Pan
Interpretado, por vezes, como um romance de amor, Pan,
do norueguês Knut Hamsun (Nobel em 1920), publicado em 1894, encena o conflito
entre a vida livre do bom selvagem e a vida civilizada. É, também, uma
releitura do mito de Pã, do deus grego dos bosques e das florestas, e da sua
paixão pela náiade Sírinx. Nessa releitura não falta sequer o piloto Tamo que
anuncia ao mundo a morte do grande Pã. O romance faz parte do conjunto de obras
onde o autor contesta radicalmente a vida e os valores burgueses, esse mundo
regulado pela burocracia e por regras que aniquilam o instinto vital. Não o faz,
todavia, numa perspectiva social que tocou o realismo ou o naturalismo
literários e, mais tarde, o neo-realismo, mas do ponto de vista do herói
individual, da afirmação do carácter único do indivíduo. Não como uma
singularidade que persegue o interesse próprio, tal como o burguês, mas de uma
individualidade que emerge do tumulto da natureza e que nele pretende voltar a mergulhar.
O Tenente Thomas Glahn, aos 28 anos, foi para as terras selvagens do norte da Noruega, onde aluga uma cabana de caça, adoptando um modo de vida frugal. Os dias eram passados na floresta, na companhia do seu fiel cão de caça Esopo. A vida selvagem e desordenada eram o ambiente natural onde florescia a vida espiritual do militar. Uma espiritualidade tipicamente pagã, vivida através da divinização da natureza. Aquele era o lugar para um homem meio selvagem. No entanto, a vida civilizada, de uma povoação próxima, cruzava-se com os seus caminhos. Neles atravessou-se Edwarda e uma paixão exaltada nasceu no coração de Glahn.
Essa paixão, aliás correspondida, arrastou-o para contactos com a sociedade organizada do povoado adjacente, onde o pai de Edwarda, Herr Mack, um rico comerciante, tinha um papel central. Estes contactos sociais são, então, ocasiões para que Thomas Glahn ostente um carácter imprevisível, surpreendente e, quase sempre, pronto a quebrar as regras da civilidade. Hamsun explora aqui a tensão entre a espontaneidade do homem bravio e a artificialidade e afectação que as pessoas em sociedade necessitam de ostentar. Está em jogo o confronto entre a autenticidade existencial, por vezes brutal, e a vida falsificada produzida num mundo em que as arestas são limadas para que se evite o espectáculo da dor ou do prazer excessivos. Ora, era essa disrupção que a conduta de Glahn introduzia na vida social que conduziram a um ostensivo afastamento de Edwarda. Acabada a época de caça, esse Verão das terras do Norte, o militar foi-se embora. A sua náiade rejeitara-o.
O romance é composto por duas partes. A primeira, com cerca de 150 páginas, tem por título ‘Segundo os papéis do Tenente Thomas Glahn’. É narrada na primeira pessoa, uma espécie de rememoração do próprio Tenente. Começa assim: Ultimamente tenho pensado e repensado no Verão do Nordland e nos seus dias intermináveis. Estou aqui sentado a pensar nisso, mas também numa cabana onde vivi, e no bosque atrás dessa cabana, e vou anotando essas coisas para passar o tempo; para me entreter, nada mais. A rememoração nunca é inocente. Ela refere-se a algo que passou e que deixou de fazer parte do leque de possibilidades disponíveis para uma existência, mas que continua a afectar aquele que viveu esses acontecimentos, de tal maneira que tem necessidade não apenas de os rememorar como de os anotar. Essa vida selvagem e esse delírio erótico pertencem a um mundo acabado. Tudo o que é substancial na relação entre Glahn e Edwarda encontra-se nesses papéis deixados pelo Tenente.
