domingo, 28 de abril de 2019

François Mauriac, O Mistério dos Frontenac


Antes de ser editado em livro pela Grasset em 1933, O Mistério dos Frontenac (Le Mystère Frontenac), de François Mauriac, foi publicado em cinco folhetins na La Revue de Paris, entre Dezembro de 1932 e Fevereiro de 1933. A tradução portuguesa, de Luís Forjaz Trigueiros, que também assina um prefácio, é de 1956, publicada pela Editora Ulisseia. O tempo da narrativa é o da segunda década do século XX, no período que antecede a Grande Guerra de 1914-1918. Apesar das personagens relevantes possuírem contornos delineados e diferenciados, que os individualizam, a obra de Mauriac põe em acção uma personagem colectiva, a família Frontenac. Esta opção narrativa indica de imediato uma visão que não se confunde nem com as glórias individualistas da cosmovisão liberal nem com as preocupações sociais da mundividência socialista. O mundo que emerge do romance é tipicamente burguês mas de tonalidade católica.

A família não deve ser entendida apenas no sentido biológico e afectivo, mas como pedra angular do mundo burguês, isto é, num sentido social. É nela que uma certa relação com o mundo dos negócios se preserva e se transmite de geração em geração. Do ponto de vista histórico, as velhas tradições sociais ligadas aos estados sociais foram aniquiladas pela Revolução Francesa, nos finais do século XVIII. A única tradição viva é a do terceiro estado e é na família que ela se transmite, não a todos os membros, mas a um deles que acaba por ter um papel patriarcal, cuidando dos negócios e dos outros membros. A família, enquanto veículo de tradição, encontra o seu fundamento na fé religiosa. A comunidade biológica é trabalhada e metamorfoseada pela comunhão espiritual, pelas crenças e ritos que solidificam a volubilidade das ligações naturais.

A família Frontenac, tal como aparece no livro, é já uma família amputada. Michel Frontenac morre jovem e deixa a sua mulher, Blanche, com cinco filhos. Três rapazes e duas raparigas. Há também Xavier Frontenac, irmão do falecido Michel. A narrativa estrutura-se em torno de quatro personagens. Blanche, que apenas é Frontenac pelo casamento, Xavier e dois dos rapazes, o mais velho Jean-Louis e Yves. É neste quarteto que Mauriac tece as linhas do espírito de família, mostrando também as suas contradições e os eventuais pontos de fuga. De certa maneira, em todas estas personagens existem pontos de fuga, que ameaçam a tradição e podem pôr em causa a própria família. No entanto, o poder de atracção é de tal maneira poderoso que acaba por debelar as ameaças que a vida e a passagem do tempo colocam ao clã.

Se se pretender fazer uma leitura do título da obra, o mistério dos Frontenac é esse poder atractor dos vínculos da família burguesa. Esse poder é misterioso pois não reside naquilo que pode ser explicado apenas pela razão. Não são os interesses económicos, por exemplo, que justificam que a família seja observada como uma personalidade – e, romanescamente, como personagem. Não é também, a mera dimensão biológica – acrescida pelo desenvolvimento de laços de afecto – que explica aquele clã. É como se existisse um espírito vindo do passado, no qual Blanche se integra e assume como seu, que encarna nos diversos membros e lhes dá coerência e coesão. Esse espírito – talvez o espírito dos antepassados – não se deixa apreender pelo olhar frio a analítico da razão, mostrando-se apenas numa cultura comum, onde a religião possui um papel central, e nos afectos que devem ser compreendidos como indicadores de reconhecimento de pertença a uma mesma pátria, com os seus costumes e linguagem.

