Rembrandt - Dois sábios à conversa
Um dos mitos persistentes do imaginário social - fundamentalmente, do imaginário de pessoas de esquerda - está centrado na correlação entre a instrução e uma maior consciência social e política, nomeadamente, uma maior preocupação com o que é socialmente justo. As reacções à infeliz proposta de redução da escolaridade obrigatória de doze para nove anos, das Juventudes Populares, estavam fundadas nesse mito. A direita pretenderá diminuir a escolaridade obrigatória para evitar que as pessoas tenham capacidade crítica e, a partir dela, escolham o governo certo, isto é, de esquerda.
A persistência deste mito terá as suas razões. Talvez tenha tido a sua origem na República, onde se reconhecia que o campesinato analfabeto era favorável à monarquia. Também é verdade que o salazarismo funcionou desse modo. É ainda verdade que, nas boas famílias, não era olhado com bons olhos que uma criada soubesse ler. Isto que se passou em Portugal passou-se por outros lados. Há, por isso, uma certa verdade a alimentar o mito. O problema é que a sociedade mudou, arrastando consigo os mitos e as narrativas que nos dispensam de pensar. Qual é o problema deste mito? É que ele é, actualmente, falso. Um estudo da Universidade Católica mostra que quanto mais instruídas as pessoas são, menos importância dão à solidariedade, à justiça e aos valores democráticos. A democratização do ensino é desfavorável à visão moral do mundo inerente à esquerda e privilegia uma certa visão de direita, a visão liberal, devido, como mostra o estudo, ao reforço das tendências egoístas dos sujeitos.
Isto não é, da minha parte, um argumento contra a democratização do ensino. É preciso que continue o esforço dessa democratização, elevando a qualidade das formações, tornando os portugueses mais diferenciados e capazes de lidar com uma realidade adversa. Este argumento é contra o próprio mito e a sua utilização. A esquerda gosta muito de se enganar e encontrar explicações que, se não são absurdas, são completamente deslocadas no tempo e no contexto. Eu percebo o drama da consciência de esquerda. Aquilo que foi um dos seus maiores e mais nobres combates, a democratização do ensino, gera uma população com valores adversos a essa esquerda. Mas a persistência nas fórmulas míticas acaba por não deixar perceber que a realidade mudou. A mudança social, aquela que seria o caminho para a justiça e uma democracia avançada, não virá da educação. Virá outra, mas essa será mais problemática e exigirá outra forma de pensar e de agir politicamente.
Na minha modesta opinião o problema não está em ter-se ou não instrução, mas sim no tipo (qualidade) de instrução que se tem.
ResponderEliminarDe robots diplomados, furiosos da competição, em que vale tudo para chegar aos topos, não se pode esperar solidariedade ou envolvimento social.
Infelizmente, o mesmo se pode dizer dos "instruídos" (?) de aviário que já só querem sobreviver, mas ainda rejeitam ser pau para toda a obra.
A juventude do PP tem a lição dos papás bem estudada. É evidente que não é daquela madrassa que vão sair os pedreiros, carpinteiros, mecânicos, electricistas, etc
Há pois que remarcar os terrenos e recuperar a tradição de "Doutores só os filhos de Doutores" e garantir a continuação das elites instaladas. É isso que a direita quer preservar.
A democratização do ensino tem de ser inserida num contexto abrangente e global de democratização da sociedade.
A ideia de igualdade de oportunidades para todos à partida, não passa de uma balela se o segundo destes pressuposto não for cumprido.
Um abraço
A democratização do ensino é uma inevitabilidade, a não ser que queiramos fechar definitivamente as portas enquanto país. Quanto à sua inserção em contextos de uma maior democratização da sociedade, enfim... estamos em Portugal e esse não será tarefa fácil. Mas o que está em questão, e o estudo da Católica, mostra-o, é a inexistência de uma correlação entre instrução e a formação de uma consciência crítica e preocupada com a justiça, a solidariedade e a democracia. O instrução superior foca as pessoas nelas e nos seus interesses. Talvez, mas apenas talvez, quando a universidade era mais fechada a instrução trouxesse consigo um acréscimo de consciência social. Com a democratização do seu acesso a partir dos finais de 80 e início de 90, os novos públicos estariam à procura de uma afirmação pessoal, procurando desligar-se rapidamente do mundo de onde provinham.
EliminarAbraço
Abandonar este mito é doloroso para muitas pessoas, daquelas que mantiveram empenho quase religioso, na crença e na construção de uma escola pública democratizada e de qualidade.
ResponderEliminarDa mesma forma que alguns dos idealista de Monte Verita aceitaram e até colaboraram o nazismo, confirmando que mais cultura e sensibilidade artística não garantem, só por si, mais consciência social, ainda assim deveremos evitar a conclusão falaciosa de menosprezar a educação ou a arte como elementos civilizacionalmente fundadores, e enaltecendo as virtudes da ignorância e da incultura.
