segunda-feira, 29 de junho de 2020

A Garrafa Vazia 2

William Congdon, Crocefisso 1 b, 1960.jpg

Sou a sombra feita
de sangue,
cobra convalescente
arrastando
a terra contra
o muro,
uma palavra de pedra,
uma cruz de silêncio
nascida
no novelo da noite.

Novembro de 2019

sábado, 27 de junho de 2020

Descrições fenomenológicas 51. Espelhos pintados

Guillermo Pérez Villalta, Aquí y allí, 1989

Numa feira de velharias, um homem alto, com um boné que se usaria nos anos cinquenta do século passado, vende uns espelhos insólitos, daqueles que havia nas casas de banho de gente menos tocada pela sorte, por cima do lavatório, para os homens fazerem a barba vigiando os gestos, a precisão da lâmina no recorte da face, e as mulheres pentearem os cabelos, se tinham de ir a algum sítio mais respeitável, uma visita ao médico ou ao padre para confissão, uma loja para comprar alguma extravagância fora das necessidades do dia-a-dia. Neles, rapazes e raparigas viam-se e mediam a sua beleza, contemplavam-se sem pudor, uns com placidez, outros com fúria. Agora ninguém compra espelhos desses e o vendedor, com ar de pertencer a uma época que expirou há muito, reinventou-os para algum apreciador de curiosidades e coisas destituídas de sentido. Foram pintados com cenas do quotidiano e quem se olhar neles vê o mundo, como se o mundo fosse a imagem de cada um. O homem fala devagar, não força a compra, apenas sorri. É um trabalho de artista, di-lo sem hesitação e expressa-o na face bem escanhoada, que contrasta com o colarinho amarrotado da camisa, a saltar por cima da gola do casaco. Há nestas pinturas uma certa propensão para multidões, gente que se encontra ao acaso em ruas e praças, mas também cenas onde as pessoas se reúnem sob o desígnio de algum objectivo comum, comícios, procissões, jogos de futebol. Noutros espelhos, em menor número, observam-se cenas domésticas, algumas naturezas mortas, uma família reunida à volta de uma telefonia, como se diria há muito, um pai sentado a fumar, enquanto lê o jornal e o filho rebola pelo chão. O vendedor compõe a gravata, abotoa e desabotoa o casaco, que em tempos terá tido alguma glória, boa fazenda, agora surrada, quase no fio. O rosto anguloso contrasta com o de uma mulher, rubicundo e redondo, pintada num dos espelhos. A mão dela ficou presa na eternidade, quando ainda se deslocava para a cabeça onde ia compor os cabelos, ajeitar o gancho que os prendia. Um cliente, homem também ele de outra era, louva o artista, qual o preço daquele ali o fundo, pergunta enquanto aponta para um espelho pintado, preso a um escaparate no extremo oposto. É muito caro, diz, quando o vendedor lhe revela o preço, entre olhares esperançados, treinados na avaliação de quem se propõe comprar. Metade disso, alvitra o apreciador de espelhos pintados. O marchand sorri com condescendência, passa mão pela testa. É um trabalho artístico e é preciso pagar o engenho. Silêncio, não há resposta. Para si, vendo-o um pouco mais barato, um acordo para ficarmos a meio caminho entre o que peço e o que oferece. É uma questão de justiça e, na verdade, faço-lhe, diz com a voz pausada, um favor. Desenha-se no ar um clima de hesitação, as partes avaliam-se, medem desejos e necessidades. O cliente aquiesce e é sua a obra de arte, um espelho pintado onde se vêem duas maçãs avermelhadas sobre um prato verde a imitar uma couve lombarda. O vendedor embrulha a obra com cuidado, protege-a dos choques que o caminho possa trazer, envolve-a em folhas de jornal, que cobre com papel pardo e remata o empacotamento colocando a peça dentro de um saco de plástico azul desmaiado. Para que chegue a casa sem se partir, remata. O outro diz que sim com a cabeça e sorri. Pega no que agora é seu e afasta-se em silêncio, talvez a fantasiar sobre o préstimo a dar àquele espelho onde ninguém se há-de querer remirar.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Nocturnos 15

Micha Bar Am, Father Neophitus, St. Katharina Monastery, Sinai, 1967
Nem a luz quebra o desconsolo trazido pela vigília da noite. As horas passam, o fumo dos cigarros eleva-se e as trevas densas, quando a manhã as expulsa, prometem voltar de novo, com o seu cortejo de lutos e desenganos.