O romance tematiza os diversos pontos de fuga das personagens centrais. A vida misteriosa do tio Xavier em Angoulême e, depois, em Paris, sempre longe dos seus familiares, que protege e cujos bens defende. A sombra da morte que, premonitoriamente, paira sobre Blanche, a matriarca que vinda de fora encarna o espírito da família. O delíquio intelectual de Jean-Louis, o mais velho dos irmãos Frontenac, que tem a ousadia de pensar em ir estudar Filosofia e fazer vida de académico. A natureza mística e poética do adolescente Yves, que se transmuta em dândi na juventude. Em todos eles compreende-se a existência de forças obscuras de dissolução, mas o mistério da família permite-lhes chegar unidos a esse momento crucial da História da Europa, a primeira Grande Guerra, onde todos os laços do mundo antigo se dissolvem.

terça-feira, 23 de abril de 2019

Sondagens, Marcelo, Anos Sessenta e Notre-Dame


AS SONDAGENS E AS FAMÍLIAS. As sondagens reflectem já o desgaste que os socialistas estão a sofrer devido à trapalhada em que se meteram com as ligações familiares na governação. Pode-se pensar que se nos tempos de Cavaco as coisas chegaram onde chegaram (num dos governos foram nomeadas para cargos mulheres de onze ministros, para além de outras ligações familiares), hoje em dia uma situação mais benigna também não teria consequências políticas. Os tempos, porém, mudaram. A indisposição dos portugueses com os políticos, as redes sociais e o facto do governo ser de esquerda. Os socialistas são exímios em fornecerem casos a uma direita destituída de causas e de políticas. As sondagens são o espelho dessa generosidade.

A INICIATIVA DE MARCELO. A iniciativa do Presidente da República ao propor uma lei sobre as incompatibilidades do Presidente – na sequência das relações familiares no governo – torna claro que o actual PR tem interesses políticos muito para além dos afectos e das selfies. Ultrapassando os limites que a Constituição impõe, Marcelo tenta condicionar a opinião pública relativamente ao governo e à maioria de esquerda. O PR, no âmbito da Constituição Portuguesa, não é um juiz, mas um actor político e Rebelo de Sousa, desde o primeiro momento, assumiu essa sua condição. Parece não lhe faltar vontade nem criatividade para dar um cunho presidencialista a um regime semipresidencial.

RATZINGER E OS ANOS SESSENTA. Na recente intervenção de Bento XVI sobre os problemas da pedofilia que assombram a Igreja Católica, o Papa emérito referiu a cultura desenvolvida nos anos 60 como culpada pelo afrouxamento dos padrões morais. Isso teria conduzido à autêntica pandemia de abusos sexuais que têm vindo a ser descobertos. As reacções de indignação não se fizeram esperar contra a abusiva ligação entre os dois fenómenos. O que me interessa salientar, porém, é outra coisa: a incapacidade existente, entre detractores e defensores, para avaliar as consequências morais da revolução dos costumes dos anos 60, que começaram com a autorização do uso da pílula e acabaram com as revoltas estudantis de 68 e o Festival de Woodstock, de 1969.

NOTRE-DAME DE PARIS. Escrevo enquanto arde a catedral de Notre-Dame de Paris. Num momento como este torna-se claro que há qualquer coisa que une os europeus. Antes da política e das peripécias por que passa a União Europeia, e  apesar das rivalidades que sempre existiram entre eles, há um substrato cultural e civilizacional em que todos se reconhecem. Está a arder perante os nossos olhos uma parte da alma europeia.

domingo, 21 de abril de 2019

Villa Cardillio 20. Acolhimento

Casa de Vénus e Marte, Pompeia

20. Acolhimento

Ávido, o amante
estende as mãos,
e o seio silente
do amor abre-se
para acolher
o navegante da noite
perdido no porão
agreste da aurora.