A segunda parte, com pouco mais de 20 páginas, tem por título ‘A morte de Glahn – Um documento de 1861’. Está também ela narrada na primeira pessoa, mas agora essa primeira pessoa não é o protagonista do romance. Inicia-se do seguinte modo: A família de Glahn pode perfeitamente continuar a anunciar o desaparecimento do Tenente Thomas Glahn durante o tempo que quiser, mas ele nunca mais regressará. Está morto e, além disso, eu sei como morreu. Como o piloto de navios Tamo anunciou a morte do deus Pã, também este narrador anuncia a morte dessa sua encarnação, que era o Tenente Glahn. No entanto, contrariamente a Tamo que apenas obedece a uma ordem e não faz ideia como morreu o deus, este narrador sabe como morreu Glahn e sabe aquilo que no coração de Thomas Glahn o abriu para a morte. O que ele não sabe, pois essa não é a sabedoria de um narrador, mas do autor, é que a morte de Glahn significa o fim de um mundo e de uma tradição e a vitória da ordem burguesa, burocrática e feita de artifícios, onde impera o culto da inautenticidade. Essa morte encontra a sua simbolização plena no carácter póstumo da publicação dos papéis do Tenente Glahn.
sábado, 14 de novembro de 2020
A Garrafa Vazia 27
sexta-feira, 13 de novembro de 2020
Beatitudes (32) O passado aproxima-se
Kurt Hielscher, Salt Warehouses, Lübeck, 1931 |
quinta-feira, 12 de novembro de 2020
Simulacros e simulações (1)
Alfred Eisenstaedt, Shadows on ground of kissing figures with camera on tripod between, 1930 |
quarta-feira, 11 de novembro de 2020
Nocturnos 36
Ansel Adams, Redwoods, Bull Creek Flat, Northern California, ca.1960 |
terça-feira, 10 de novembro de 2020
Onde falha o governo no combate à pandemia?
As novas medidas de combate à crise sanitária são
promulgadas no momento em que o professor de epidemiologia Manuel Carmo Gomes,
da Universidade de Lisboa, prevê que se chegue brevemente, caso nada seja
feito, às 10 mil contaminações e 100 mortes diárias, assim como a mais de 500
pacientes nas Unidades de Cuidados Intensivos (ver aqui).
Apesar do primeiro-ministro ter declarado que Portugal se preparou para segunda
vaga, pois está mais apetrechado com meios humanos e tecnológicos (ver aqui),
a verdade é que a situação actual e aquela que se prefigura devem-se também ao
governo.
Apesar de ter tomado medidas ao nível institucional, elas não têm tido qualquer impacto sobre os comportamentos das pessoas, e era sobre esses comportamentos que era e é necessário agir com firmeza. No comportamento social, há dois traços que se desenvolveram nos últimos tempos e que são muito preocupantes. Em primeiro lugar, a indiferença perante a morte. No início da pandemia, o número de mortos, por poucos que fossem, tinha um grande impacto psicológico sobre a população. Hoje, a morte por COVID-19 está completamente integrada na psicologia colectiva e, por mais que os números cresçam, esses números deixam as pessoas (parte significativa delas, claro) indiferentes. Cresce a falsa sensação de que a morte por COVID-19 é uma coisa que só acontece a outros.
Um segundo traço liga-se aos direitos das indivíduos. Numa primeira fase da pandemia, as pessoas – falo na generalidade, mais uma vez – sentiam que o principal direito a ser preservado era a segurança, a sua segurança, o facto de serem protegidas contra a doença. Essa percepção mudou ao longo dos últimos meses. Muitas pessoas pensam, por motivos diversos, que a questão da segurança é secundária. Os direitos fundamentais são o de desfrutar da sua vida conforme entenderem. Deslocarem-se para onde quiserem, encontrarem-se com quem quiserem, comportarem-se no espaço público como bem entenderem. O risco é entendido como uma questão privada e não pública. Assim como ninguém tem nada a ver como me comporto na minha vida privada, também ninguém, muito menos o governo, tem nada a ver com o risco que corro de ser contaminado e ficar doente com COVID-19. Rapidamente, a percepção do risco colectivo foi apagada e assumida, por demasiada gente, como um risco privado que só a si diz respeito.
