quinta-feira, 26 de junho de 2025

Simulacros e simulações (74)

Georgia O'keeffe, Black and Purple Petunias, 1925

Não são petúnias o que vemos, mas o seu simulacro. Alguém viu verdadeiras petúnias. O fascínio foi de tal ordem que decidiu simulá-las. Entrou, então, num jogo de simulações. Só parou quando, perante o simulacro produzido, pensou nas petúnias vistas. Aquelas, as originais, morreram, mas estas têm a aspiração da eternidade.

terça-feira, 24 de junho de 2025

A persistência da memória (31)

Theodor and Oskar Hofmeister, Apfelernte, 1898
Haverá ainda quem colha maçãs, talvez verdadeiros exércitos que invadem os pomares e num ritmo frenético roubam, com a ríspida desfaçatez da ignorância, o fruto à árvore a que pertence. Contudo, a memória que persiste no fundo do homem pertence a uma outra realidade. Um gesto lento, quase um rito sacrificial, desprende a maçã da macieira, para a depositar no cesto que a levará ao mercado e à mesa. Na colheita do fruto, manifesta-se um cuidado ancestral com a árvore que o trouxe à existência, uma reverência pelo dom e um sinal de fraternidade ente a coisa colhida e quem a colhe.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (16)

Ana Marchand, sem título, 2000 (Gulbenkian)

Morre pássaro insolente,

ave esquiva de asas tecidas

pela mão que escreve.

 

Morre, morre, aí mesmo

onde a noiva perdida

abriu o segredo sobre o altar.

 

Morre em teu voo nupcial,

ao som das folhas do plátano,

perdido no ouro do Outono.

 

[1993]

sábado, 21 de junho de 2025

Ensaio sobre a luz (129)

Fernando Lemos, Jardim, 1949 (Gulbenkian)

As árvores recreiam-se com jogos de luz e sombra. Com cuidado, como uma criança absorvida no exame de uma realidade desconhecida, seleccionam os raios luminosos de que se apropriam e os que deixam passar, para que na terra se desenhem infinitas configurações, que elas, na expressiva mudez em que vivem, contemplam com prolongado prazer.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Avatares, Influencers e Seguidores


Como estamos a destruir os nossos modelos de sociabilidade? O núcleo central dessa destruição parece residir nas redes sociais e nas suas estratégias algorítmicas. Contudo, há duas realidades que merecem uma atenção especial. Por um lado, o uso de avatares; por outro, o par influencers – seguidores. Ambos são modalidades que põem causa o modo como construímos a relação com os outros. Estas realidades virtuais têm um enorme potencial destrutivo, pois transitam facilmente do mundo digital para o mundo real, quando não o substituem de modo radical. Há dois problemas morais que estas realidades colocam.

O avatar é usado para manter o anonimato e esconder o rosto da pessoas por uma imagem simbólica. O rosto, segundo o ensinamento do filósofo Emmanuel Lévinas, não é apenas um conjunto de traços físicos, a composição de uma figura determinada pela lotaria genética e a interacção com o meio. O rosto do outro é manifestação  de uma diferença absoluta em relação a mim. É uma presença que me interpela e questiona. Mas também é a revelação de uma vulnerabilidade. Contudo, é essa vulnerabilidade que traz com ela um apelo dramático: não matarás! Quando se esconde o rosto através de um avatar, esconde-se a vulnerabilidade, mas também a injunção: não matarás! A qual está nos alicerces da nossa sociabilidade.

Se o Iluminismo nos trouxe alguma coisa de fundamental, foi não apenas o reconhecimento de que somos seres racionais, mas que isso tem consequências no campo moral e político. Seres racionais pensam por si próprios – mesmo quando se colocam no lugar do outro. Esse pensar por si é a marca da autonomia e da dignidade humana. O par influencers – seguidores é a subversão da ideia iluminista da autonomia da pessoa. O seguidor submete a sua opinião à opinião do influencer, aliena a sua autonomia de pensamento e com ela a dignidade que deve ser a essência de um ser dotado de razão.