1979

sábado, 20 de abril de 2019

Sonhos numa noite de Verão 17

Jakob Tuggener, Façade, Oerlikon Machine Factory, 1936

Não queria acreditar e no entanto ela ia ali, levada pela resolução da sua passada, oferecendo os contornos do corpo à minha visão, e esses contornos faziam-me lembrar um tempo passado, ateando em mim um desejo que pensara extinto. Segui-a, e ela, quase o juro, sabia que eu a seguia, adequou o passo para que, não deixando de ser seguida, não fosse alcançada. Quando chegou ao destino, subiu os degraus, entrou e fechou a porta. Então, corri. Quando cheguei, não havia degraus nem porta. Banhado em suor, procurei uma entrada, mas não havia. Enlouquecia de desejo. Acordei quando uma sirene tocou. Acendi a luz. Estava só, num quarto desconhecido. Não havia porta nem janela.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Descrições fenomenológicas 41. A espera

Francisco Arjona, ¡Adelante con la duda!, 1985

Da iluminação eléctrica desprendem-se vagos clarões que tecem sombras fantasmagóricas pela rua. A noite, escura e densa, é assim perturbada pelas reminiscências da luz, enquanto a vida se desenrola, imperturbável e marcada pelos imperativos do dever ou do prazer, nessa atmosfera aquosa das cidades banhadas pelo oceano da noite. Encostados a uma grade, uma mulher e um homem conversam. Os gestos são contidos e as palavras mais que pronunciadas lembram o murmúrio longínquo do mar sonhado nos dias de infância. Os carros, atrelados aos faróis que fendem a sombra da cidade, passam devagar, cruzam-se e quase reverentes parecem, na sua rigidez mecânica, inclinarem-se uns para os outros em vénia respeitosa. Num banco de madeira e ferro forjado, desses que a vida urbana oferece aos transeuntes para descansarem dos seus devaneios, está sentada uma mulher. Um casaco comprido esconde-lhe o corpo e a mala de viagem, que descansa aos pés, indica a iminência de uma partida. Um lenço de cor suave, apertado sob o queixo, tece um acentuado contraste com o cabelo negro. Do rosto sobressaem uns olhos grandes e escuros, em estado de vigília, e uns lábios de onde transborda uma mescla de sensualidade e tristeza, um convite ao enternecimento de um coração que por ali passe. O corpo curvado para diante deixa as mãos, esguias e desamparadas, repousar sobre as pernas, com os dedos flectidos, numa irresolução entre o cerrá-los com fúria ou abri-los sem pudor. Carros e pessoas passam diante dela, mas, imóvel, todo o seu ser concentra-se na entrada de uma casa, de onde ninguém sai. A maresia da noite toca-a e ela flutua no aquário em que, como um peixe solitário perdido nas águas, espera a vinda de quem a resgate à demorada solidão que desce do seu olhar.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Ensaio sobre a luz (59)

Maurice Utrillo, Maisons á l´Ile d´Ouessant, Bretagne, 1912

Se houvesse outro nome para a luz, seria cal ou rosa, talvez âmbar; e quando um raio de sol te tocasse o rosto, eu diria que uma rosa de cal se abriu no âmbar dos teus olhos.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Em processo de liquefacção

Gustave le Gray, Bateaux quittant le port, Le Havre, France, 1856

A metáfora da liquidez - a modernidade líquida - usada por Zygmunt Bauman para caracterizar as instituições sociais contemporâneas encontrou um novo exemplo na actual greve dos motoristas de matérias perigosas. Como no caso dos enfermeiros, um sindicato recente mobiliza a classe e coloca o o governo à beira de um ataque de nervos e o país da paralisia. Estamos a assistir à liquefacção das velhas estruturas sindicais com os seus compromissos políticos e estratégias partidárias. Não é claro, porém, que este tipo de liquefacção, mesmo que tenha resultados no curto prazo, não seja, tendo em conta o futuro, uma vitória de Pirro.

terça-feira, 16 de abril de 2019

Villa Cardillio 19. A sombra

Wall painting from Room H of the Villa of P. Fannius Synistor at Boscoreale

19. A sombra

Cardillio, Avita, ninguém vos espera
no celeiro da noite ou no coral do dia.
Não crocita sobre o sobreiro o corvo
nem a Primavera o amor prenuncia.

