quinta-feira, 26 de junho de 2025

Simulacros e simulações (74)

Georgia O'keeffe, Black and Purple Petunias, 1925

Não são petúnias o que vemos, mas o seu simulacro. Alguém viu verdadeiras petúnias. O fascínio foi de tal ordem que decidiu simulá-las. Entrou, então, num jogo de simulações. Só parou quando, perante o simulacro produzido, pensou nas petúnias vistas. Aquelas, as originais, morreram, mas estas têm a aspiração da eternidade.

terça-feira, 24 de junho de 2025

A persistência da memória (31)

Theodor and Oskar Hofmeister, Apfelernte, 1898
Haverá ainda quem colha maçãs, talvez verdadeiros exércitos que invadem os pomares e num ritmo frenético roubam, com a ríspida desfaçatez da ignorância, o fruto à árvore a que pertence. Contudo, a memória que persiste no fundo do homem pertence a uma outra realidade. Um gesto lento, quase um rito sacrificial, desprende a maçã da macieira, para a depositar no cesto que a levará ao mercado e à mesa. Na colheita do fruto, manifesta-se um cuidado ancestral com a árvore que o trouxe à existência, uma reverência pelo dom e um sinal de fraternidade ente a coisa colhida e quem a colhe.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (16)

Ana Marchand, sem título, 2000 (Gulbenkian)

Morre pássaro insolente,

ave esquiva de asas tecidas

pela mão que escreve.

 

Morre, morre, aí mesmo

onde a noiva perdida

abriu o segredo sobre o altar.

 

Morre em teu voo nupcial,

ao som das folhas do plátano,

perdido no ouro do Outono.

 

[1993]

sábado, 21 de junho de 2025

Ensaio sobre a luz (129)

Fernando Lemos, Jardim, 1949 (Gulbenkian)

As árvores recreiam-se com jogos de luz e sombra. Com cuidado, como uma criança absorvida no exame de uma realidade desconhecida, seleccionam os raios luminosos de que se apropriam e os que deixam passar, para que na terra se desenhem infinitas configurações, que elas, na expressiva mudez em que vivem, contemplam com prolongado prazer.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Avatares, Influencers e Seguidores


Como estamos a destruir os nossos modelos de sociabilidade? O núcleo central dessa destruição parece residir nas redes sociais e nas suas estratégias algorítmicas. Contudo, há duas realidades que merecem uma atenção especial. Por um lado, o uso de avatares; por outro, o par influencers – seguidores. Ambos são modalidades que põem causa o modo como construímos a relação com os outros. Estas realidades virtuais têm um enorme potencial destrutivo, pois transitam facilmente do mundo digital para o mundo real, quando não o substituem de modo radical. Há dois problemas morais que estas realidades colocam.

O avatar é usado para manter o anonimato e esconder o rosto da pessoas por uma imagem simbólica. O rosto, segundo o ensinamento do filósofo Emmanuel Lévinas, não é apenas um conjunto de traços físicos, a composição de uma figura determinada pela lotaria genética e a interacção com o meio. O rosto do outro é manifestação  de uma diferença absoluta em relação a mim. É uma presença que me interpela e questiona. Mas também é a revelação de uma vulnerabilidade. Contudo, é essa vulnerabilidade que traz com ela um apelo dramático: não matarás! Quando se esconde o rosto através de um avatar, esconde-se a vulnerabilidade, mas também a injunção: não matarás! A qual está nos alicerces da nossa sociabilidade.

Se o Iluminismo nos trouxe alguma coisa de fundamental, foi não apenas o reconhecimento de que somos seres racionais, mas que isso tem consequências no campo moral e político. Seres racionais pensam por si próprios – mesmo quando se colocam no lugar do outro. Esse pensar por si é a marca da autonomia e da dignidade humana. O par influencers – seguidores é a subversão da ideia iluminista da autonomia da pessoa. O seguidor submete a sua opinião à opinião do influencer, aliena a sua autonomia de pensamento e com ela a dignidade que deve ser a essência de um ser dotado de razão.

Nada disto é inócuo. Nem a praga dos avatares, nem epidemia de influencers com os seus rebanhos de seguidores. Exploram a fragilidade humana, desarticulam o respeito pelas instituições da vida comum, abrem brechas na sociabilidade que permite vivermos uns com os outros. Os regimes democrático-liberais fundam-se no respeito que o rosto do outro me exige e na concepção de que temos uma dignidade porque somos seres que conseguem pensar por si mesmos. São estes pilares que estão a ser, visivelmente, corroídos. Uma situação para a qual, as democracias parecem não saber como lidar com ela.

terça-feira, 17 de junho de 2025

Alma Pátria 72: José Afonso, Balada de Outono


 


Retomemos esta rubrica com José Afonso. Não aquele que é mais conhecido, mas um outro que está na sua origem, o que cantava fados e baladas de Coimbra. A visão de um Zeca Afonso revolucionário, com as suas canções de intervenção, ofusca o arcaico Dr. José Afonso. O que encontramos neste é, muito curiosamente, a música onde se expressa de uma forma fundamental aquilo que se poderia chamar de sentimento português. Não se trata, nesta fase musical do autor de Os Vampiros, de um nacionalismo à maneira do Estado Novo, mas de uma afirmação da especificidade portuguesa. Balada de Outono, editada num EP de 1960, é um claro exemplo dessa portugalidade a que José Afonso, em vários momentos da sua carreira musical, deu voz. 