terça-feira, 23 de junho de 2020

A nova realidade

Ilse Bing, Kloster Reichenau am Bodensee, 1929

A evolução da pandemia pelo mundo e também em Portugal parece indicar que o problema veio para ficar, que o vírus se instalou e que temos de conviver mesmo com a sua presença e a ameaça que ela representa. Nos últimos dias, os instintos dionisíacos têm-se manifestado com alguma potência, com pessoas a procurarem grandes aglomerações perante o olhar de um Apolo perplexo, que parece agora, com as medidas anunciadas pelo primeiro-ministro, querer reagir e instaurar uma ordem mais severa. Se as pessoas pensavam que era uma questão de semanas ou mesmo de alguns, poucos, meses, que tudo voltaria ao exacto ponto onde nos encontrávamos, estão a descobrir que a realidade não é bem assim. Parece que vai ser uma longa viagem, onde teremos todos de aprender a viver de uma outra maneira. Se não quisermos cair no mais fundo pessimismo e se um princípio de esperança fizer sentido, ele estará encerrado nas palavras encontradas numa obra medieval de autor desconhecido, Tratado da Casa Interior ou da Edificação da Consciência. A certa altura, o autor diz: e aquilo que fatiga o lutador coroa o vencedor. Tal como as coisas se apresentam nesta hora, só uma luta persistente e cansativa – contra o vírus, mas também contra hábitos e valores ainda em vigência – coroará, se coroar, o vencedor. Parece que precisamos tanto de uma nova casa exterior como de uma interior, para podermos habitar neste novo mundo.

domingo, 21 de junho de 2020

Radicais e moderados


Na segunda-feira passada, o Presidente da República fez uma intervenção na televisão sobre a vandalização da estátua do Padre António Vieira. Chamou a atenção para que nenhum dos verdadeiros problemas da pobreza, da discriminação e do racismo se resolve com estas acções. É verdade, mas este tipo de acções, por idiotas que sejam, tem o poder de revelar o conflito político central dos nossos dias. Este não é entre a direita e a esquerda, entre adeptos do mercado e adeptos do estado ou entre identitários e cosmopolitas, mas aquele que opõe radicais e moderados.

Este conflito é decisivo para o destino da vida civilizada. Circunstâncias múltiplas abriram caminho para o crescimento de programas e práticas políticas radicais. O que significa essa radicalização em termos práticos? De forma crua e simples, significa o desejo de aniquilamento do outro, a afirmação que ele não tem lugar na comunidade e que deve ser suprimido. Dito de outra forma, os radicais desejam a guerra civil. Esta emerge quando os adversários políticos se transformam em inimigos. Estaremos à beira da guerra civil? Em Portugal e nos países da nossa área política, a resposta é não. Contudo, o crescimento de alternativas políticas populistas e o desaparecimento do respeito por aqueles que pensam de maneira diferente são sintomas da doença e esses existem mesmo em Portugal. Há gente a semear ódio e a tentar incendiar o clima político do país.

O mais importante, no actual momento político, nacional e internacional, é que os moderados de todas as causas se façam ouvir, ganhem espaço público, conquistem terreno, para que possam estender a mão aos seus adversários, para que evitem que se entre na lógico do amigo e do inimigo. Ser moderado não significa não ter convicções. Significa apenas que se reconhece que as convicções humanas são falíveis e que ao lado das nossas razões haverá outras que merecem ser escutadas e debatidas. Significa que os homens não devem ser mortos ou espancados por causa das ideias que defendem.

A democracia fornece um dispositivo para decidir, a cada momento, quais as ideias que devem governar, mas ela só pode existir se, para além das eleições, os moderados, da esquerda e da direita, forem largamente maioritários. Quando a democracia se entrega nas mãos de radicais, as paixões exacerbadas destes e a violência acabarão por destruí-la. A questão que nos devemos colocar, à esquerda e à direita, é se gostaríamos de ver Portugal e a Europa transformados em Venezuelas ou em Brasis, para dar exemplos de radicalismos de cores diferentes.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

A Garrafa Vazia 1

William Congdon, Black city on gold river, 1949

São de subúrbio as ruas
onde espaireço
a erva da cólera
e gorgolejo a cerveja
bebida à beira
do acaso.