Rompeu-se do tempo a teia tenaz,
o abraço obscuro na palidez da serra.
Vidros e mármores, ouro e pratas,
sombra da ruína que a vida encerra.

1979

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Curzio Malaparte, A Pele


Presumo que poucos leitores saberão, hoje em dia, quem foi Kurt-Erich Suckert, um italiano filho de pai alemão e mãe lombarda. O próprio fez alguma coisa por isso ao mudar o nome para Curzio Malaparte. A sua vida, plena de peripécias, em que a primeira digna de nota é a fuga do colégio para ir combater na primeira guerra mundial, pode ser vista como um retrato da primeira metade do século XX europeu. Ela é também um símbolo da conversão. No período entre grandes guerras converte-se ao fascismo, mas acaba por romper com o regime, sendo aliás perseguido. Depois da segunda guerra mundial dá-se uma conversão ao comunismo. A sua adesão ao PCI, porém, só será aceite, por Palmiro Togliatti, no final da vida de Malaparte. Um mês antes de morrer, em 1957, é baptizado e recebe a primeira-comunhão. A última conversão.

O romance A Pele, data de 1949. A tradução portuguesa é de Alexandre O’Neill, para a colecção Dois Mundos dos Livros do Brasil. A acção desenrola-se a partir de 1943, na altura em que os exércitos aliados entram em Itália, como libertadores, e ocupam Nápoles. A personagem principal é o próprio Malaparte, na altura oficial de ligação entre as forças da resistência italiana e o comando americano. Este facto gerou um contínuo questionamento sobre a natureza do romance. Será ele uma memória biográfica, uma reportagem jornalística, ou uma narrativa de invenção? A questão, porém, é irrelevante. A verdade de uma obra de arte não depende da sua relação com os factos vividos pelo autor, mas da congruência do mundo que essa obra cria e oferece à contemplação do leitor.

Duas chaves possíveis para ler a obra são-nos dadas nos capítulos “IX – A Chuva de Fogo” e “X- A Bandeira”. No primeiro, a narrativa centra-se na erupção do Vesúvio em 1944 e esta funciona com uma alegoria da própria guerra. Não se trata, porém, de estabelecer uma analogia entre o número de vítimas dos dois fenómenos, mas de fornecer uma primeira chave de leitura sobre a guerra. Para aqueles que são expostos a ela, a guerra é um fenómeno da mesma natureza dos cataclismos naturais. A contenção do seu poder destrutivo está muito para além do livre-arbítrio daqueles que a sofrem. Para estes é como uma catástrofe desencadeada pelas forças inomináveis da  natureza. No capítulo “A Bandeira” é contado um acidente em que um homem, comemorando a entrada do exército aliado, acaba por ficar debaixo de um tanque. Fica reduzido a uma fina pele. E essa pele é a bandeira de todos aqueles que sofrem o absurdo da guerra. Salvar a própria pele é o que move, em última instância, cada um que é apanhado na erupção desse vulcão sob as ordem de Marte.

É em nome da salvação da pele, ameaçada pela fome, que os napolitanos descem às maiores indignidades, perante o exército aliado triunfante. A prostituição das mulheres e das crianças, a sujeição a práticas inverosímeis, a degradação da condição humana, tudo isso faz parte daquilo que Malaparte denomina como a peste. Não se trata da peste orgânica dos velhos tempos medievais, nem sequer a peste que toda a guerra metaforicamente é. Trata-se da peste moral a que os homens, sob o império da fome, se sujeitam para salvar a sua bandeira, a pele. O olhar de Malaparte é impiedoso e, ao mesmo tempo, compreensivo. É também o olhar de alguém que sofre perante o destino de uma Europa submetida a duas grandes guerras, de alguém que cobre com o cinismo a chaga aberta pelo suicídio dessa Europa.