A grande responsabilidade do governo foi não ter antecipado estas duas transformações na psicologia da comunidade. Não percebeu que a indiferença perante a morte por COVID-19 iria crescer até ser generalizada, mesmo entre aqueles que se preocupam com os efeitos comunitários da doença. Não percebeu que, numa sociedade como a nossa, a questão do risco rapidamente transitaria da dimensão colectiva para a pessoal. São estas incompreensões que dão a António Costa, quando fala da situação, um ar, por vezes penoso, de perplexidade. O governo pode ter agido bem no domínio dos recursos, mas não teve em conta a população que governa e não antecipou o modo como os comportamentos se iriam alterar. Na verdade, achou que tudo estava na mão dos cidadãos, como António Costa não se cansa de realçar. Ora, isso só é verdade em parte. Nós temos um Estado e elegemos governos precisamente porque nem tudo está nem pode estar por completo no arbítrio dos cidadãos.
segunda-feira, 9 de novembro de 2020
A Garrafa Vazia 26
domingo, 8 de novembro de 2020
Faure da Rosa, Nós e os outros
Publicado em 1979, Nós e os outros, de Faure da Rosa,
passa-se num curto espaço de tempo, quatro dias de uma semana de Maio de 1973.
Bernardo, o narrador, conta, num tempo já bem posterior e demarcado no
calendário político do país, a sua vida quotidiana nesses dias em que a
ditadura entrara em pleno, embora não visível, estertor. A obra é cruzada pela
tensão entre duas linhas narrativas. Por um lado, a preocupação com a análise
de um certo tipo de família burguesa. Por outro, a questão do compromisso
político, de um compromisso com o único partido que, apesar da sua ideologia
materialista e ateia, tem qualquer coisa de efectivamente religioso. Aliás,
essa ligação devocional ao partido surge várias vezes na narrativa, sugerindo-se,
por vezes, quase uma ligação a um corpo místico. A tensão desenha-se, deste
modo, entre o cosmos da vida privada, uma vida real e efectiva, e o da vida
pública, mais sonhada e desejada do que autêntica.
Em busca de um filho na noite lisboeta, o narrador, de 64 anos, acaba por encontrar Carol, uma jovem, na casa dos 20 anos, sexualmente caridosa com velhos e rejeitados, que o provoca. Acabam por se envolver eroticamente. É a partir desta deriva extraconjugal, que as relações familiares vão sendo exploradas. Uma vida inteira ao lado de Luci, dois filhos, e, de súbito, a figura da mulher surge a uma outra luz. Torna-se enigmática, obscura. Esta obscuridade provém, contudo, da própria mentira que esconde a infidelidade. Na verdade, há em Bernardo uma ânsia em ser descoberto, um desejo de ver a situação revelada, uma necessidade de confissão, como se isso pusesse um ponto final ao desvario. É o facto de Luci não se dar conta da situação, ou de não deixar transparecer que a pressente, que a torna obscura aos olhos do marido, como se ele supusesse o casamento, depois de uma vida inteira lado a lado, um lugar da mais pura transparência. O que preocupa, todavia, Luci não é o marido e os eventuais desvarios eróticos, mas o filho mais novo que desapareceu. Tendo-se radicalizado politicamente, participado em acções de natureza terrorista contra o regime, acaba por sair do país.
O romance não espreita apenas para dentro desta família. Olha as relações entre Antonieta, irmã do narrador, e César, um professor universitário que, na juventude, militou na oposição, mas que, com o passar dos anos e da carreira, se foi tornando complacente com o regime, se não mesmo defensor. É a figura negra do romance, aquele que tanto Bernardo como os filhos – Nuno, o fugitivo, e Paulo – não suportam, embora ele tenha diligenciado, no âmbito da vida profissional e pessoal destes, várias vezes em favor do cunhado e dos sobrinhos. É uma personagem quase estereotipada, o vilão da história, aquele que Bernardo se revê como um negativo e perante o qual se sente múltiplas vezes derrotado. A tensão dentro desse casal cresce motivada pela própria política, pela fidelidade de Antonieta aos ideais comunistas de Bernardo e dos outros irmãos já mortos e pelo desprezo de César por esse mundo. Também o casal Paulo e Gabi é observado e questionado pelo narrador. Paulo é o filho perfeito, o homem que, apesar de ter uma carreira profissional, se comprometeu com o partido e a luta contra a o regime. Todavia, é estéril. Bernardo teme que a nora acabe por ceder a uma forte inclinação amorosa pelo outro filho, pelo carácter aventureiro e radical deste.
