domingo, 31 de agosto de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (21)

George Seurat, The Clearing, 1882

Secreta clareira,

respiração de luz,

dádiva aberta 

no perigo da terra.

Sob o teu olhar,

vibram violetas,

ervas de seda,

um véu negro

suspenso na hera.

 

[1993]


terça-feira, 26 de agosto de 2025

Uma mudança radical


Julgo que ainda não se compreendeu bem o significado das últimas eleições legislativas. Elas podem representar – ou representam, efectivamente – um corte com o 25 de Abril de 1974 e com os equilíbrios constitucionais que vigoraram nos últimos cinquenta anos. Esses equilíbrios fundavam-se numa aliança – por norma, tácita – entre o centro-esquerda, representado pelos socialistas, e o centro-direita, representado pelo PSD, com ou sem a muleta do CDS. Dentro desse equilíbrio coube tanto um CDS mais exaltado como uma esquerda menos reformista: o PCP e o BE. Ora, as últimas eleições puseram fim ao equilíbrio. A esquerda tornou-se, parlamentarmente, irrelevante. Nem sequer conta para uma eventual revisão da Constituição. E esta revisão é uma possibilidade real, mesmo que o PSD por enquanto a negue.

Dois sinais decisivos de que os equilíbrios provenientes do processo de democratização estão no fim são as iniciativas legislativas do governo sobre a imigração e o código do trabalho. São leis estruturais e a esquerda nada pode fazer para as alterar. A primeira chocou com o Tribunal Constitucional e à segunda pode acontecer o mesmo. Um cenário plausível é o de a grande coligação parlamentar de direita – PSD/CDS + IL + Chega –, através da contínua proposição de leis que chocam com a Constituição, encontrar uma desculpa que lhes permita fazer aquilo que, na verdade, todos os seus chefes desejam: alterar a actual Constituição, de modo a deixá-la irreconhecível, aniquilando os traços sociais específicos que a transição à democracia em 74 lhe deu.

Os grandes interesses que, de modo mais silencioso ou mais ruidoso, como o caso de O Observador, estão por detrás do Chega, da IL, do PSD de Montenegro (o mesmo de Passos Coelho) e do minguado CDS, não perdoarão à direita política que esta não aproveite a situação actual para refazer a Constituição. E é evidente que quem manda não é Montenegro ou Ventura. Eles são apenas representantes. Portanto, será um milagre que a Constituição se mantenha tal como está. Não se espere que a sua defesa venha do PSD. Não estamos em 1975, nem os dirigentes actuais têm alguma coisa que ver com os dirigentes do PPD (era assim que o PSD se chamava) daqueles tempos. Se se pode ter alguma pequena esperança de que a revisão não seja um retrocesso cívico monstruoso, essa esperança reside na União Europeia. É ela que paga as contas, e há um decoro mínimo que a nossa direita tem de ostentar, para que o dinheiro continue a vir. O país político mudou e mudou radicalmente.

domingo, 3 de agosto de 2025

Capitalismo e democracia


Numa newsletter do Público, João Pedro Pereira traz-nos um caso sobre o desenvolvimento do capitalismo. Trata-se da Anthropic, uma promissora start-up de Inteligência Artificial (IA), fundada pelos irmãos Dario e Daniela Amodei. Não há um ano, Dario Amodei, o CEO da empresa, publicou um ensaio afirmando que a IA pode transformar o mundo para melhor, defendendo as democracias e os Direitos do Homem. Agora, porém, “Amodei está em conversações para obter investimentos avultados por parte dos Emirados Árabes Unidos e do Qatar”, dois Estados que não se distinguem por serem democráticos ou entusiastas dos direitos humanos. Numa mensagem de Amodei aos funcionários, é dito: “Infelizmente, julgo que ‘Nenhuma pessoa má deve alguma vez beneficiar do nosso sucesso’ é um princípio sobre o qual é difícil gerir um negócio.”