Nada disto é inócuo. Nem a praga dos avatares, nem epidemia de influencers com os seus rebanhos de seguidores. Exploram a fragilidade humana, desarticulam o respeito pelas instituições da vida comum, abrem brechas na sociabilidade que permite vivermos uns com os outros. Os regimes democrático-liberais fundam-se no respeito que o rosto do outro me exige e na concepção de que temos uma dignidade porque somos seres que conseguem pensar por si mesmos. São estes pilares que estão a ser, visivelmente, corroídos. Uma situação para a qual, as democracias parecem não saber como lidar com ela.

terça-feira, 17 de junho de 2025

Alma Pátria 72: José Afonso, Balada de Outono


 


Retomemos esta rubrica com José Afonso. Não aquele que é mais conhecido, mas um outro que está na sua origem, o que cantava fados e baladas de Coimbra. A visão de um Zeca Afonso revolucionário, com as suas canções de intervenção, ofusca o arcaico Dr. José Afonso. O que encontramos neste é, muito curiosamente, a música onde se expressa de uma forma fundamental aquilo que se poderia chamar de sentimento português. Não se trata, nesta fase musical do autor de Os Vampiros, de um nacionalismo à maneira do Estado Novo, mas de uma afirmação da especificidade portuguesa. Balada de Outono, editada num EP de 1960, é um claro exemplo dessa portugalidade a que José Afonso, em vários momentos da sua carreira musical, deu voz. 

domingo, 15 de junho de 2025

Prosa dos dias (33) Ridículo

Ilse Bing, Cancan Dancers, Moulin Rouge, 1931

Não poucas vezes, uma fotografia mostra-nos o ridículo que habitava no passado. As que mais sofrem são aquelas que pretendem celebrar um momento, um modo de vida, ou dar testemunho da época. Para essas, o tempo age sem piedade. Quanto mais ele passa, tanto pior se torna a realidade que foi retida para a eternidade mortal da vida humana. Contrariamente ao que se pensa, o passado não é imutável. Ele muda continuamente, arrastado pela voragem do tempo, tornando-se cada vez mais estranho, mais fastidioso, mais ridículo.

sexta-feira, 13 de junho de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (15)

Joaquin Sorolla y Bastida, Beach Promenade

Vens luminosa

e tudo se apaga

no lugar indeciso

onde a terra

se abre

sob a seiva

do silêncio

ao mistério azul

das ondas do mar.

 

[1993]

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Máximas (25)

Felix Vallotton, sem título, 1917

 Quando os estúpidos e os canalhas se juntam, o mundo começa a arder.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Uma grave cegueira

Diego Rivera, Las Ilusiones, 1944

A ideologia é uma modalidade grave de cegueira. Muitas vezes, irrecuperável. O artigo de Vicente Nunes - Público, Brasil - mostra um exemplo. Os brasileiros que podem votar nas eleições portuguesas deram, em número muito apreciável, o seu voto a André Ventura. Agora, o líder do Chega pretende proibir o reagrupamento familiar, que muitos desses imigrantes esperam ansiosamente. Todos os sinais estavam lá, mas as pessoas, movidas pela ideologia, não conseguem ver. Melhor: não querem ver. Este fenómeno não atinge apenas os brasileiros em Portugal. Basta ver que, mesmo nos EUA, muitos imigrantes votaram naquele que os está a expulsar. Há uma atracção pelo abismo e as pessoas, à beira desse abismo, não hesitam em dar o passo em frente. Certamente, que o governo e os socialistas acabarão por tomar medidas que os beneficiem, tratando-os como pessoas. Contudo, se governo e oposições responsáveis esperam reconhecimento deles, podem esperam sentados. Os votos irão para quem os quer expulsar.

sábado, 7 de junho de 2025

Encontros


Imagino que as últimas eleições terão sido oportunidade para belos e significativos encontros. Não é difícil pensar, sem ficar fora da verdade, que, em muitas empresas, patrões e empregados terão ambos votado no Chega. Uns, os empregados, porque ganham pouco e trabalham muito, outros, os empregadores, porque os colaboradores (como agora se diz), devido aos sindicatos, à esquerda e à democracia, ganham demais e colaboram de menos. Imagino que, no dia em que Ventura chegar ao poder, ambos ficarão felizes: os empregados passarão a ganhar mais e os patrões a pagar menos.

Outro encontro inesperado foi dos jovens rapazes com a sua masculinidade. Encontraram-na na cabine de voto. É de homem, pensaram ao pôr a cruz. O mundo tornou-se um lugar difícil para muitos jovens do sexo masculino. A escola é uma coisa boa para encontrar amigos, mas estudar é uma chatice. Coisa de meninas. E as meninas assim o fazem. Ocupam o topo dos resultados e entram nas faculdades que pretendem, para cursos que dão rendimentos interessantes, e em que cada vez menos rapazes entram. Uma masculinidade ferida pelas exigências escolares encontra a sua redenção na cruz do voto. O salvador irá pôr as mulheres no sítio, abolir a necessidade do esforço escolar e dar aos homens aquilo a que têm direito.

