quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

O trumpismo como sintoma

Apesar ter sido dada a ordem de transição de poderes nos EUA, estamos ainda longe da certeza de que não será Donald Trump que continuará na Casa Branca. Os processos de validação de resultados nos EUA são obscuros e a democracia americana está muito longe da perfeição com que a pintam. Na verdade, ela tem funcionado, no que diz respeito à Presidência, baseada num acordo de cavalheiros, em que os derrotados, mesmo que tenham bastante mais votos (uma bizarria americana para evitar a eleição directa de um cargo uninominal, como o de Presidente), aceitam com desportivismo e espírito democrático as regras do jogo. O problema é que pode chegar à presidência quem não seja cavalheiro, não tenha espírito desportivo e não nutra especial respeito pela democracia.

A vitória de Trump há quatro anos, o apoio que manteve durante o mandato e a excelente votação que obteve, apesar de derrotado, tiveram o condão de revelar uma doença que corrói os sistemas democráticos, mesmo aqueles mais antigos e consolidados. A política não é por natureza uma coisa civilizada e racional, mesmo que ela tenha sido idealizada como tal por alguns dos mais importantes pensadores. Ela pressupõe sempre um combate duro entre interesses, paixões e ideias. O que a democracia faz é civilizar esse combate, tornando-o um jogo, onde o espírito desportivo impõe regras tácitas, em que o que ganha não humilha o que perde, e este aceita os resultados com um sorriso. Este jogo de cavalheiros tem o condão de operar a dissimulação das paixões e interesses que movem a massa e os actores. Essa dissimulação é uma coisa boa, pois evita a violência e a propagação do ódio.

A emergência do trumpismo, com o seu assinalável êxito dentro e fora dos EUA, torna patente que uma parte da população dos países democráticos começa a afastar-se da democracia e aspira a regimes autoritários como aqueles que vigoram na Turquia, no Irão, na Rússia e, pasme-se, na Venezuela, ou, mesmo na União Europeia, na Polónia e na Hungria. As pessoas predispõem-se a acreditar nas mentiras mais manifestas, desde que o chefe do seu bando alcance ou permaneça no poder. As regras cavalheirescas da democracia deixaram de impressionar os descamisados, essas almas preenchidas pelo ressentimento e ansiosas de vingança contra um regime que lhes ofereceu a liberdade e, mais que qualquer outro, a possibilidade de mostrarem o que valem. A sua fidelidade a personagens tóxicas, para não dizer luciferinas, não é mais do que um exercício compensatório da sua frustração existencial que o espelho democrático não lhes permite ocultar. A democracia liberal corre graves riscos.

[A minha crónica em A Barca]

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