domingo, 15 de junho de 2025

Prosa dos dias (33) Ridículo

Ilse Bing, Cancan Dancers, Moulin Rouge, 1931

Não poucas vezes, uma fotografia mostra-nos o ridículo que habitava no passado. As que mais sofrem são aquelas que pretendem celebrar um momento, um modo de vida, ou dar testemunho da época. Para essas, o tempo age sem piedade. Quanto mais ele passa, tanto pior se torna a realidade que foi retida para a eternidade mortal da vida humana. Contrariamente ao que se pensa, o passado não é imutável. Ele muda continuamente, arrastado pela voragem do tempo, tornando-se cada vez mais estranho, mais fastidioso, mais ridículo.

sexta-feira, 13 de junho de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (15)

Joaquin Sorolla y Bastida, Beach Promenade

Vens luminosa

e tudo se apaga

no lugar indeciso

onde a terra

se abre

sob a seiva

do silêncio

ao mistério azul

das ondas do mar.

 

[1993]

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Máximas (25)

Felix Vallotton, sem título, 1917

 Quando os estúpidos e os canalhas se juntam, o mundo começa a arder.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Uma grave cegueira

Diego Rivera, Las Ilusiones, 1944

A ideologia é uma modalidade grave de cegueira. Muitas vezes, irrecuperável. O artigo de Vicente Nunes - Público, Brasil - mostra um exemplo. Os brasileiros que podem votar nas eleições portuguesas deram, em número muito apreciável, o seu voto a André Ventura. Agora, o líder do Chega pretende proibir o reagrupamento familiar, que muitos desses imigrantes esperam ansiosamente. Todos os sinais estavam lá, mas as pessoas, movidas pela ideologia, não conseguem ver. Melhor: não querem ver. Este fenómeno não atinge apenas os brasileiros em Portugal. Basta ver que, mesmo nos EUA, muitos imigrantes votaram naquele que os está a expulsar. Há uma atracção pelo abismo e as pessoas, à beira desse abismo, não hesitam em dar o passo em frente. Certamente, que o governo e os socialistas acabarão por tomar medidas que os beneficiem, tratando-os como pessoas. Contudo, se governo e oposições responsáveis esperam reconhecimento deles, podem esperam sentados. Os votos irão para quem os quer expulsar.

sábado, 7 de junho de 2025

Encontros


Imagino que as últimas eleições terão sido oportunidade para belos e significativos encontros. Não é difícil pensar, sem ficar fora da verdade, que, em muitas empresas, patrões e empregados terão ambos votado no Chega. Uns, os empregados, porque ganham pouco e trabalham muito, outros, os empregadores, porque os colaboradores (como agora se diz), devido aos sindicatos, à esquerda e à democracia, ganham demais e colaboram de menos. Imagino que, no dia em que Ventura chegar ao poder, ambos ficarão felizes: os empregados passarão a ganhar mais e os patrões a pagar menos.

Outro encontro inesperado foi dos jovens rapazes com a sua masculinidade. Encontraram-na na cabine de voto. É de homem, pensaram ao pôr a cruz. O mundo tornou-se um lugar difícil para muitos jovens do sexo masculino. A escola é uma coisa boa para encontrar amigos, mas estudar é uma chatice. Coisa de meninas. E as meninas assim o fazem. Ocupam o topo dos resultados e entram nas faculdades que pretendem, para cursos que dão rendimentos interessantes, e em que cada vez menos rapazes entram. Uma masculinidade ferida pelas exigências escolares encontra a sua redenção na cruz do voto. O salvador irá pôr as mulheres no sítio, abolir a necessidade do esforço escolar e dar aos homens aquilo a que têm direito.

Outro encontro feliz foi o do eleitor atormentado com a presença de imigrantes. Foi à cabine de voto para se desencontrar com eles e encontrar-se consigo. Pouco lhe interessa que sejam o trabalho e as contribuições desses imigrantes que lhe permitirão ter uma reforma, quando chegar o dia. Imigrantes, coisa horrível, tornam feia a paisagem humana da pátria, uma poluição visual. Mais vale morrer de fome aos 70 anos, do que suportar estas pessoas a fazerem aquilo que os portugueses não querem fazer, contribuir para que a economia não se afunde e a Segurança Social não colapse. De súbito, o eleitor atormentado descobriu a sua vocação: mártir em nome da pureza da raça.

Todo o resto, nas eleições de 18 de Maio, foram desencontros. Os partidos de esquerda desencontram-se com o seu eleitorado, quem sabe se num divórcio irremediável. A Iniciativa Liberal e o Livre subiram, mas desencontraram-se com os seus objectivos: a potência foi menor que o desejo. Até a AD de Luís Montenegro, apesar da vitória e do crescimento, se desencontrou com uma maioria que lhe permitisse fazer o que lhe vai na alma. Os portugueses – parte substancial, não se generalize – parecem muito animados e desejosos de ver o país mergulhado na confusão. E como se sabe, não há melhor lugar para encontros do que a confusão.