Estes pequenos dramas familiares, de famílias tipicamente burguesas, de uma certa classe média lisboeta e oposicionista, são contrastados pelo seu, de Bernardo, compromisso político com o Partido Comunista. Um compromisso relativamente distante. A sua ligação à família, a sua preocupação com os filhos e a educação destes, a relação com a mulher pouco interessada nos ideais do marido, impedem Bernardo de se entregar a um compromisso radical com a organização que encarna os seus ideias de justiça social desde a juventude, de entrar no corpo místico que é o partido. Contenta-se em ser um homem da segunda linha, um devoto, alguém que não tem estatuto para se tornar o herói revolucionário que um dia terá sonhado ser. Aos 64 anos, essa figura do herói suscita-lhe a nostalgia do passado e também a melancolia que a realidade vivida lhe trouxe, a qual é agora, por um curto espaço de tempo, substituída pela aventura erótica. O tempo do adultério é um exercício compensatório para a sua impotência de revolucionário. A fusão erótica está no lugar da fusão no corpo místico do partido e através dele no povo.
A estratégia narrativa assenta no contínuo cruzamento entre o tempo curto, o daqueles quatro dias, e o tempo longo de uma vida. O tempo curto é aquele em que o narrador conta a sua vida banal. A procura do filho por injunção da mulher, o encontro com uma futura e breve amante, um jantar de família, os sonhos que lhe povoam a noite, as cenas da vida profissional, as frustrações existenciais. Este tempo da banalidade quotidiana, mesmo que atravessado pela fuga do filho e a conquista de uma jovem amante, é posto em tensão, através de um constante exercício mnésico, com o tempo longo da sua vida, um tempo que vai do passado ao futuro. O narrador entrega-se a contínuas analepses e prolepses, que lhe dão uma densidade temporal, lhe conferem uma identidade e uma história. Permitem compreender o percurso que o leva àqueles quatro dias e o caminho que esses quatros dias abriram até depois de 25 de Abril de 1974, até ao momento que em 1978 escreve a história, um romance que pretende ser também a confissão de um adultério. Nós e os outros é a história de um homem da classe média a entrar na parte final da vida. De um homem que um dia sonhou ser revolucionário e ficou preso dentro desse sonho, impotente para o realizar, como o faz o filho, e impotente para sair dele, como o fez o cunhado. O ano de 74, permitiu-lhe, todavia, mergulhar na militância comunista, embora sem o encanto mítico do herói da resistência, sem a experiência sobrenatural de comunhão com um corpo que é sentido, pelos que dele fazem parte, como sendo mais do que humano.
sábado, 7 de novembro de 2020
Hiperpolitização
Escrevo no dia em que decorrem as eleições norte-americanas.
No entanto, não são as eleições nos EUA o foco do artigo, mas as portuguesas.
Olhemos para a evolução da participação nas eleições para a Assembleia da
República, deixando de lado a Assembleia Constituinte de 1975. Em 1976, nas
primeiras legislativas, votaram 83,5% dos eleitores (a maior votação foi a de
1980 com 83,9%). Nas últimas, as décimas quintas, em 2019, votaram 48,6%. Em 43
anos, o regime democrático alienou mais 35% do eleitorado. Ao fim de 10 anos,
já tinham sido perdidos mais de 10% de participantes. Ao fim de 20 anos, a
perda cifrava-se na casa dos 20%. Ao fim de trinta, a queda sofrera uma
travagem, mas mesmo assim aumentara para mais 22%. Nos doze anos seguintes
perderam-se mais 13% dos eleitores, sendo as últimas eleições as primeiras em
que a participação fica abaixo de 50%.
Houve um claro afastamento dos portugueses da vida democrática. A questão que se coloca, porém, é se esse afastamento das práticas da democracia representa um desinteresse pela política e pelos destinos da comunidade. Quando não existiam redes sociais e a comunicação social dominava a opinião, havia a sensação de que crescia o desinteresse dos portugueses pela política, um refluxo para a esfera privada, uma indiferença pelo que estava a acontecer. As redes sociais vieram demonstrar outra realidade. A desafeição crescente do eleitorado não é com a política, mas com o actual regime. Constantemente as pessoas produzem comentários políticos, assinalam as distâncias entre o eles (os políticos) e o nós (as pessoas comuns), fazem observações jocosas e acusatórias sobre as elites políticas do regime. Há uma intensa participação.