Ergo o gládio e corto
as garras,
palavras que
te enfeitam
irisadas na ira
bebida em tua boca.

Agosto de 2019

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Javier Marías, Os Enamoramentos


O romance de Javier Marías é, ante de mais, uma reflexão prática sobre o que é a literatura, em especial o género romanesco. Há no romance, como há muito foi salientado por Milan Kundera, uma contraposição com a filosofia. Se em Descartes, no início da era moderna, se procura a certeza fundada no que é claro e distinto, se múltiplas tradições filosóficas até aos nossos dias se instalaram nesse registo de busca de uma verdade, o romance, pelo contrário, vive da incerteza, da obscuridade e da indiferenciação. É este registo que deliberadamente Javier Marías explora em Os Enamoramentos, um romance de 2011. A primeira frase da obra torna de imediato claro esse registo. A narradora, Maria Dolz, começa a narrativa dizendo A última vez que vi Miguel Desvern ou Daverne foi também a última vez que a mulher, Luísa, o viu. A imprecisão do nome de Miguel é a chave para o leitor entrar no texto.

Aparentemente, a trama gira em torno do assassinato de Desvern ou Davern, um esfaqueamento perpetrado por um sem-abrigo, meio louco, e tomado pela polícia como um acaso, um azar da vítima estar naquele lugar àquela hora. É quando vê a notícia no jornal que Maria descobre o nome dele, embora o conhecesse e à mulher há muito, espiando-os da mesa do café onde todos iam. O estado de enamoramento que o casal apresentava tinha chamado a sua atenção e dedicara-se durante todo esse tempo a um discreto embora persistente e fantasioso voyeurismo. Este enamoramento modelar, que funciona para Maria Dolz como um arquétipo, é construído por ela não por uma investigação objectiva, não por quaisquer provas consistentes, mas pela apreensão visual de um comportamento no espaço público, embora circunscrito, de um café e das adições fantasiosas que uma imaginação produz em resposta a um desejo erótico que a realidade teima em não satisfazer.

O desejo de se aproximar de Luísa, essa personagem sombra que, como tal, assombra todo o romance, fá-la encontrar Javier Díaz-Varela, o melhor amigo do assassinado e agora protector da viúva. Este, enamorado de Luísa, espera a hora em que ela feche a porta por onde entra a memória fantasmática do marido e a abra para o seu desejo. É neste encontro que nasce um novo enamoramento, o de Maria por Javier, embora sem esperança de passar para além de uma aventura com destino marcado. Esta aventura permite, porém, à narradora perceber que o assassinato acidental Miguel talvez não o tivesse sido, mas decorresse antes de um plano cuidadosamente meditado por Javier. O pior, porém, é que mesmo sendo esse o caso, ela não sabe as verdadeiras razões que o terão movido, se um pacto com o amigo, se o desejo pela mulher deste.

O que torna o romance de Marías particularmente interessante é o facto dele pegar em dois subgéneros romanescos – um trivial romance de amor e um vulgar thriller policial – e conduzir uma meditação sobre a natureza da arte do romance e da sua relação com a verdade e a certeza do que se passa nas vidas humanas. Se nas ciências da natureza ainda será possível aspirar a um conhecimento objectivo, embora revisível, da realidade, nos assuntos humanos, a única coisa que existe são subjectividades que interpretam os acontecimentos a partir do ponto de vista onde se encontram, nunca sendo claras nem as motivações que movem os actores nem, tão pouco, os actos que estes executam. Pode-se ler este romance, sem o violentar, como um exercício de desconstrução das narrativas jurídicas, do valor dos procedimentos que articulam o processo jurídico, da probidade das provas e da pretensão de condenar alguém baseado na verdade dos factos.