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Comentários (29)

Pablo Picasso, The Bottle of Wine, 1925-1926

Despertei este vinho
do seu sono de doze anos
Daniel Jonas

Como o vinho, também o espírito pode dormir durante doze anos, muitas vezes mais e, muitas outras, por toda a vida. Como há vinhos que nunca acordam, também há espíritos que permanecem uma existência sem dar um sinal de vida. Chegaram a este mundo exaustos e não encontram em si a força para se elevarem à vigília. Talvez a temam, pois é o caminho para o despertar. Não, não é o despertar que vem em primeiro lugar e, só depois, chega a vigília. Esta é a porta pela qual o espírito pode encontrar o caminho para o seu despertar, para as provações que o esperam e para a descoberta de que entrou num caminho sem fim.

terça-feira, 3 de junho de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (14)

Teresa Magalhães, sem título, 1981 (Gulbenkian)

Se o dia cai

em teus olhos,

um augúrio

de água

ergue-se

na voz

lêveda do mar.


[1993]

domingo, 1 de junho de 2025

Por detrás dos resultados eleitorais


Olhando para o resultado eleitoral de 18 de Maio, importa perceber o que se está, subterraneamente, a mover para gerar os resultados a que se chegou. Parte-se de duas premissas. Em primeiro lugar, este mover-se da configuração eleitoral vem de trás — não apenas de há um ano. Em segundo lugar, não se trata de um movimento nacional, mas atinge parte substancial do denominado mundo ocidental. Há excepções, claro, mas são muito específicas. A análise centra-se em três domínios: social, cultural e político. 

Do ponto de vista social, a derrota da esquerda — em especial a do Partido Comunista, uma derrota que acentua as muitas que vem sofrendo há longos anos — torna evidente que os conflitos sociais e as lutas de classe deixaram de poder ser enquadrados na velha oposição entre proletariado e burguesia e na retórica da revolução. Hoje, as classes populares não querem revoluções nem se sentem parte de uma classe. Revoltam-se porque a vida não lhes permite expandir a afirmação da sua individualidade através do consumo e das práticas de reconhecimento social. A sua revolta não é contra os patrões, mas contra as elites intelectuais e políticas, que funcionam como bode expiatório. 

O resultado obtido pelo Bloco de Esquerda (BE) simboliza um eleitorado que não está interessado nas causas fracturantes que foram a agenda do BE e de parte do Partido Socialista. As questões de género, de identidades sexuais, de interpretação da história — tudo isso sofreu uma derrota substancial. O confronto cultural que a esquerda, a partir de certa altura, decidiu erguer como bandeira contra a direita salda-se, nesta hora, numa pesada derrota. A esquerda substituiu o antigo conflito contra a religião por um conflito cultural. Ora, este não é mais do que velho conflito religioso, agora secularizado. 

Por fim, a questão política. Em primeiro lugar, a implosão, acontecida já noutros países, da tradicional dicotomia direita–esquerda. A esquerda tornou-se irrelevante para as coisas essenciais, como a revisão constitucional. Isto não significa que a velha dicotomia esteja morta — está muito doente. Contudo, o dado essencial é outro. Do ponto de vista político, estas eleições representam uma dura derrota para as visões cosmopolitas, para a ideia de cidadania mundial. O eleitorado português, como o de muitos outros países, está a reivindicar o retorno ao velho Estado-Nação e às regras de inclusão e exclusão que eram as dele. Esta é a nota política mais importante. 

Em síntese: afirmação de um novo eixo da luta de classes, derrota da esquerda na guerra cultural e afirmação do poder de atracção do velho Estado-Nação e do nacionalismo que lhe subjaz.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Nocturnos 129

William Hogarth, A Noite, 1738
Não é a escuridão que faz a essência da noite, mas antes as sombras que as delidas iluminações humanas projectam sobre o mundo. Movem-se no silêncio e fluem como água de um rio sereno, onde, na aparente placidez, se escondem as ameaças mais perigosas.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Partido Socialista - uma pulsão de morte

Jean-Michel Basquiat, Riding with Dead, 1988

Se se quer uma prova de que a esquerda está habitada por uma pulsão suicidária, basta olhar para o processos em curso de substituição da liderança socialista. É verdade que, desde há muito, o Partido Socialista perdeu o carácter originário. A única coisa que lhe interessa é a ocupação do poder. Contudo, mesmo nessa óptica é estranho que depois de Pedro Nun Santos, um jovem turco mal preparado e sem qualquer capacidade de penetrar no eleitorado, se entregue nas mãos de José Luís Carneiro, um mestre-escola com o carisma de uma tartaruga moribunda. Perante a futura liderança socialista, os eleitores perguntar-se-ão: por que razão haveremos de votar num PS de Carneiro se já temos o PSD de Montenegro ou de outro que lhe venha a suceder? Não me ocorre nenhum razão substantiva.