O caso é interessante não tanto pela descoberta de que a relação entre moral e negócios é ténue, mas porque coloca em jogo o problema da relação entre capitalismo e democracia liberal. Pretendeu-se que havia um laço forte entre desenvolvimento do capitalismo e democracias liberais. Ora, existem demasiadas provas empíricas que contrariam essa crença. O Chile de Pinochet é um desses exemplos. Outro é a China comunista pós-Mao Tsé-Tung. Podia multiplicar os exemplos. O que é importante, porém, é perceber que não existe qualquer relação necessária entre desenvolvimento capitalista e democracia liberal. Apenas duas liberdades parecem necessárias para a economia capitalista: a da propriedade privada e a de concorrência, embora esta possa ser dispensada.

A relação entre capitalismo e democracia parece ser apenas conjuntural: o resultado, em primeiro lugar, da luta da burguesia contra a aristocracia e o privilégio político desta; em segundo, da luta contra a ameaça do comunismo, enquanto inimigo da propriedade privada. Derrotados aristocratas e comunistas, o capitalismo, para o seu desenvolvimento, pode dispensar regimes democráticos, o que está a fazer diante dos nossos olhos. A América de Donald Trump é um caso exemplar, onde a corrosão das instituições democráticas e liberais está a ser fomentada e financiada por grandes interesses capitalistas. Contudo, há um outro fenómeno inquietante que ainda não é visível, mas que se está a desenhar: a destruição, para além das democracias, da liberdade da concorrência. Grandes interesses económicos gravitam o Estado em busca de protecção e de destruição dos concorrentes. Talvez a destruição em curso não seja apenas a das instituições democráticas, mas também da própria economia de mercado.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

A jovem Europa

Em 1923, Joseph Roth, referindo-se ao protagonista do seu primeiro romance, escreveu: “Era o jovem europeu: nacionalista e egoísta, sem fé, sem lealdade, sedento de sangue e limitado. Era a jovem Europa.” Este jovem europeu era protofascista e, com o andar dos anos, tornou-se fascista. O resultado é conhecido: o fascismo italiano, o nazismo alemão, diversas cópias, mais ou menos fiéis, em países europeus, e, acima de tudo, a segunda guerra mundial e o genocídio judaico. Os jovens europeus, no pós-guerra, foram-se tornando outras coisas. Derivaram para a esquerda, tornaram-se antifascistas. Um pouco mais tarde, foram campeões do liberalismo: primeiro, de costumes; depois, de mercado. A certa altura do percurso, a juventude europeia, como outras, mergulhou na internet e nas redes sociais, uma vida sedentária, sombria, vivida no quarto.

Agora, começa a descobrir-se que os jovens europeus estão cansados da vida sedentária. Enquanto a velha Europa definha numa crise demográfica de grandes proporções, aquela jovem Europa – na designação irónica do escritor austríaco – está de volta, com os mesmos jovens limitados, nacionalistas, egoístas, sem fé nem lealdade, e, começa a perceber-se, sedentos de sangue. Uma crise de masculinidade terá atingido parte dos rapazes e, desconfiados da sua natureza, parecem ter uma necessidade de exibir, como uma condecoração, a mais rasteira misoginia e um culto da violência, que começa a passar das redes sociais para as ruas. A discussão sobre se as actuais extrema-direita e direita populista são ou não fascistas é irrelevante. O importante é a pulsão que conduz muitos jovens – principalmente, do sexo masculino. E esta pulsão é violenta, nacionalista e, em potência, violenta.

A situação social e política em que vivemos é, do ponto de vista económico, social e político, muito diferente da que se vivia na Europa do fim da primeira guerra mundial. Contudo, há um ponto em comum: a proliferação do ressentimento. Foi o ressentimento de largas camadas da população que deu combustível ao fascismo e ao nazismo. Ora, apesar de as pessoas, mesmo as mais pobres, viverem muito melhor do que nessa altura, o ressentimento multiplica-se. Seja devido à presença de estrangeiros ou à comparação com as elites, a massa dos ressentidos, na qual a presença de jovens rapazes é significativa, cresce e está a tornar-se um problema para as democracias liberais. Nos anos vinte e trinta do século passado, os políticos democráticos foram impotentes para lidar com essa “jovem Europa”. Resta saber se, passado um século, aprenderam alguma coisa.