sábado, 6 de setembro de 2025

Esquerda, uma crise estrutural


A crise que atinge, neste momento, a esquerda na sua globalidade, e que se manifesta, no caso português, em ter deixado de contar para qualquer revisão constitucional, não é um problema conjuntural, mas tem todas as características de ser uma doença estrutural. Não se trata de uma fatia de eleitores, não particularmente numerosa, que oscila entre o centro-direita e o centro-esquerda e que, nas últimas eleições, se inclinou um pouco para a direita. Trata-se de uma grande debandada, tendo os partidos de esquerda, entre 2015 e 2025, perdido quase 40% do seu eleitorado, o equivalente a 20% do eleitorado global. Estes números indiciam que a visão da esquerda para a sociedade – ainda que multifacetada – deixou de atrair os eleitores. A crise é estrutural porque as concepções ideológicas e políticas da esquerda perderam ancoragem em parte substancial do eleitorado. 

Há dois traços ideológicos que são fundamentais para compreender o que se passa. Em primeiro lugar, a emergência do que se pode chamar de identitarismo: a preocupação com a afirmação de uma identidade nacional. Em segundo lugar, a descrença nos mecanismos colectivos para resolução de problemas dos indivíduos. Em 2015, o Chega não existia e, em 2019, valia 1,3%. A esquerda não percebeu o que se estava a aproximar, apesar dos múltiplos exemplos vindos de fora. Presa ao cosmopolitismo dos socialistas e ao internacionalismo de bloquistas e comunistas, ficou cega para um problema que nem pensava que existisse. Pior: não se vislumbra como poderá encontrar um caminho para lidar com a atracção dos eleitores pelo soberanismo identitário, que é, agora, bandeira tanto do Chega como do PSD e do CDS. 

Se o identitarismo é problemático para a esquerda, o cepticismo perante os mecanismos colectivos para resolução de problemas é devastador. Aquilo a que se chama, comummente, esquerda nasceu e cresceu fundado na crença de que as soluções colectivas – revolucionárias ou reformistas – seriam o modo mais razoável para as pessoas melhorarem as suas vidas. Essa crença foi abandonada pelos eleitores, até por muitos, se não a maioria, dos que votam à esquerda. Os eleitores, ao abandonar a esquerda, escolheram dois caminhos: uma minoria converteu-se ao individualismo; a maioria, porém, procurou e procura um salvador, alguém que lhe resolva os problemas que nem o Estado, nem as lutas colectivas, nem a própria pessoa consegue resolver. A crise da esquerda é estrutural porque a esfera ideológica em que o eleitorado se passou a mover é completamente adversa aos valores e à tradição dessa esquerda.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Nocturnos 131

Paul Cézanne, Château Noir, 1903-1904
A noite abriga-se na escuridão. Envolta em trevas, avança sobre a casa abandonada, a casa que se perdeu na negra luz do oblívio, como um móvel velho e sem préstimo que se deita fora. Assim suspensa, dança sobre o telhado carcomido pelo tempo e com o seu véu de seda cobre-a para a proteger dos rudes exércitos do futuro.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Ciência e democratização da opinião


Uma notícia do Público informava sobre as razões que levam a geração Z, mas não só, a rejeitar o protector solar. O movimento antiprotecção solar é idêntico ao movimento antivacinas ou ao terraplanismo. Para além da contestação da ciência – isto é, do conhecimento rigorosamente testado e avaliado –, estes movimentos partilham o meio de propagação: as redes sociais. Estas são uma forma de democratização. Qualquer um pode emitir a sua opinião sobre qualquer coisa, sem que tenha de provar o que afirma. Antigamente, também existiam opiniões estapafúrdias e idiotas. Contudo, a sua propagação era muito limitada. As redes sociais mudaram tudo. Elas são o lugar em que qualquer opinião pode competir para arregimentar seguidores.

Este democratismo das redes sociais, ao dar força a movimentos como os acima referidos, veio revelar o carácter aristocrático do conhecimento científico. Este é produzido e compreendido por uma elite, um clube seleccionado que, para entrar nele, exige longos anos de preparação e um conjunto não pequeno de provas ao longo do caminho. Isto significa que a maior parte de nós – quase todos – não está habilitado para trabalhar em ciência, e mesmo aqueles que estão, estão apenas num ramo muito específico. O que acontecia, antes das redes sociais invadirem o panorama da intercomunicação humana, era que havia um respeito tácito, veiculado pela comunicação social e pelos valores da sociedade, pelos esforços desses homens e mulheres que dedicavam uma vida ao conhecimento. Presumia-se – e com razão – que sendo especialistas, tinham uma autoridade real para falar sobre a sua área, fossem vacinas, cancro de pele, ou física nuclear.

O que se assiste é uma revolta da plebe – ou dos sans-culottes, caso se prefira a França da Revolução ao Império Romano – contra o patriciado ou a aristocracia do conhecimento científico. A revolta tem uma característica específica. Não apenas pretende ter voz sobre assuntos de natureza científica, como quer ter o poder da autoridade: as suas crenças, sem qualquer validação, são a verdade e a ciência, com o seu laborioso e controlado processo de produção de conhecimento, não passa de uma mistificação. Estamos a assistir a um teste terrível dos efeitos da liberdade de expressão. Até que ponto a ciência e o conhecimento racional podem sobreviver a estes ataques irracionais? Não é apenas ao nível político, com a erosão das democracias, que as redes sociais geram problemas. Também são um factor de turbulência para a ciência e para os benefícios que os seres humanos podem tirar dela. Já não é impossível pensar que uma nova Idade das Trevas esteja no horizonte.