O problema, porém, está muito longe de ser este. O Partido Socialista ao mudar de líder como muda de camisa, está apostado numa coisa: evitar a todo o custo discutir as razões que o levaram à queda. Não quer discutir as razões sociais que conduziram a um desencontro entre o partido e a sociedade. Não quer discutir as razões políticas da pesada derrota que sofreu. Fundamentalmente, não quer discutir a própria natureza do partido, da sua estrutura e das suas práticas, tudo coisas que têm levado os eleitores a olhar os socialistas com desconfiança. Este não querer enfrentar a própria realidade - sob o alibi de que isso poderia prejudicar o partido nas eleições autárquicas - é o sintoma de uma doença profunda que atinge os socialistas portugueses, à imagem do que acontece com outros partidos irmão na Europa. Os socialistas tinham escolhido um mau caminho com Pedro Nuno Santos e pagaram por isso. Agora vão mudar radicalmente para que tudo fica radicalmente como está.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Simulacros e simulações (73)

Lagoa Henriques, sem título, 1974 (Gulbenkian)
Há um momento em que, ao envelhecer, os homens iniciam uma lenta metamorfose. O corpo perde as fronteiras e vai-se transformando, sem pressa, numa árvore. Não em qualquer árvore, mas naquela que um dia se sonhou ser a autêntica árvore do paraíso.

sábado, 24 de maio de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (13)

José Sanléon, Cuadrado blanco, 1989
 

Pássaros brancos

de asas fluviais.

Aves vergadas

ao peso da tarde,

inclinadas

para a sombra.

Corvos calados

na cal do silêncio.

 

[1993]

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Beatitudes (80) Poente

William Gordon Shields, Sunset on New York Bay, 1915-20

Também no fim existe uma beleza inexplicável, como se o que acaba pertencesse a dois mundos: aquele de onde parte e aquele que o espera. Rasgada a passagem, a luz de um e de outro lado mistura-se e deixa cair um véu que vela o olhar para o abrir para o que até então era invisível.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Abandonados pelo voto popular

Camille Pissarro, Fiesta en la ermita, 1878

Um dos dados mais importantes das eleições de domingo foi o abandono da esquerda pelo voto popular. Os resultados são aterradores para os partidos tradicionais de esquerda. Não apenas porque, no conjunto, estão reduzidos no número de deputados – 68 em 230, mas porque o eleitorado que os abandonou muito dificilmente retornará. Parte substancial do eleitorado do Chega (isto já tinha acontecido nas eleições do ano passado) vem da esquerda. São pessoas que estão revoltadas com a sua situação social e cansaram-se tanto do reformismo socialista como da retórica revolucionária do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda.

Não querem saber de transformações colectivas, nem da luta dos trabalhadores ou das minorias. O centro do seu interesse político é a sua vida. Votaram no partido que imaginam dar corpo à sua revolta. É uma esperança do desespero. Imaginaram, durante muito tempo, que seria a política de esquerda que levaria o Estado a resolver os seus problemas. Como o Estado é impotente para o fazer, pois cada um depende de si mesmo, mudaram não o modo de pensar, mas o sentido de voto. Tornam a imaginar que um partido ou o seu líder lhes resolverá o problema. É uma ilusão que levará tempo a ser desfeita.

E enquanto a ilusão popular no salvífico messias se não desfizer, a esquerda fica confinada a um eleitorado da classe média, um eleitorado educado, elitista, mas que não é suficiente para a fazer retornar ao poder. Perder parte substancial do voto popular é uma derrota muito mais grave para a esquerda do que o miserável número de assentos parlamentares que obteve. Pode ser o sintoma de uma doença crónica muito grave, que se arrastará no tempo, mas que pode não encontrar solução.

domingo, 18 de maio de 2025

Falando de democracia


O filósofo norte-americano David Estlund, numa resposta à ideia de um regime epistocrático (um regime onde o governo estaria na mão dos sábios), argumenta que a participação colectiva produz, tendencialmente, melhores resultados do que uma governação de peritos isolados. Há em Estlund uma aposta razoável na competência da comunidade em fazer escolhas. Contudo, esta aposta tem um problema. Ela é, na verdade, baseada numa apreciação empírica das democracias. Não há uma relação necessária – e a priori – entre decisão colectiva e boa decisão. Podemos mesmo estar a entrar numa fase em que, devido à grande complexidade da vida social, as comunidades, movidas pelo sentimento, a emoção e o ressentimento, façam escolhas péssimas. Os primeiros tempos da nova administração Trump parecem dar argumentos a esta visão. Assiste-se, nos dias de hoje, a verdadeiros testes a essa sabedoria colectiva. E não é líquido que ela tenha nota positiva.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Um novo Papa


A eleição de um novo Papa é um acontecimento sempre marcante, apesar de se viver, na Europa, em sociedades cada vez mais estranhas ao cristianismo. Uma das grandes preocupações, antes, durante e após a eleição de Leão XIV, era se o sucessor de Francisco seria conservador ou progressista. Assiste-se já a um ataque da extrema-direita ao novo Papa por não ser um conservador, e, à esquerda, desconfia-se de que não será tão progressista quanto se esperaria. Há, em tudo isto, um equívoco. Termos como conservador e progressista são provenientes de uma ordem de coisas que não a religião e encerram neles a confissão de paixões políticas. Ora, se há uma paixão que deve guiar um Papa, é a Paixão de Cristo — e não as paixões políticas. Mesmo para um Papa, isso não é fácil.