O caso de nunca se descobrir a verdade sobre a morte daquele cujo nome era incerto não se deverá, deste modo, à incapacidade de investigação ou mesmo a um truque literário para deixar ao leitor a possibilidade de continuar a obra, completando-a e esclarecendo na sua imaginação recriadora o que se teria passado, mas à própria inexistência de uma verdade. Aliás, isso é reforçado pelo próprio Javier que, na sua ligação fortuita com Maria, fala da novela de Balzac, O Coronel Chabert, um herói das guerras napoleónicas que, como D. João de Portugal, no Frei Luís de Sousa, é dado como morto. Esse equívoco permitiu à suposta viúva refazer a vida e quando ele volta, descobre que está a mais, que não devia ter voltado do lugar da morte. Esta obsessão pela obra de Balzac torna ainda mais obscuro o enredo, porque o leitor não deixará de se interrogar se na verdade o marido de Luísa terá efectivamente morrido. É apenas uma leve suspeita, mas no intrincado das relações humanas não há estatuto epistémico mais elevado que o da suspeita.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Ensaio sobre a luz (83)

Lee Friedlander, New York city, 1966
De súbito, a luz é maculada pela sombra, uma figura recorta-se numa outra, abrindo uma passagem por onde, como num jogo perigoso, o mundo se pudesse precipitar na maior obscuridade.

sábado, 13 de junho de 2020

Erguer e derrubar estátuas

Giorgio Chirico, Sol naciente sobre la plaza, 1971

Quando se tem uma idade já considerável é mais difícil embarcar no discurso de que derrubar estátuas é um atentado contra a História. Construir e derrubar estátuas fazem parte da dança da História, de uma dança que enquanto existirem seres humanos não terá fim. O que irrita aqueles que se irritam com o derrube de estátuas não é que se profane a História mas que se esteja a fazer a História, a servir a História, será mais preciso. Os que hoje se irritam com o derrube de estátuas de um escravocrata aplaudiram a queda das estátuas que celebravam os heróis do comunismo. Aquilo que os derrubadores actuais não vêem é que eles não são em nada diferentes daqueles que erguem estátuas. Todos eles simples marionetas de uma realidade que lhes foge do controlo, de uma divindade cujos humores e decretos escapam aos desígnios humanos. Não há estátua que não seja ominosa para alguém. Não há estátua que não seja prova de glória para alguém. O que hoje a História decreta como digno de glória, será amanhã apontado por essa mesma História como merecedor de repulsa. Não é que os valores que presidem aos diferentes erguer e derrubar de estátuas se equivalham moralmente. Não equivalem, mas seria um equívoco pensar que certos derrubes ou certos ergueres de estátuas indiquem o lugar para onde a História corre. Uma coisa que se aprende com o tempo é que História não tem um destino marcado mesmo moral para onde se dirigir. Como o espírito, ela sopra para onde lhe apetece, volúvel, caprichosa, fazendo das paixões humanas o instrumento da sua diversão.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini


O Jardim dos Finzi-Contini, o mais importante romance do italiano Giorgio Bassani, originário da comunidade judaica de Ferrara, é uma dupla incursão no tempo. Como uma rememoração tardia de algo que se passou há duas ou três décadas é um confronto com o calendário, com uma duração que se estrutura em passado, presente e futuro, o tempo cronológico, o qual se convencionou que ordenaria a vida dos homens, nem que fosse para lhe determinar a duração e assinalar o tempo de trabalho, de festa e de ócio. No entanto, essa rememoração, esse mergulho no passado, tem por objecto uma confrontação com uma outra forma de compreender o tempo a que os gregos deram o nome de Kairós, o tempo oportuno, esse momento em que se dá uma abertura na realidade para que algo aconteça.

A rememoração do passado a que o narrador se entrega dá-se no final dos anos cinquenta do século passado, enquanto os acontecimentos objecto da anamnese decorrem antes do início da segunda guerra mundial e passam-se no interior da comunidade judaica de Ferrara, que até à chegada das leis raciais promulgadas pelo governo fascista de Benito Mussolini se encontrava completamente integrada, de tal maneira que muitos judeus, como o próprio pai do narrador, estavam inscritos no partido fascista. São as leis raciais, inspiradas pela paranóia nazi, que alteram essa integração das boas famílias judias nos círculos mais distintos de Ferrara, que confinaram alguns jovens judeus, mas não só, no jardim do palácio dos Finzi-Contini, também eles judeus, mas que mantiveram sempre uma distância aristocrática com a comunidade judaica e com as autoridades fascistas.

