quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Perfis 7. O acordeonista cego

André Kertész, Sixth Avenue, New York, 1959

Sobre o rumor da avenida, entre o espanto, a indiferença e a piedade dos transeuntes, uma música desprende-se de um acordeão. São peças antigas, daquelas que abrem uma brecha no coração dos mais velhos, para que dali possa sair o pássaro da compaixão, ou então alguma coisa que esteja em voga, para que os novos se deixem tentar pela curiosidade de as ouvir e a espórtula lhes salte da mão e caia na caneca da acompanhante do acordeonista cego. Dentro dele, a música é luz, ilumina-o e transborda não pelo olhos impotentes, mas pela boca, de onde sai um hálito feito de notas musicais, ritmos populares que fendem a atmosfera. Tangos, boleros, velhas baladas do Oeste e ainda adaptações, não sem talento, dos êxitos do rock and rolI, que lhe ferem a alma e bolem com os sentidos, mas que a necessidade mais estrita lhe impõe. É preciso que as moedas tilintem no barro. Há que comprar o pão e o vinho, dar de comer a quem dorme lá em casa e ao cão, o guia fiel. Enquanto prime as teclas e o som sai em borbotões, a sua mente vagueia perdida num devaneio feito de desejo de luz e de ânsia de cores. Ah se eu visse… e o pensamento mistura-se com os passos apressados de quem vai e vem, o roncar impiedoso dos carros, o barulho metálico de alguma moeda. Mais ao longe há gritos. Ele ouve-os, enquanto pensa que se os seus olhos não o tivessem apunhalado, não estaria na rua ao frio e à chuva à espera de quem passa. Aguardariam por ele numa grande sala de concertos. Quando entrasse, aplaudi-lo-iam em delírio. Ele sentava-se ao piano, um silêncio sepulcral na sala, erguia lentamente as mãos, e delas sairia essa música que chama ao recolhimento quem a escuta e quem a toca, essa música trazida pelos deuses ao coração dos grandes mestres. 

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