O Sumo Pontífice não é apenas o sucessor de Pedro. Este, além de uma pessoa, é uma função. Por isso, qualquer Papa é, de novo, Pedro, a pedra sobre a qual o Cristo edifica a sua Igreja. Se olharmos para os textos evangélicos, encontramos dois episódios centrais para compreender esta função entregue a um ser humano. Em primeiro lugar, o reconhecimento. A função petrina é instaurada após a pergunta de Cristo: Quem dizeis vós que Eu sou? E Simão Pedro responde: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo. Contudo, a interpretação deste episódio não pode ser desligada da leitura de um outro: o da tripla negação de Cristo por Simão Pedro, na noite em que Jesus foi preso pelos poderes deste mundo e a sua Paixão era iminente. Qualquer Papa vive na tensão entre o reconhecimento de Cristo e a negação desse reconhecimento perante o perigo. Essa negação é, na verdade, a condescendência submissa aos poderes deste mundo.

As tentações conservadoras e progressistas dos Papas são as três negações de Pedro, no mundo moderno, perante a proximidade da Paixão do Mestre. São a cedência aos poderes do mundo, às suas paixões políticas e ao temor perante o significado da Paixão crística. Isto não torna os Papas heréticos. Mostra-os, à semelhança de Pedro, como homens frágeis perante um acontecimento que ultrapassa a compreensão humana. A função papal inclui, deste modo, o reconhecimento de Cristo como Filho de Deus, mas também a negação de que se pertence ao seu mundo. João Paulo II é louvado pela sua luta contra o comunismo; Francisco, pela sua denúncia da injustiça social. Ora, em ambos os casos, isso constitui a fraqueza perante a Paixão eterna do Filho de Deus. É a sua negação. Contudo, esta negação não ofusca o essencial: a resposta à pergunta Quem dizeis vós que Eu sou? Na economia da crença católica, o Papa é o que diz: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (12)

Sam Francis, Around the Blues, 1957-1962

Fulgura uma colmeia azul

na carne ferida pelas mãos,

a boca cansada de pólen.


Fulgura um fogo de água

no voo cego de um anjo,

a quietação do anoitecer.

 

[1993]

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Simulacros e simulações (73)

Eduardo Anahory, sem título, 1983 (Gulbenkian)
Pensamos cidades tomadas pela pureza da geometria, como se fossem fruto de um excesso de racionalidade ou do mais improvável dos acasos. Depois, gera-se um mapa em que as ruas crescem como linhas rectas que se cruzam numa quadrícula. Espreitamos esse mundo, e nele não há homens, nem cães, nem pássaros; e as árvores ali plantadas inclinam-se para a morte tomadas pelo pavor da solidão.

sábado, 10 de maio de 2025

Prosa dos dias (32) Coroação

Hans Baumgartner, Der Milchmann. Zürich, 1938

Aquilo que há de prosaico nos dias é a sua dura submissão à necessidade. Os homens movem-se, impelidos por essa mola real, e seguem em diante, arrebatados pela deusa impiedosa. Não percebem, contudo, que, no texto obscuro das suas vidas, uma outra divindade — uma musa, dir-se-á — trabalha, discreta e silenciosa, para que a necessidade se torne cada vez menos necessária. Até ao dia em que se assiste à sua deposição e, no seu trono, é coroada, como rainha eterna e inevitável, a pura liberdade.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Um novo Papa

Hoje foi escolhido um novo Papa. Três sinais interessantes. Em primeiro lugar, a Europa está em perda dentro da Igreja Católica. Enquanto os europeus se vão afastando da Igreja, esta parece procurar âncoras noutros lados. Dois Papas vindos do Novo Mundo é mais do que um mero acaso. É uma orientação.

Em segundo lugar, a escolha do nome: Leão XIV. Se esta escolha pretende significar alguma coisa, e faz sentido que assim seja, isso significa o restabelecer de uma ligação com o Papa Leão XIII. A atenção que este deu à questão operária - em polémica tanto com o liberalismo como com o socialismo - é a sua imagem de marca. Leão XIV parece predisposto a dar atenção não já tanto à questão operária, mas à dos pobres e dos desfavorecidos. A questão social continua viva na Igreja.

Por fim, uma das frases emblemáticas das suas primeiras palavras. Para começar, escolheu a paz de Cristo, essa paz desarmada e desarmante, como disse. Isto mostra que continuará a haver, por parte da Igreja Católica, uma atenção muito especial aos problemas da paz e da guerra. Não uma atenção inscrita na política deste mundo, mas radicada na mensagem evangélica. Uma paz que não é a dos homens, numa política que não é deste mundo.

terça-feira, 6 de maio de 2025

Faça a sua enciclopédia


O primeiro livro da Metafísica de Aristóteles começa com a afirmação: todos os homens, por natureza, desejam saber. Mobiliza como prova o prazer que os sentidos – e, acima de todos, o da visão – nos proporcionam, independentemente da utilidade que têm. O desejo de saber faz parte da nossa natureza. É no século XVIII que surge uma primeira grande resposta ao desejo de ter qualquer conhecimento à mão, embora já tivessem surgido, há muito, outras tentativas, embora menos articuladas. Trata-se da Enciclopédia, de Diderot e d’Alembert. Estes autores tinham a pretensão de reunir e organizar todo o saber humano. A partir daí, cresceram as enciclopédias. Em Portugal, foram famosas a Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e a Enciclopédia Verbo

Com a chegada da internet, o mundo da enciclopédia modificou-se radicalmente. Houve algumas que desapareceram, outras que se adaptaram, como a inglesa Encyclopædia Britannica e a francesa Encyclopædia Universalis. Trocaram o papel pelo digital e tornaram-se acessíveis, sem perder qualidade, à generalidade das pessoas. Uma das revoluções no domínio enciclopédico foi o nascimento, em 2001, da Wikipedia: uma enciclopédia completamente digital, de acesso livre, construída colaborativamente e em actualização contínua. Como se sabe, enfrenta problemas de fidedignidade, mas tem sido um instrumento de grande utilidade para muitos milhões de pessoas em todo o mundo. A Wikipedia tem uma natureza mais comunitarista, proporcionada pelo estabelecimento de laços, através da rede, entre pessoas que jamais teriam, de outro modo, qualquer projecto comum.