Vivemos, ao contrário do que as eleições dizem, numa época de hiperpolitização. Esta não se manifesta nem na defesa da democracia nem em formas de participação política convencionais. Manifesta-se no rápido tweet, no comentário jocoso, no like concordante com uma qualquer diatribe. Esta hiperpolitização – hiper porque representa uma intensificação do interesse pela política e porque está ligada ao hiperespaço – não deve ser encarada de ânimo leve. Ao situar-se fora do quadro institucional, ela trabalha para desprestigiar e fazer explodir as instituições democráticas. A hiperpolitização assinala duas coisas. Em primeiro lugar, um grande ressentimento com o regime democrático. Em segundo lugar, desenha uma utopia, o desejo de um regime político puro, que não seja contaminado pela venalidade dos políticos. Sempre que se conjugam ressentimento e desejos utópicos, as comunidades encontram-se à beira de um abismo.
sexta-feira, 6 de novembro de 2020
A razão delirante
Manuel Quejido, Delirio de los continentes o la razón, 1974 |
quinta-feira, 5 de novembro de 2020
Perfis 7. O acordeonista cego
André Kertész, Sixth Avenue, New York, 1959 |
quarta-feira, 4 de novembro de 2020
A Garrafa Vazia 25
terça-feira, 3 de novembro de 2020
Nocturnos 35
Albert Pinkham-Ryder, Moonlight Cove, 1911 |
segunda-feira, 2 de novembro de 2020
Um problema difícil
Com a eleição de dois deputados nos Açores e uma votação na casa dos 5%, o Chega mostra-se como uma força política em consolidação. Tem uma particularidade que o torna em fenómeno único na democracia portuguesa. É o primeiro partido político a crescer afirmando-se contra o sistema político que foi traçado, através de um consenso tácito, pelo PS, PSD, PCP e CDS. O único partido que, além destes, conseguiu encontrar lugar consolidado no sistema partidário foi o Bloco de Esquerda. Note-se, porém, que esse lugar nasceu não porque o Bloco fosse anti-sistema, mas porque se converteu a ele.
A ascensão do Chega é preocupante para quem julga que as democracias liberais, tal como estão concebidas – a nossa e as da generalidade dos países europeu –, são os sistemas políticos mais razoáveis e aqueles que comportam menos riscos para os cidadãos. No entanto, as forças políticas tradicionais parecem incapazes de lidar com a direita radical. Em Portugal, o centro-direita olha com benevolência e paternalismo para o fenómeno, o centro-esquerda ignora-o, parece convir-lhe tacticamente, e a esquerda lançou mão do arsenal retórico antifascista e anti-racista.
Para além da questão, em disputa, da categorização do Chega ao nível da Ciência Política, o problema mais difícil de enfrentar é o da eficácia política da retórica antifascista e anti-racista. Embora Portugal não seja o Brasil nem os EUA, pode aprender alguma coisa com o que aí se passou. Combater os movimentos populistas da direita radical com o arsenal retórico do antifascismo e do anti-racismo parece ter um efeito contrário ao pretendido. A tentativa de deslegitimação enquadrando esses partidos e movimentos nos quadros mentais das direitas radicais e extremas-direitas reforçou candidatos inverosímeis e fez que uma parte do eleitorado lhes abrisse os braços e os protegesse, dando-lhes força e, mesmo, o poder.
Se os defensores da democracia liberal querem, de facto, limitar drasticamente o fenómeno populista, o caminho mais sensato será perguntar por que razão parte significativa do eleitorado se desinteressou da democracia e por que está a voltar agora à política de mãos dadas com este tipo de forças. Que aspectos da vida política democrática estão a gerar descontentamento na população? Que tipo de comportamentos dos agentes políticos tradicionais dão azo à demagogia populista? Isto significaria que as forças políticas tradicionais deveriam confrontar-se com as suas práticas e regenerarem-se a si mesmas. O que temo, porém, é que ninguém ache que exista alguma a regenerar em si e que um dia se acorde com um pesadelo eleitoral.
domingo, 1 de novembro de 2020
Beatitudes (31) Os dias felizes
Thomas Hoepker, Inside the Antelope Canyon, 1995 |