Outro encontro feliz foi o do eleitor atormentado com a presença de imigrantes. Foi à cabine de voto para se desencontrar com eles e encontrar-se consigo. Pouco lhe interessa que sejam o trabalho e as contribuições desses imigrantes que lhe permitirão ter uma reforma, quando chegar o dia. Imigrantes, coisa horrível, tornam feia a paisagem humana da pátria, uma poluição visual. Mais vale morrer de fome aos 70 anos, do que suportar estas pessoas a fazerem aquilo que os portugueses não querem fazer, contribuir para que a economia não se afunde e a Segurança Social não colapse. De súbito, o eleitor atormentado descobriu a sua vocação: mártir em nome da pureza da raça.

Todo o resto, nas eleições de 18 de Maio, foram desencontros. Os partidos de esquerda desencontram-se com o seu eleitorado, quem sabe se num divórcio irremediável. A Iniciativa Liberal e o Livre subiram, mas desencontraram-se com os seus objectivos: a potência foi menor que o desejo. Até a AD de Luís Montenegro, apesar da vitória e do crescimento, se desencontrou com uma maioria que lhe permitisse fazer o que lhe vai na alma. Os portugueses – parte substancial, não se generalize – parecem muito animados e desejosos de ver o país mergulhado na confusão. E como se sabe, não há melhor lugar para encontros do que a confusão.

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Comentários (29)

Pablo Picasso, The Bottle of Wine, 1925-1926

Despertei este vinho
do seu sono de doze anos
Daniel Jonas

Como o vinho, também o espírito pode dormir durante doze anos, muitas vezes mais e, muitas outras, por toda a vida. Como há vinhos que nunca acordam, também há espíritos que permanecem uma existência sem dar um sinal de vida. Chegaram a este mundo exaustos e não encontram em si a força para se elevarem à vigília. Talvez a temam, pois é o caminho para o despertar. Não, não é o despertar que vem em primeiro lugar e, só depois, chega a vigília. Esta é a porta pela qual o espírito pode encontrar o caminho para o seu despertar, para as provações que o esperam e para a descoberta de que entrou num caminho sem fim.

terça-feira, 3 de junho de 2025

O Silêncio da Terra Sombria (14)

Teresa Magalhães, sem título, 1981 (Gulbenkian)

Se o dia cai

em teus olhos,

um augúrio

de água

ergue-se

na voz

lêveda do mar.


[1993]

domingo, 1 de junho de 2025

Por detrás dos resultados eleitorais


Olhando para o resultado eleitoral de 18 de Maio, importa perceber o que se está, subterraneamente, a mover para gerar os resultados a que se chegou. Parte-se de duas premissas. Em primeiro lugar, este mover-se da configuração eleitoral vem de trás — não apenas de há um ano. Em segundo lugar, não se trata de um movimento nacional, mas atinge parte substancial do denominado mundo ocidental. Há excepções, claro, mas são muito específicas. A análise centra-se em três domínios: social, cultural e político. 

Do ponto de vista social, a derrota da esquerda — em especial a do Partido Comunista, uma derrota que acentua as muitas que vem sofrendo há longos anos — torna evidente que os conflitos sociais e as lutas de classe deixaram de poder ser enquadrados na velha oposição entre proletariado e burguesia e na retórica da revolução. Hoje, as classes populares não querem revoluções nem se sentem parte de uma classe. Revoltam-se porque a vida não lhes permite expandir a afirmação da sua individualidade através do consumo e das práticas de reconhecimento social. A sua revolta não é contra os patrões, mas contra as elites intelectuais e políticas, que funcionam como bode expiatório. 

O resultado obtido pelo Bloco de Esquerda (BE) simboliza um eleitorado que não está interessado nas causas fracturantes que foram a agenda do BE e de parte do Partido Socialista. As questões de género, de identidades sexuais, de interpretação da história — tudo isso sofreu uma derrota substancial. O confronto cultural que a esquerda, a partir de certa altura, decidiu erguer como bandeira contra a direita salda-se, nesta hora, numa pesada derrota. A esquerda substituiu o antigo conflito contra a religião por um conflito cultural. Ora, este não é mais do que velho conflito religioso, agora secularizado. 

Por fim, a questão política. Em primeiro lugar, a implosão, acontecida já noutros países, da tradicional dicotomia direita–esquerda. A esquerda tornou-se irrelevante para as coisas essenciais, como a revisão constitucional. Isto não significa que a velha dicotomia esteja morta — está muito doente. Contudo, o dado essencial é outro. Do ponto de vista político, estas eleições representam uma dura derrota para as visões cosmopolitas, para a ideia de cidadania mundial. O eleitorado português, como o de muitos outros países, está a reivindicar o retorno ao velho Estado-Nação e às regras de inclusão e exclusão que eram as dele. Esta é a nota política mais importante. 

Em síntese: afirmação de um novo eixo da luta de classes, derrota da esquerda na guerra cultural e afirmação do poder de atracção do velho Estado-Nação e do nacionalismo que lhe subjaz.