Hoje, porém, numa perspectiva liberal, cada um de nós pode fazer a sua enciclopédia. Os chatbots, como o ChatGPT (OpenAI) e o Gemini (Google), oferecem um modelo denominado pesquisa profunda: fazem investigações altamente estruturadas e orientadas pelos pedidos que lhes são feitos, devolvendo um relatório articulado sobre o assunto solicitado. Têm uma grande elasticidade. Basta que o utilizador peça uma nova investigação do mesmo assunto, a partir de outro ponto de vista, e, em poucos minutos, tê-la-á. Cada um pode ir construindo a sua enciclopédia, conforme o seu desejo de saber. Estas enciclopédias pessoais – com o aumento contínuo da informação disponível online e com o desenvolvimento da capacidade de detectar erros por parte dos chatbots – estão em incessante melhoria, tornam-se organismos vivos. Isto é uma revolução. Traz consigo tanto o perigo de uma hiperindividualização do conhecimento, com a diluição de critérios comuns, como a virtude da democratização do acesso ao saber. Para quem não deixou morrer em si o desejo natural de saber, é uma grande tentação.

domingo, 4 de maio de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (11)

Victor Vasarely, 166 Sirs-Kek, 1953

Deslizam palavras pelas ruas,

sílabas na poeira do coração.

Iremos tão longe na terra.

Iremos à casa do silêncio.

Iremos ao som esboçado

no velho rio da gramática,

na crina da névoa ao arder.

 

[1993]


sexta-feira, 2 de maio de 2025

Educação e Inteligência Artificial


 A democratização do uso da inteligência artificial (IA) é o maior desafio dos últimos 2 600 anos — época em que emergiu a filosofia — colocado aos processos formais de educação das novas gerações. Como deve evoluir o ensino num mundo em que a IA pode fornecer sistematizações rápidas e profundas de informação? Corremos um risco: o recurso passivo à IA pode impedir que as novas gerações desenvolvam um conjunto de competências intelectuais importantes e que isso traga uma paradoxal diminuição da inteligência na espécie. Como deve evoluir o ensino para que a espécie se adapte ao novo ambiente? Que lugar devem ter os tradicionais exercícios de memorização e de sistematização? Que lugar deve ter o desenvolvimento, desde muito cedo, das capacidades de interrogação crítica, avaliação reflexiva e redescrição criativa da informação?

Qual é o solo a partir do qual pode florescer a inteligência crítica, qual é a terra que é preciso não descurar na educação, para que a planta se desenvolva e floresça? Esse solo são as velhas competências da memória e da sistematização da informação (a sua classificação e organização). Se esse solo não for cuidado, toda a semente lançada nele morrerá. Isto não significa que métodos arcaicos de ensino sejam a solução. Significa outra coisa: é necessário que os responsáveis pela educação e os professores encontrem a melhor maneira de trabalhar o desenvolvimento dessas competências básicas. O importante não é se a metodologia é nova ou tradicional, mas que funcione, que conduza os alunos a fortalecer os processos ligados à memória e à sistematização.

Se a informação sistematizada pela IA se encontra à distância de um prompt (a questão posta ou tarefa pedida à IA), as novas gerações necessitam de desenvolver, para além das competências tradicionais, outras bem mais complexas. Precisam de aprender a interrogar a IA, de cultivar competências lógico-matemáticas e de avaliação crítica da informação gerada, bem como de fomentar a capacidade de articular dados para resolver problemas práticos ou cognitivos. Precisam de ser activos na relação com a IA e não receptores passivos — caminho certo para a estupidificação. O novo ambiente gerado pela IA não vem substituir o esforço dos alunos. Vem exigir mais esforço no desenvolvimento das competências básicas e no das mais elevadas. Ambas têm de ser mais sólidas. O caminho será compatibilizar o desenvolvimento das competências básicas da memória e da sistematização com as mais exigentes do pensamento crítico e reflexivo. A IA não veio trazer o descanso, mas um esforço mais complexo e profundo na aprendizagem. Só sobreviverá quem se tornar mais inteligente, não menos.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Cadernos do esquecimento 56 Gramática

Fred Kradolfer, sem título, 1930 (Gulbenkian)