O olhar desencantado de Malaparte permite-lhe perceber tudo aquilo que de mais negro se mistura nestes momentos de libertação, sublinhando não sem ironia a possibilidade de os italianos serem vencedores da guerra que perderam. O autor sabe que os vencedores não são aqueles que combatem, que correm riscos, que põem em jogo a sua pele. Os vencedores são aqueles que, durante as horas negras, se escondem e estão sempre prontos a aclamar o vencedor, seja ele qual for. O amanhã será deles. Este cinismo tem outra face. Esta é a da consideração da inocência das tropas americanas – mesmo que o seu comportamento seja reprovável. Os americanos não sabem nada da Europa, dos seus conflitos, dos seus ódios e dos seus amores, e olham-na cândidos e perplexos, desejosos de regressar a casa, a um mundo mais simples e menos povoado pela morte.

Na parte final do romance, num mundo onde só os mortos contam, Malaparte escreve: “Que seria do mundo, de todos nós, se entre tantos mortos não estivesse um Cristo?” Esta interrogação abre o caminho do leitor para uma outra e surpreendente interpretação do fenómeno da guerra. Já não da guerra vista como um desastre natural por quem a sofre, mas como um acontecimento soteriológico. “Cristo morreu para nos ensinar que cada um de nós pode tornar-se Cristo, que cada homem pode salvar o mundo com o seu próprio sacrifício. Também Cristo teria morrido inutilmente se cada homem não pudesse tornar-se Cristo e salvar o mundo.” Esta leitura sacrificial da guerra entronca na teoria dos sacrifícios de Joseph de Maistre, conferindo assim um sentido à loucura dos homens e à destruição que ela implica. Para que todas essas mortes possam ter algum significado é preciso que elas representem um sacrifício que abra o caminho à redenção.

domingo, 14 de abril de 2019

Beatitudes 5. Paisagem

Frederick Sommer, Colorado River landscape, 1942

Há uma estranha beatitude que se desprende dessas paisagens agrestes e inóspitas, nas quais a vida dos homens é impossível. Puras e livres, a imaginação pode sonhá-las como a matéria prima informe que um deus poderá usar para criar um mundo livre da usura com que a humanidade mancha tudo em que toca.

sábado, 13 de abril de 2019

Crenças e rituais

Gerda Taro, Funeral of General Lukacs, Valencia, Spain, 1937

Não vale a pena falar sobre quem foi o general Lukacs e como morreu durante essa tragédia inominável que foi a guerra civil espanhola. O que me espantou na fotografia foi o carácter devocional que nela se manifesta. Mesmo entre ateus, não é possível eliminar, perante a morte, a aura religiosa, ainda que esta evite a genuflexão e substitua o benzer-se pelo punho no ar. Na morte dos seus, cada um segue os ritos que entende e profere as orações que sabe.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Sonhos numa noite de Verão 16

Toni Scheiders, Waiting Woman, Ingolstadt, February, 1951

Entrei na carruagem e sentei-me num dos poucos lugares vazios. Ao meu lado, absorta, a mulher olhava através do vidro batido pela chuva. Não lhe conseguia ver o rosto. Ela estava imóvel, os olhos inclinados para o que se passava na rua, talvez presos aos carris. Permaneceu assim enquanto o comboio esteve parado. A viagem recomeçou, mas a sua imobilidade manteve-se. Uma ameaça velada parecia tomar conta da carruagem. Quando ela se voltou e poisou os seus olhos nos meus, reconheci-a e, de imediato, me levantei e comecei a correr pela carruagem. Era a mulher que conhecia o meu destino. Acordei ao ouvir o apito. Ao meu lado não havia ninguém, e lá fora apenas a campina monótona cortada pelo silvar ameaçador do comboio.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Villa Cardillio 18. Tardes de Ócio

The Roman painting of Omphale

18. Tardes de ócio

No tremor das tardes de ócio,
as mulheres dedilham os dias,
pesam o fulgor dos poentes
contra o verde-cinza dos olivais.