O romance abre praticamente com a revelação, durante uma visita inopinada em 1957 ao mausoléu dos Finzi-Contini, do destino trágico da família. Alberto, amigo do narrador, morrera cedo com um linfoma, ainda antes da deportação em massa dos judeus para campos de concentração na Alemanha, para onde foram enviados o pai, a mãe e a irmã, Micol. Nenhum sobreviveu. O romance contudo não se centra na crescente ameaça que paira sobre a comunidade judaica, embora esse ameaça esteja omnipresente, como se fora o cenário onde as relações do narrador, cujo nome nunca se chega a saber, com a família Finzi-Contini, em especial com a belíssima Micol, se desenrolam.

A narrativa rememoradora das relações entre o narrador e Micol centra-se, embora de forma sub-reptícia, sobre o Kairós, sobre o momento oportuno. Qual o instante em que o coração de uma mulher se abre para um homem? Falhar esse momento, não entrar pela abertura na hora em que ela se dá, tem como consequência falhar o amor. O narrador ao contar os diversos episódios das relações entre ambos, relações que começam ainda em crianças e que se prolongam até  à idade de jovens universitários, interroga-se se num certo momento não deveria ter beijado Micol, se não teria sido essa a hora em que o coração dela seria a porta que ele atravessaria em direcção ao seu corpo. Perdida a oportunidade, o que se descobre é que esse corpo se torna numa muralha inexpugnável.

Rememorar seja o que for significa coloca-lo à distância, instituir um afastamento, o que no caso das relações entre o narrador e Micol é o selar de um triplo afastamento. O primeiro trazido pela eventual perda do momento oportuno, fruto de um desacerto na relação com o Kairós, o segundo trazido pela história e consumado com a morte de Micol num campo de concentração e o último, o que certifica a realidade definitiva do afastamento através do deambular da memória pelos campos do passado, uma memória que é detonada pelo monumental, embora horrível, jazigo quase vazio dos Finzi-Contini. O facto do corpo de Micol morta não se encontrar ali acaba, porém, por tornar quase irreal a sua existência, bem como tudo aquilo que o narrador viveu nas sua relação com a família dos Finzi-Contini. A rememoração tem um efeito terapêutico, libertando aquele que a ela recorre dos miasmas que lhe poluem a consciência, entregando os mortos à sua morte e limpando o futuro dos vivos das sombras que o passado nele projecta.

terça-feira, 9 de junho de 2020

A Casa Esquecida 15

Jackson Pollock, Alchemy, 1947

Sussurras na sombra das árvores,
a casa perdida no mosto da memória,
a noite a descer em cânticos e órgãos,
a igreja onde nunca nos encontrámos.

Como hei-de pronunciar as palavras,
breves delitos, o sulco do homicídio?
Colho rosas presas em teus cabelos
e entro pela porta do esquecimento.

(1981)

domingo, 7 de junho de 2020

A falta de comparência nas Presidenciais


Tornou-se um hábito nacional a inexistência de um candidato forte que se oponha à reeleição dos Presidentes da República em exercício. A única excepção é a de 1980 em que Ramalho Eanes enfrentou Soares Carneiro. Nem a candidatura de Manuel Alegre contra Cavaco Silva, aquando da reeleição deste, pode ser considerada como uma aposta forte do centro-esquerda na corrida a Belém. Na prática, o que se passa em Portugal é que um Presidente é eleito por 10 anos.

Se exceptuarmos o caso de Ramalho Eanes, que foi reeleito num tempo em que a democracia portuguesa ainda procurava encontrar o seu caminho, os outros presidentes – Mário Soares, Jorge Sampaio, Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa – esforçaram-se por liquidar, durante o primeiro mandato, a possibilidade de emergir um concorrente sério que lhe pusesse em causa a reeleição. Todavia isto não se deve apenas ao talento político daqueles que ocupam o palácio de Belém, mas é potenciado pelo cálculo e cobardia política do centro.

Do centro-direita, como no caso das reeleições de Mário Soares e de Jorge Sampaio. Do centro-esquerda, como no caso da reeleição de Cavaco Silva. Os partidos no poder mesmo que não simpatizem com a personagem política que ocupa a Presidência, evitam ser confrontados com uma ampla derrota eleitoral. Pensam que lhes será mais favorável fingir que estão deslumbrados com o exercício político do Presidente. Por norma, essa ficção tem um preço que o Presidente reeleito não deixará de cobrar. A questão, todavia, ultrapassa o jogo partidário e põem causa a própria democracia.