Há uma gramática da memória que, como todas as gramáticas, articula a fonética, a morfologia e a sintaxe daquilo que se recorda e do que é entregue ao esquecimento. A fonética memorial observa a sonoridade da recordação, enquanto a morfologia medita sobre a formação das unidades mnemónicas e o modo como, partindo de unidades mínimas, se estruturam noutras mais amplas. Por fim, a sintaxe ocupa-se dos exercícios combinatórios dessas unidades, estruturando paisagens, como grandes textos que nos trazem o que estava oculto. Sobre tudo isso reina o esquecimento — não como uma ameaça, mas como o campo de possibilidade de onde emerge o que escapa ao olvido.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Marlen Haushofer, A Parede


Publicado em 1963, A Parede é o romance mais conhecido de Marlen Haushofer (1920–1970), escritora austríaca cuja obra explora a solidão, o isolamento e a condição humana perante a fragilidade da existência. A obra é a experimentação literária de um cenário hipotético, uma experiência de pensamento para explorar a condição humana. A protagonista – sem nome na história – está de visita a uma casa de campo de uns primos. À noite, eles saem para ir à aldeia. Quando ela de manhã acorda, depara-se com um cenário inesperado: uma parede transparente e inexpugnável tinha aparecido, separando-a do resto do mundo. Fica isolada, apenas na companhia do cão da família e de alguns animais. Compreende que qualquer coisa se passou do outro lado da parede, de onde a vida terá desaparecido.

Um dos testes que o romance faz está relacionado com a natureza social do homem. Somos seres em relação, diz-se. O romance questiona: e se ficarmos isolados? Se toda a sociabilidade humana desaparecer porque sou apenas um? A parede é uma metáfora para pensar o processo de hiperindividualização por que passava já, nos anos sessenta do século passado, a sociedade ocidental. Essa hiperindividualização significa, na prática, um corte com os outros, mesmo que com eles se conviva socialmente ou até na vida amorosa. O indivíduo, na sua afirmação radical, transporta a parede que o isola de todos os outros, os quais deixam de ter para ele uma existência real. O romance hiperboliza a experiência social de isolamento e torna visível aquilo que o hábito e a vida quotidiana ocultam. A estranha parede que separa a protagonista é o símbolo da parede que torna estranhos, para cada um de nós, qualquer outro ser humano.

A alteração no espaço, a limitação da liberdade de ir para além da parede, devolve, paradoxalmente, à protagonista uma liberdade radical. Toda a convenção social, toda a regra moral, toda a lei jurídica, tudo o que resulta do processo de regulação social, cuja finalidade é limitar as liberdades individuais naquilo que têm de danoso para os outros, desapareceu. Apenas a lei da natureza a limita. Essa experiência de uma liberdade absoluta tem o condão de, ao ver-se livre das regras sociais, a colocar perante os seus limites animais. Ela precisa de sobreviver, de organizar a vida não para e com os outros, mas para si e apenas consigo. Quando se elimina a convenção – que diminui e, por vezes, sufoca a nossa liberdade – o que descobrimos é a pura necessidade. Ela vai ter de aprender a trabalhar a terra, de cuidar da vaca que encontrou, do cão que herdou ou da gata que, na sua independência, usa a sua hospitalidade. O efeito paradoxal do romance é mostrar, sem nunca o afirmar, que a liberdade só existe em sociedade – nessa mesmo que nos coage e nos limita; fora dela, só encontramos a necessidade animal.

Se no romance o espaço se limitou, o tempo sofreu uma metamorfose. Ficar naquela situação e ter de sobreviver significa sair do tempo histórico e entrar num tempo cíclico, o tempo da natureza. O tempo histórico é linear: uma linha que vem do passado em direcção ao futuro, que é preenchida pelos acontecimentos da vida social da humanidade. É essa linearidade que conduz, por necessidade da própria razão humana, a colocar nesse passado um tempo mítico originário e, no futuro, uma qualquer ideia de fim da história. Tudo isso é agora evacuado pelos ritmos da natureza, com as suas épocas de sementeiras e de colheitas, com a sua dinâmica de um eterno retorno das mesmas tarefas. Não há história sem comunidade humana, sem o trágico da acção, sem a disputa interminável entre homens e comunidades.

Esta saída da história e a perda de sentido do calendário põem à protagonista um problema de referenciação temporal. Como se orientará, nesse seu novo mundo, no tempo? Há uma dupla estratégia de referenciação. A primeira é a da já referida ciclicidade da natureza, com os trabalhos necessários para assegurar a sobrevivência, segundo o ritmo das estações. A segunda é a escrita do diário como modalidade de consolidação da memória e de referenciação temporal. O romance é o diário da protagonista, o registo da sua existência enquanto exemplar único de uma espécie que parece ter-se extinguido. Pode pensar-se, na interpretação do romance, a escrita do diário de dois pontos de vista. Por um lado, como um acto de resistência ao desaparecimento da humanidade. Por outro, como o registo dos momentos finais dessa mesma humanidade. O mais plausível é pensar essa escrita dirigida a si mesma como um acto de resistência e um registo de apagamento, uma espécie de objecto que se poderá tornar um monumento, embora não exista ninguém para o ler. Um guia na temporalidade até à hora em que já não haverá qualquer ser que tenha consciência dessa temporalidade.