Então, da ruína a vir ignorantes,
abraçam-se na cilada da noite.
Esperam a frívola luz que da lua
como um rio de algas nascerá.

1979

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Descrições fenomenológicas 40. Cortejo

Mark Tobey, À Cheval la Nuit, 1958

Ao longe, distingue-se o ondulado azul-cinza das montanhas, fronteira de pedra e arvoredo a apartar dois mundos cuja inimizade cintilasse num desejo de eterna separação, na rememoração de ofensas incompreensíveis e inaceitáveis, num ódio sempre fresco, que nem o passar dos séculos nem os imperativos do afastamento minimizam. Sobre o dorso montanhoso, ergue-se, com fulgurações de ouro e ocre, um sol que se intromete entre as nuvens, para reinar sobre a terra e, dadivoso, deixar os raios tocar as ervas e a neblina, criando, nos olhos do espectador, reinos ilusórios e desejos nunca saciados de descobrir os mundos que se escondem por detrás daquele em que vivemos. Subitamente, irrompe no planalto uma carroça de duas rodas puxada por dois cavalos, logo seguida de outra e mais outra, e ainda outras, num estranho cortejo, a que a luz solar empresta tonalidades fantasmagóricas, como se aquela procissão tivesse emergido do magma do passado, fugido de um campo de batalha, e seguisse um destino não esperado por aqueles que, dentro dos veículos, são assim arrastados para fora do seu mundo. A poeira cobre-lhes rosto e roupas. Quem os observe nunca terá a certeza se são homens ou epifanias de deuses que a história declarara mortos. O trote dos cavalos depressa fez desaparecer os viajantes numa curva apertada do caminho. O ruído das rodas e o vozear incompreensível atenua-se até se apagar. Quando o silêncio cai sobre a terra, nuvens negras cobrem o sol. Ouve-se o regougar longínquo de uma raposa e um par de corvos voa de uma para outra árvore. A noite, tensa e ameaçadora, cai. É meio-dia.

terça-feira, 9 de abril de 2019

Beatitudes 4. Fonte

Margaret Bourke-White, Law College, Cornell University, Ithaca, NY, c.1926

Caminhar dentro do abandono e sentar-se à sombra da árvore. O sol incendeia a solidão e aquele que se sentou pensa nos fundos abismo e nos altos cumes que a vida deixa escapar dos seus dedos secos e hirtos. Um canto de cigarra desperta-o. Levanta-se e caminha sedento à procura de uma fonte, da mais desejada das fontes, aquela de onde tudo brotou.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Ensaio sobre a luz (58)

Chris J Symes, Shadows, 1935

E de súbito as sombras descem sobres as paredes, deslizam para terra, declinam no peso da cal. O esplendor não é o seu reino e, como dardos fugidios, afastam-se temerosas da reverberação da luz.

domingo, 7 de abril de 2019

Legislativas, Rui Rio, Refundações e Turquia


ELEIÇÕES LEGISLATIVAS. Ainda há que passar pelas eleições para o Parlamento Europeu, mas o acto político decisivo só chega com as legislativas. Aquilo que até aqui parecia inevitável, uma vitória com maioria relativa do PS e uma derrota da direita, não estará completamente seguro. Os casos da multiplicação de relações familiares na esfera do governo têm um poder de desgaste maior do que parecia à partida. E esse desgaste já não se apaga na opinião pública, por mais eficaz que politicamente possa ser a medida dos passes sociais. Um outro factor importante é o Verão. Qualquer tragédia na área dos fogos poderá ter implicações eleitorais desagradáveis para os socialistas. As eleições ainda estão em aberto.