É inadmissível que de dez em dez anos uma parte perca por falta de comparência, que não ofereça uma alternativa credível ao ocupante de Belém, mesmo correndo o risco de uma derrota severa. É inadmissível que parte significativa do eleitorado – ora de direita, ora de esquerda – não se sinta confortável com as escolhas eleitorais que lhe são apresentadas. Isso não dá saúde à democracia e permite que fenómenos marginais ganhem terreno nas presidenciais para se afirmarem na sociedade.

António Costa e os socialistas podem ter imaginado muitos cenários favoráveis para lidar com um Marcelo Rebelo de Sousa de mãos livres. Isso não os exime, caso o apoiem ou caso não exista no centro-esquerda uma alternativa séria, da responsabilidade de contribuírem para a degradação da democracia e da própria Presidência da República. A democracia faz-se de alternativas fortes e de disputa eleitoral. Não de cálculos e conveniências partidárias sobre o que é melhor para quem está no governo.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Carlos de Oliveira, Casa na Duna


Publicado em 1943, o romance Casa na Duna terá tido a sua versão final na edição de 1980, pouco antes da morte do autor, Carlos Oliveira. Muitas das abordagens da obra do romancista nascido no Brasil salientam a sua fidelidade ao neo-realismo e a preocupação com temáticas de índole social e política. Isso não é falso neste primeiro romance, pois o retrato social da Gândara, o lugar geográfico no qual é situada a aldeia de Corrocorvo, onde se desenrola a narrativa, está muito presente e a política aflora aqui e ali, transportada por um médico, uma personagem secundária na trama narrativa. Não deixa de ser significativa esta natureza secundária da presença da política na obra, pois parece ser uma clara opção por motivos estéticos e literários e não tanto por questões políticas, como o medo da censura. Reler o livro quase oitenta anos após a sua publicação, desligado já do contexto social e político em que ele apareceu, e cuja sombra se projectou por décadas, dá ao leitor oportunidade para olhar para outros aspectos de natureza metafísica e não tanto social ou política, porventura mais estruturantes e fundamentais na economia da obra.

A fragilidade do mundo humano e o efeito corrosivo do tempo emergem como as temáticas centrais. Essa fragilidade do mundo dos homens é dada de imediato, como se fosse uma síntese das preocupações do romance, no título. Construir uma casa na duna coloca-nos de imediato perante uma construção na areia. O fundamento onde o mundo se constrói é movediço, vacilante, infirme. Tudo o que nele se constrói cairá, será dissolvido pelo tempo, que trará novas possibilidades e outras areias, onde outras casas se construirão. A esta fragilidade ontológica do mundo corresponde uma outra, a dos homens, tanto enquanto indivíduos presos na sua singularidade como enquanto linhagens. O destino de Mariano Paulo no fim da vida ou o do filho Hilário, desde o início marcado pela morte da mãe na altura do seu nascimento, mostram a fragilidade dos indivíduos, por fortes que tenham sido, como é o caso do pai. No entanto, se há coisa que o romance tematiza claramente é o da ilusão da linhagem. Desde o fundador da riqueza do clã dos Paulos, Silvério Coxo, até ao desabamento em Hilário, o que se torna patente é que as virtudes – por pouco virtuosas que elas sejam – que presidem às hierarquias humanas não são transmissíveis. Elas emergem da noite obscura do tempo para, passadas algumas gerações, desaparecerem nessa mesma obscuridade.

Se o título da obra é um indicador não desprezível da sua orientação, a morte da mãe de Hilário e mulher de Mariano tem uma força simbólica e premonitória que ultrapassa o puro facto da morte. Ela é a grande personagem ausente e, ao mesmo tempo, a anunciação de um fim. Vinda de fora do clã dos Paulos deveria ter por função reforçar e renovar a linhagem. A sua morte, porém, emerge como uma sombra sobre a casa e um prenúncio do destino. O herdeiro nunca soube como lidar com aquela ausência. E quanto maior era a sua ausência, maior era a incapacidade de Hilário se relacionar com os outros e a realidade. Ela é, dessa forma, a personagem mais forte de todo o romance, não por alguma peculiaridade de carácter que se tenha revelado ainda em vida, mas por ser pura ausência, uma pólo atractor da realidade, um buraco negro onde desaparece a luz.