A par deste estudo poder-se-ia aprofundar o conhecimento dialogico dos valores tidos como essenciais para o sucesso e até da própria noção de sucesso, das transformações durante o últimos 60 anos.
A cultura do sucesso individual, ou a sobrevivência do mais apto, não São dissociaveis de todas estas questões.
Claro, o pior seria enaltecer as virtudes da ignorância e da incultura, outra forma mitológica. Depois, não se sabe qual o grau de influência que os currículos escolares e académicos têm neste tipo de subjectivação. Isso poderia também ser estudado.
EliminarTratou este tema de uma forma inteligente, sábia, histórica e até filosófica, como sempre, Jorge. Subscrevo o que diz. Ao invés, eu escrevi sobre o mesmo de forma pragmática, dura e segundo o que vejo no terreno. Também tanto se me dá se a ideia é da direita ou da esquerda, pois considero a escolaridade obrigatória um tormento daqueles para quem não quer ou não pode. Acredite que há quem não queira e não possa... Vejo-o diariamente e está a ser difícil para todos os intervenientes. Aqui fica o link: http://aefectivamente.blogspot.pt/2014/01/tortura-obrigatoria.html
ResponderEliminarHaveria muito mais a dizer, no campo do pragmatismo, que não deve ser esquecido pelo idealismo.
Acabei de ler o seu post, mas discordo da ideia de voltarmos atrás, aos 9 anos de escolaridade obrigatória. É necessário encontrar formação alternativa. Para esses alunos de que fala, seria melhor uma formação mista escola-empresa, mas evitar o abandono. Eu conheço casos como o que fala e tenho alunos nessas circunstâncias, mas há que fazer um esforço. Daqui a 10 anos ninguém contesta os 12 anos de escolaridade obrigatória.
EliminarJorge, esforço há, pelo menos nosso, professores, diretores de turma, serviços de psicologia, direção. E de que maneira. Dos alunos em questão, não. Das famílias, há de tudo. Estes alunos são do básico e estão no 8º e 9º anos. Fazem estágio no final dos dois anos. Geralmente têm boa prestação no mesmo, o que vai ao encontro do que digo: as aulas não lhes dizem nada e a trabalhar já é diferente. Agora este estágio não é remunerado, dura um mês, mês e pico. Será que passa por aí a alternativa? Trabalharem não apenas no final do curso, mas irem alternando entre a teoria/aulas e a prática/trabalho? (Apesar destes cursos terem uma forte componente técnico-prática, e nem nessas muitos estão interessados.) Mas então, será que o fariam, por mais tempo, sem dinheiro? Voltar aos 9 anos pode não ser uma boa ideia, mas os 12, assim mas como tudo está, é péssimo, penoso. Para todos, volto a referir. Se há alternativas, que venham depressa. Bom fim de semana.
EliminarComo escrevi ontem, julgo ser uma questão de tempo. A escolaridade obrigatória sempre levantou problemas aos alunos e às famílias. A quarta classe, a sexta classe, o 9.º ano. Agora, com o 12.º ano, não é diferente. Talvez exista, contudo, menos resistências do que nos patamares anteriores. As resistências existentes diminuirão com o passar dos anos. Os próprios cursos tenderão a adaptar-se ao seu público. Há, no entanto, um argumento que acho interessante e que li há já muitos anos. O autor, um espanhol ligado às ciências da educação, argumentava que era problemático impor uma escolaridade obrigatória para além dos 15 anos, pois isso colidia com a liberdade da pessoa. Apesar da menoridade, essa liberdade deveria merecer respeito. Este argumento é aquele a que sou mais sensível, embora continue a afirmar que, dos outros pontos de vista, é útil uma escolaridade de 12 anos. Útil para os indivíduos e para a sociedade.
EliminarBom fim-de-semana
Ninguém aprende contrariado, concordo. :) Mas, e para terminar esta conversa - interessante -, não foquei o problema do ponto de vista do 12º ano, mas sim dos 18 anos. Os meus alunos complicados - e os dos outros - são os do básico (CEFs), os que têm quase 18 anos e que não irão para além do 9º ano. Isto se, ao completarem os 18, não saírem de vez mesmo. Obrigada pela atenção. :)
EliminarTem razão, não é o 12.º ano, mas 12 anos de escolaridade obrigatório, o que é ainda bem diferente. No entanto, tendencialmente as coisas devem distinguir-se cada vez menos, sendo os alunos, em vez de retidos, encaminhados para formações adequadas aos seus perfis. Isto passa-se em muitos países. o que não faz sentido é alunos frequentarem áreas de formação para as quais não tenham nem vocação nem perfil.
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