OS OBJECTIVOS DE RUI RIO. Parte substancial da direita não gosta de Rui Rio. Não será um condottiero exaltante que galvanize o povo e dirija uma fronda contra o governo. Também não se apresenta, como acontecia com Passos Coelho, com o pathos do ressentimento por ter sido arredado do poder por uma coligação inédita das esquerdas. Parece ter objectivos mínimos quando diz que o fundamental é afastar o PCP e o BE da área da governação, para lançar um projecto de desenvolvimento do país. No entanto, a sua maneira discreta de fazer política levou-o a presidente da câmara do Porto contra todas as expectativas. Um bom resultado do PSD nas euwopeiase alguma sorte podem lançar Rio para voos que não se imaginavam.

REFUNDAÇÕES DA DIREITA. O deputado do PSD Miguel Morgado criou o Movimento 5.7 para unir a direita e libertar o país daquilo que ele chama o longo inverno socialista. Presumo que nessa longa invernia se incluam os governos onde o seu partido – só ou na companhia do CDS-PP – governaram o país. Esta exaltação liberal tem razão numa coisa. Do CDS ao PCP, estamos perante variações discretas da social-democracia. Não ocorre aos refundadores que isso acontece porque a generalidade das pessoas são demasiado pobres para que se lhes ofereça um liberalismo puro e duro.

AS ELEIÇÕES TURCAS. Escrevo quando ainda não são conhecidos completamente os resultados das eleições na Turquia, mas independentemente dos resultados, parece haver um forte crescimento da oposição secular a Erdogan e ao seu Partido da Justiça e Desenvolvimento. Isto sublinha que a questão religiosa foi fundamental na Turquia enquanto a economia turca estava de boa saúde. Agora que uma grave crise económica atinge o país, o poder de Erdogan começa a abanar. Os regimes de pendor religioso suportam as crises económicas desde que a democracia esteja completamente suprimida. Caso contrário, os eleitores acabam por encontrar novos caminhos.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

sábado, 6 de abril de 2019

Villa Cardillio 17. Cânticos

Vila Cardílio

17. Cânticos

Cânticos descem nas ervas trazidas
pela dolência de água do Inverno.
No pórtico, um leito de poeira,
lápides, colunas, a luz do abandono.

Curvados à penumbra do cansaço,
os pássaros do crepúsculo cantam.
São deuses movidos pelo ondular
de cinza, pela cintilação da morte.

Silêncio. O tempo sangra a terra.
Os teus olhos, Avita, entoam canções
de âmbar quando a sombra te dói
e o rouxinol poisa furtivo na ruína.

1979

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Questões de família

Matias Quetglas, Conversación amorosa II, 1985

Todas estas histórias familiares que assombram o governo são o sinal de que as elites políticas se julgam impunes e acima da opinião da plebe democrática. O problema, claro, não está apenas nos socialistas. Basta recordar o que se passou no tempo de Cavaco Silva para se perceber que o problema é mesmo do arco da governação. No entanto, os socialistas deveriam ter em consideração três coisas básicas. A primeira diz respeito à história do próprio partido na governação e das suspeitas que recaem sobre um antigo primeiro-ministro socialista. Isso indispõe à partida muitos eleitores com qualquer coisa que não seja a dura virtude moral. Em segundo lugar, a direita não tendo  causas políticas para fazer oposição, pois a esquerda ficou-lhe com elas, vive de casos e estes casos dão-lhe combustível e votos. Em terceiro lugar, as redes sociais não dão apenas voz à indignação popular. Elas ampliam-na até a tornar ensurdecedora. E não se trata de encontrar um critério claro e uniforme sobre a limitação dos direitos dos familiares de políticos (que bela linguagem), como afirma António Costa, nem de fazer uma lei mais exigente, como pensa Marcelo Rebelo de Sousa. Trata-se de mudar radicalmente de atitude relativamente ao nepotismo generalizado que parece haver no corpo político da nação. Trata-se de perceber que o nepotismo e o amiguismo devem ser banidos da vida política, pois destroem a confiança dos cidadãos nas instituições e destroem o edifício democrático. Governos e autarquias não são sítios para encontros de amigos, passeios de família ou matrimónios felizes. E se acham que não é assim, não se admirem que aparece um dia destes um condottiero que arraste a plebe sedenta de justiça e de vingança.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Ensaio sobre a luz (57)