Outra personagem central na trama narrativa é o próprio tempo. Durante parte considerável da narrativa ele está oculto, parece não passar. As relações sociais mantêm-se imutáveis, Mariano Paulo resiste à mecanização da propriedade, à intromissão do tempo nos negócios humanos. Depois, a abertura de uma estrada, a comunicação da aldeia com o mundo envolvente, revela o tempo, a sua passagem, e tudo se torna anacrónico, perante o que vem de fora. Esta metáfora é interpretada muitas vezes como uma referência indirecta à situação política do país. Não será falsa essa interpretação, mas falhará o essencial. O que se revela ali é a condição humana, a situação em que todos vivemos no tempo sem dele ter consciência para, por uma súbita revelação, o descobrirmos e descobrirmos os seus efeitos sobre nós. A duna onde se instalou a casa mais do que de areia era feita de tempo. Durante muito tempo persistiu a ilusão de que era um chão sólido, pois ninguém percebia a passagem do tempo. Quando um acontecimento banal como a abertura de uma estrada o revela, torna-se manifesto que cairá toda a casa construída no tempo, na areia da temporalidade, e é isso que Casa na Duna deixa ver.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

A prudência e o risco


Não creio que a pandemia que se vive abra as portas para um mundo novo. Duvido mesmo que o essencial, passada a fase de maior dificuldade, seja apreendido. E esse essencial não está no futuro, mas no passado, num conjunto de decisões políticas que foram tomadas, ao longo de décadas, sob pressão de uma ideologia radical que tenta impor à política as regras do mercado. Havia um número mais que suficiente de alertas para a possibilidade de emergir uma crise pandémica. Instituições de tipo diverso – ligadas à saúde, à espionagem e à política – vinham alertando os Estados e as elites políticas para que podia acontecer aquilo que está a acontecer.

Ninguém quis saber ou os que quiseram, como Obama, foram cilindrados. Quando os políticos dizem que ninguém estava preparado, deveriam dizer que ninguém quis preparar-se. Por outro lado, mas em consonância com isto, temos assistido nas últimas décadas, por decisão política imposta por uma visão radical do liberalismo, a uma destruição paulatina dos serviços públicos de saúde, à sua descapitalização e à perda de capacidade de resposta aos problemas de saúde das comunidades. Demasiado caros, argumenta-se numa lógica mercantil. A ignorância propositada de um perigo anunciado e a desmontagem dos serviços públicos de saúde configuram, ao nível político, uma grave infracção da regra da prudência que deve orientar os que comandam os Estados.

A partir do século XIX, com um incremento contínuo, a política, no mundo ocidental, foi-se submetendo à economia e o Estado ao mercado. Esta inversão no comando das sociedades tem um preço, o qual estamos agora a pagar. O mercado é o lugar do risco. As empresas, na concorrência entre elas, correm riscos. Este é um factor decisivo na competição. Os Estados, porque são dispositivos criados para a segurança das pessoas, devem evitar o risco e orientar-se pela prudência.

A submissão da política à economia, como acontece nas nossas sociedades, não é apenas uma inversão da tradição política ocidental, nascida na antiguidade clássica greco-romana, mas a subversão da própria função do Estado, que se torna incapaz de prever o perigo e de se dotar de mecanismos de defesa das populações, apostando no risco, com a esperança de que as ameaças nunca se concretizem. O que está longe de ser uma realidade, como estamos a descobrir nestes dias. Seria, todavia, iludimo-nos crer que esta pandemia irá ensinar aos que comandam os destinos das comunidades que a política se deve separar dos imperativos da economia e que a prudência, não o risco, é a atitude fundamental do homem político.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Alma Pátria 62: Tomás Alcaide, Amor é cego e vê



Desçamos, na Alma da Pátria, até ao ano de 1936. Tomás Alcaide é o mais famoso tenor lírico português, tendo actuado em Itália. Para além da ópera, ele cantou e gravou canções populares, sendo Amor é cego e vê a mais famosa, reinterpretada por múltiplos artistas. A canção fazia parte de um filme, Bocage, que consta ter sido um grande fracasso de bilheteira, tendo acabado por se perder no incêndio do Chiado. O refrão "Amor é cego e vê, não sei porquê" forneceu uma espécie de grelha interpretativa das relações amorosas que perdurou durante décadas, formando e formatando as almas amorosas que na pátria daqueles dias se entregavam a meditações sobre o que lhes acontecia ou devia acontecer.