terça-feira, 22 de julho de 2025

Joseph Roth, A Teia de Aranha (Das Spinnennetz)


No fim do capítulo XVIII, o autor dá-nos a chave do romance: Era o jovem europeu: nacionalista e egoísta, sem fé, sem lealdade, sedento de sangue e limitado. Era a jovem Europa. O romance – o primeiro de Joseph Roth – foi publicado em folhetins no jornal vienense Arbeiter-Zeitung. Durante décadas passou despercebido na obra do escritor austríaco. Só foi editado em livro em 1967. A redescoberta do romance acabou por se inserir num momento em que alemães e austríacos se interrogavam sobre a cumplicidade dos pais com o nazismo, o que confere à obra um curioso estatuto. Aquando da sua primeira publicação em folhetins, podia ser vista como uma profecia dos tempos a vir. Nos anos sessenta, porém, ela era uma obra de arqueologia, onde se podia descobrir, com uma precisão impensável, os processos de formação da personalidade nazi-fascista. Nos dias que correm, ela pode ter ainda uma outra função: a de aviso. De certo modo, estão a voltar os tais jovens europeus: nacionalistas, egoístas, sem fé, sem lealdade, sedentos de sangue e limitados.

Não se pense, todavia, que o interesse do romance reside nas suas implicações políticas. Estas são um meio para atingir um fim: a análise do papel do ressentimento na subjectividade moderna. A obra é uma exploração da consciência de Theodor Lohse, um tenente desmobilizado do exército alemão, a análise da tensão entre os desejos que acalenta e a realidade que é a sua. O espaço que existe entre ambos é o solo onde o ressentimento vai crescer. A limitação que o caracteriza não lhe permite confrontar-se consigo mesmo, perceber quais são, no âmbito de uma moralidade saudável, as suas forças e as suas possibilidades. É ela – a limitação – que o conduz a odiar os judeus, os socialistas, os movimentos operários. São, para Theodor Lohse, os culpados da sua situação. O outro não o interpela no sentido do respeito, mas é aquele que o impede de ser aquilo que deseja ser. O ressentimento nasce, assim, para utilizar uma expressão do campo da psicanálise, de uma ferida narcísica.

Esse narcisismo dilacerado, turbilhonado pelo ressentimento, transforma-se num duplo egoísmo: o pessoal e o nacional. O protagonista principal é um nacionalista, pois a sua ferida narcísica é também a de uma Alemanha ressentida, derrotada na Grande Guerra de 1914-1918, submetida ao jugo do Tratado de Versalhes pelas potências vitoriosas. O romance permite perceber que o nacionalismo é um narcisismo colectivo. Imerso nesse ambiente, Lohse, na ânsia de encontrar uma autonomia – isto é, poder e dinheiro –, põe em acção todas as características que marcam o jovem europeu de então. Não apenas o egoísmo e o nacionalismo, mas também a falta de fé, a ausência de lealdades e a sede de sangue. Para subir, não hesita em assassinar os que estão acima de si na hierarquia. O ressentimento é o combustível para as maiores degradações morais.

O título A Teia de Aranha (Das Spinnennetz) é uma imagem tanto da situação em que a Alemanha vivia durante a República de Weimar, como das pretensões do protagonista. A derrota alemã e o fim da Monarquia tinham atirado o país para uma enorme teia de contradições, de interesses, de agitações políticas, de frustrações sociais, onde elites corruptas vicejavam e tentavam controlar, em seu favor, a situação. Também o protagonista se imaginava a aranha que tece a sua teia, onde os incautos vão caindo, enquanto ele se fortalece ao devorá-los. No entanto, a sua limitação não lhe permite perceber que ele próprio é uma mosca em teias que outros tecem, como o espião judeu Benjamin Lenz e a própria mulher Elsa von Schlieffen. Lenz é um niilista e odeia tudo: a Europa, o Cristianismo, os judeus, os monarquias, as repúblicas, a Filosofia, os partidos, os ideais, as nações. É superiormente dotado e manipula tudo e todos. Espia para Lohse, espia para os comunistas, espia para a polícia. O dinheiro que ganha com isso nem é para ele, envia-o para a família. O seu prazer é, parecendo irrelevante, ser o manobrado central. É ele que promove Theodor Lohse, que lhe apresenta as pessoas certas, que o faz ter o nome nos jornais, que lhe apresenta a mulher, uma jovem aristocrata já sem dinheiro, mas com ambições e saber manipulatório suficiente para, obedecendo em aparência ao carácter autoritário do marido, o conduzir na ascensão social e política.

Beneficiando, da sua experiência de jornalista de grande talento, Joseph Roth retrata, com profundidade, a situação social da Alemanha. Fá-lo, adoptando as orientações estéticas da nova objectividade que tinha surgido em conflito com o expressionismo, como superação de uma visão hiperbólica da dimensão sentimental. Theodor Lohse, Benjamin Lenz e Elsa von Schlieffen são, ao mesmo tempo, personagens credíveis na sua singularidade e arquétipos ideais. Theodor Lohse encarna o autoritário protofascista. Benjamin Lenz, o judeu desenraizado. Elsa von Schlieffen, a aristocrata derrotada pelo empobrecimento da família e o fim da Monarquia, mas ambiciosa por retornar ao centro do poder. Se há, porém, um traço que os une é o niilismo. Este alimenta-se de uma enorme gama de inclinações: o ressentimento, o narcisismo, a ambição, o desejo de manipular, a vontade de poder. E é isso que Roth mostra, não sem uma funda ironia narrativa, numa Berlim à deriva, num mundo onde ordem e desordem se confundem.

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