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George Seurat, The Clearing, 1882 |
Secreta clareira,
respiração de luz,
dádiva aberta
no perigo da terra.
Sob o teu olhar,
vibram violetas,
ervas de seda,
um véu negro
suspenso na hera.
[1993]
Dois sinais decisivos de que os equilíbrios provenientes do
processo de democratização estão no fim são as iniciativas legislativas do
governo sobre a imigração e o código do trabalho. São leis estruturais e a
esquerda nada pode fazer para as alterar. A primeira chocou com o Tribunal
Constitucional e à segunda pode acontecer o mesmo. Um cenário plausível é o de
a grande coligação parlamentar de direita – PSD/CDS + IL + Chega –, através da
contínua proposição de leis que chocam com a Constituição, encontrar uma desculpa
que lhes permita fazer aquilo que, na verdade, todos os seus chefes desejam:
alterar a actual Constituição, de modo a deixá-la irreconhecível, aniquilando
os traços sociais específicos que a transição à democracia em 74 lhe deu.
Os grandes interesses que, de modo mais silencioso ou mais
ruidoso, como o caso de O Observador, estão por detrás do Chega, da IL,
do PSD de Montenegro (o mesmo de Passos Coelho) e do minguado CDS, não
perdoarão à direita política que esta não aproveite a situação actual para refazer
a Constituição. E é evidente que quem manda não é Montenegro ou Ventura. Eles
são apenas representantes. Portanto, será um milagre que a Constituição se
mantenha tal como está. Não se espere que a sua defesa venha do PSD. Não estamos
em 1975, nem os dirigentes actuais têm alguma coisa que ver com os dirigentes
do PPD (era assim que o PSD se chamava) daqueles tempos. Se se pode ter alguma
pequena esperança de que a revisão não seja um retrocesso cívico monstruoso,
essa esperança reside na União Europeia. É ela que paga as contas, e há um
decoro mínimo que a nossa direita tem de ostentar, para que o dinheiro continue
a vir. O país político mudou e mudou radicalmente.
O caso é interessante não tanto pela descoberta de que a
relação entre moral e negócios é ténue, mas porque coloca em jogo o problema da
relação entre capitalismo e democracia liberal. Pretendeu-se que havia um laço
forte entre desenvolvimento do capitalismo e democracias liberais. Ora, existem
demasiadas provas empíricas que contrariam essa crença. O Chile de Pinochet é
um desses exemplos. Outro é a China comunista pós-Mao Tsé-Tung. Podia
multiplicar os exemplos. O que é importante, porém, é perceber que não existe
qualquer relação necessária entre desenvolvimento capitalista e democracia
liberal. Apenas duas liberdades parecem necessárias para a economia
capitalista: a da propriedade privada e a de concorrência, embora esta possa
ser dispensada.
A relação entre capitalismo e democracia parece ser apenas
conjuntural: o resultado, em primeiro lugar, da luta da burguesia contra a
aristocracia e o privilégio político desta; em segundo, da luta contra a ameaça
do comunismo, enquanto inimigo da propriedade privada. Derrotados aristocratas
e comunistas, o capitalismo, para o seu desenvolvimento, pode dispensar regimes
democráticos, o que está a fazer diante dos nossos olhos. A América de Donald
Trump é um caso exemplar, onde a corrosão das instituições democráticas e
liberais está a ser fomentada e financiada por grandes interesses capitalistas.
Contudo, há um outro fenómeno inquietante que ainda não é visível, mas que se
está a desenhar: a destruição, para além das democracias, da liberdade da
concorrência. Grandes interesses económicos gravitam o Estado em busca de
protecção e de destruição dos concorrentes. Talvez a destruição em curso não
seja apenas a das instituições democráticas, mas também da própria economia de
mercado.
Em 1923, Joseph Roth, referindo-se ao protagonista do seu
primeiro romance, escreveu: “Era o jovem europeu: nacionalista e egoísta, sem
fé, sem lealdade, sedento de sangue e limitado. Era a jovem Europa.” Este jovem
europeu era protofascista e, com o andar dos anos, tornou-se fascista. O
resultado é conhecido: o fascismo italiano, o nazismo alemão, diversas cópias,
mais ou menos fiéis, em países europeus, e, acima de tudo, a segunda guerra
mundial e o genocídio judaico. Os jovens europeus, no pós-guerra, foram-se
tornando outras coisas. Derivaram para a esquerda, tornaram-se antifascistas. Um
pouco mais tarde, foram campeões do liberalismo: primeiro, de costumes; depois,
de mercado. A certa altura do percurso, a juventude europeia, como outras,
mergulhou na internet e nas redes sociais, uma vida sedentária, sombria, vivida
no quarto.
Agora, começa a descobrir-se que os jovens europeus estão
cansados da vida sedentária. Enquanto a velha Europa definha numa crise
demográfica de grandes proporções, aquela jovem Europa – na designação irónica
do escritor austríaco – está de volta, com os mesmos jovens limitados,
nacionalistas, egoístas, sem fé nem lealdade, e, começa a perceber-se, sedentos
de sangue. Uma crise de masculinidade terá atingido parte dos rapazes e,
desconfiados da sua natureza, parecem ter uma necessidade de exibir, como uma condecoração,
a mais rasteira misoginia e um culto da violência, que começa a passar das
redes sociais para as ruas. A discussão sobre se as actuais extrema-direita e
direita populista são ou não fascistas é irrelevante. O importante é a pulsão
que conduz muitos jovens – principalmente, do sexo masculino. E esta pulsão é
violenta, nacionalista e, em potência, violenta.
A situação social e política em que vivemos é, do ponto de vista económico, social e político, muito diferente da que se vivia na Europa do fim da primeira guerra mundial. Contudo, há um ponto em comum: a proliferação do ressentimento. Foi o ressentimento de largas camadas da população que deu combustível ao fascismo e ao nazismo. Ora, apesar de as pessoas, mesmo as mais pobres, viverem muito melhor do que nessa altura, o ressentimento multiplica-se. Seja devido à presença de estrangeiros ou à comparação com as elites, a massa dos ressentidos, na qual a presença de jovens rapazes é significativa, cresce e está a tornar-se um problema para as democracias liberais. Nos anos vinte e trinta do século passado, os políticos democráticos foram impotentes para lidar com essa “jovem Europa”. Resta saber se, passado um século, aprenderam alguma coisa.