Ignacio Díaz Olano, Granja y gallinas, 1891

A vocação da luz é tornar-se mundo, condensar-se em matéria de onde transborde a vida, para voltar a brilhar nesses olhos que contemplam os dias e luminosos se descobrem na transparência da manhã.

terça-feira, 2 de abril de 2019

Beatitudes 3. Chuva

Jean Dieuzaide, Mercado, Santiago de Compostela, Spain, 1961

Um rumor anónimo perpassa pelas ruas. Compra-se e vende-se, trocam-se palavras, promessas, um cumprimento de ocasião, enquanto a chuva desliza dos céus e sorrateira se entranha nas vestes ou na terra que espreita pelo empedrado do chão. A água tamborila nos guarda-chuvas e a vida rufa, secreta e atormentada, entre cestos de legumes e sacos de batata. Não é preciso estar no oceano para naufragar, alguém sussurra, mas logo o vozear cobre as palavras, que o vento leva para a floresta do esquecimento.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Fascínio e cegueira


Um dos principais problemas que se levanta a quem quer conhecer a realidade para lidar com ela é o fascínio exercido pelas palavras. Esse fascínio logo se transforma em cegueira. É o que se passa no mundo da política. Veja-se o caso português. A retórica política usada pelos partidos de poder, mas mais claramente nos de direita, encostava tanto o BE como o PCP à extrema-esquerda. Como partidos extremistas, não poderiam nunca chegar ao poder ou sustentar um governo moderado no parlamento. A verdade, porém, é que há muito as soluções políticas propostas tanto pelo PCP como BE têm um cariz social-democrata e reformista. A designação de extrema-esquerda cegou a direita portuguesa e não a deixou perceber a realidade. Foi isso que tornou penoso o comportamento de Passos Coelho quando a geringonça tomou conta da governação do país. Ele não compreendia o que se passava porque estava cego pela retórica que usava.

Esta cegueira não existe apenas em Portugal. Europa fora, a retórica política está fascinada com a extrema-direita. O rótulo, espera-se, deverá ser suficiente para afastar o eleitorado desses partidos que estão a emergir por todo o lado. Pensa-se que basta fazer uma ligação memorial ao fascismo e ao nazismo para que os cidadãos corram a abrigar-se nos braços dos partidos tradicionais. Enquanto isso, enquanto se usam rótulos e se apela a memórias que já são de muito poucos, fica-se cego para o que está a deslocar largas massas de eleitores para as soluções políticas adversas ao mainstream que tem governado o Ocidente nas últimas décadas. Ainda há dias as eleições regionais holandesas foram ganhas pelo Fórum para a Democracia, um partido recente e, também ele, qualificado como de extrema-direita.

Essas soluções políticas estão a crescer em votos e isso tem um significado que não se quer ver. Os eleitorados estão cansados e agastados com o que os partidos tradicionais têm para lhes propor. E isto, hoje em dia, não diz apenas respeito às questões económicas, embora estas sejam importantes, mas também às questões culturais e civilizacionais. O conjunto de alterações provenientes da globalização e as rupturas culturais (as causas fracturantes, por exemplo) estão a deixar os eleitores inseguros. Os partidos políticos tradicionais não perceberam que estavam a ir longe de mais, que os cidadãos não os acompanhavam. Cegos pelo fascínio que a designação extrema-direita exerce, não viram os eleitores a afastarem-se e a acolher-se nos braços dos que deveriam não ter votos só porque, num acto mágico, se lhes cola um rótulo e se utiliza esse rótulo como um mantra.

[A minha crónica em A Barca de Abril]