Mais do que o desaparecimento da sociabilidade humana e o confronto com a necessidade estrita da sobrevivência, numa situação em que os processos de cooperação desapareceram, o romance acaba por reforçar – na experiência do isolamento mais radical – a natureza social dos seres humanos. A protagonista cria uma comunidade com os animais à sua volta. O cão Lince, a vaca Bella, com o seu filho, a gata e as suas ninhadas. A comunidade – o viver com os outros – revela-se assim como inescapável. Desaparecidos os seres humanos, há que encontrar uma nova comunidade, para que a vida continue a ser possível. E é aqui que se revela uma das ideias centrais do livro. Essa comunidade assenta não na utilidade, mas no cuidado. A protagonista cuida dos seus animais não porque lhe sejam úteis, mas para os proteger. Isto permite repensar todo o romance como uma metáfora sobre a necessidade de substituir, nas relações humanas, o ethos da relação utilitária, que isola e coisifica as pessoas, por um ethos do cuidado, por um dever de atenção ao outro, mesmo que esse outro não tenha o rosto que esperamos.

sábado, 26 de abril de 2025

Liberdade e democracia

Ana Hatherly, Ruas de Lisboa, 1977 (Gulbenkian)

Ontem, julgo que numa iniciativa do Banco de Portugal, Pacheco Pereira afirmou que a liberdade chegou na tarde de 25 de Abril de 1974, mas que a democracia ficou claramente instaurada apenas na revisão constitucional de 1982. A distinção entre liberdade e democracia nem sempre é compreendida. Podemos ter liberdade – pelo menos em tese – sem termos um regime democrático. Podemos ter uma democracia sem termos liberdade. Aliás, são duas realidades que não raras vezes entram em choque. Essa era já uma preocupação do pensador político francês do século XIX, Alexis de Tocqueville.

É possível conceber uma sociedade onde não há um método de escolha dos governantes, mas na qual não existe censura, nem polícia política, nem perseguição por motivos ideológicos ou políticos. As pessoas são livres de fazer o que entenderem das suas vidas, inclusive são livres de criticar os detentores do poder, mas não têm o direito de escolher quem as deverá governar ou de participar nessa governação. É estranho para os nossos hábitos mentais, mas no conceito de liberdade individual não se inclui necessariamente o direito de escolher a governação.

Por outro lado, podemos conceber um regime democrático, onde existe o direito de participar na escolha dos governantes, mas em que a liberdade é restringida. A democracia pode ser uma ditadura da maioria, onde esta, legitimada pelo voto, diminui as liberdades da minoria ou certas liberdades individuais. É isso que se passa nas denominadas democracias iliberais: são formalmente democracias, mas as liberdades estão condicionadas.

Dizer que uma democracia é liberal não é o mesmo que dizer que é uma democracia representativa. Esta pode, através de representantes eleitos, limitar ou negar as liberdades individuais. Dizer que uma democracia é liberal significa que é democrática – depende do voto da maioria na escolha dos governantes –, mas que, em momento algum, as maiorias têm a capacidade de eliminar os direitos das minorias ou dos indivíduos.

O 25 de Abril, de facto, trouxe de imediato as liberdades; a democracia liberal foi uma lenta construção, que teve alguns percalços no caminho, em que os portugueses aprenderam a compatibilizar o voto maioritário com o respeito pelos direitos individuais e das minorias derrotadas nas urnas. É muito importante defender a democracia, mas não qualquer democracia. É importante defender um regime que seja capaz de compatibilizar a escolha por maioria popular dos governantes com a defesa dos direitos individuais, mesmo que estes não agradem, circunstancialmente, à maioria vencedora.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (10)

Ben Shahn, The Red Stairway, 1944

Mundo sem sombra nem sol,

dedilhado sobre a noite,

imperfeito como um pretérito,

o passado aceso ao meio-dia.

 

Abrem-se ali rugas no calcário

e escaras no portão descaído,

uma rosa no vestido rasgado,

e fresco, o hálito da invernia.

 

Vou por uma rua esburacada,

iluminada de malmequeres,

seixos, a caliça nas paredes.

 

Lugar sem frutos, a poalha

entre campos, as mãos caídas,

caídas ao zunir da varejeira.

 

[1993]

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Como morrem as democracias (3)


Nos quatro países que representam o núcleo duro da cultura europeia – Itália, França, Alemanha e Inglaterra –, os partidos de extrema-direita e de direita radical/populista têm agora mais intenções de voto, medidas em diversas sondagens, do que qualquer partido democrático.

No caso de Itália, esses partidos estão no governo. Em França, a distância entre o partido da senhora Le Pen e o do presidente Macron é demasiado significativa. Em Inglaterra e na Alemanha, o Reform UK e o AfD estão a começar a ultrapassar os grandes partidos tradicionais – isto, para não falar de países como a Holanda, a Áustria, a Eslováquia, a Hungria ou a República Checa.

O que impressiona em tudo isto é a impotência com que as forças democráticas assistem ao crescimento das intenções de voto naqueles que não prezam particularmente as democracias liberais. Nem o confrangedor exemplo vindo dos EUA, com a eleição de um amigo dessas forças, demove os eleitores de, paulatinamente, se entregarem nos braços de aventureiros.

A erosão das democracias liberais vem de trás; pode ser um processo relativamente longo, mas, a continuar assim, parece ser inevitável. Às forças demo-liberais parece faltar duas coisas: imaginação para repensar o modo de acção e, acima de tudo, vontade política para enfrentar os problemas que estão a conduzir os eleitores para fora da democracia liberal.