segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Perfis 9. O monge

Jakub Schikaneder, Contemplation (Monk on the sea shore), 1893

Não é uma estátua nem um homem que a natureza tenha petrificado. Não está perdido, nem anda à deriva. No silêncio rumorejante das águas e na infinidade das areias, procura uma voz, uma palavra, o eco reverberante de um mistério. Talvez a sua alma não seja ainda suficientemente pura e nela haja, escondida em secreto desvão, uma gargalhada transbordante por aqueles que se alvoroçam e agitam com os negócios do mundo, as dores da riqueza ou da miséria, as ânsias do poder ou da servidão. Ele tem o seu caminho. Percorre-o ao crepúsculo, mesmo ao sol do meio-dia, mesmo nas trevas da noite. Nunca a luz que o guia é demasiado cintilante, nunca se apaga, mas persiste hora após hora naquela suave claridade que a tudo deixa ver e a que a tudo oculta. Vigia o oceano, observa o voo das gaivotas, contempla o revérbero de um minúsculo grão de areia, escuta o silabar do vento, e em tudo isso encontra sempre uma outra figura e uma outra voz. Dá pequenos passos como se temesse esmagar a terra, como se não tivesse pressa de chegar a lado algum, pois qualquer sítio é o seu lugar. Pára, respira com suavidade e deixa-se tomar pela ondulação do tempo. Nela, tacteia a eternidade e sente o aroma do infinito. Torna a caminhar. Atrás dele ficam as marcas dos seus passos, mas não olha para trás, para aquilo que as ondas apagarão. Por vezes, coloca a mão sobre os olhos e enfrenta o Sol que se esvai no horizonte. Logo se volta e olha a terra. Mais um passo e os sentidos perdem-se dentro de si. Ouve um cântico. Não sabe de onde vem, se das esferas celestes, se do ventre da terra, se das águas volúveis. A sua voz deixa-se arrastar e ele canta, pois aquele é o seu cântico, o que escutava antes de ser, o que entoará ao deixar de ser.

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