Meter equals verse,
equals poetry, equals culture, equals civilization.
Charles O. Hartman, Free Verse, an
Essay on Prosody, p. 6
A recepção hostil da poesia escrita em verso livre – isto é,
em verso que não obedece às regras métricas de distribuição dos acentos tónicos
e dos limites da dimensão do verso – levou a que muitos estudiosos da poesia
considerassem a emergência do verso livre, em finais do século XIX e inícios do
XX, não apenas uma aberração poética como, em última análise, um ataque à
civilização. É isso que Charles O. Hartman sintetiza de forma irónica na frase
citada em epígrafe. A frase tem o poder de, ao falar de versos e de poesia, nos
mostrar aquilo que consideramos ser uma vida civilizada, a qual é sempre
erigida em contraposição com a vida dos bárbaros.
A vida civilizada, se a perscrutarmos a partir da analogia
com o verso, é aquela que tem uma certa medida, tal como os diversos tipos de
versos tradicionais obedecem a certas medidas, as quais impõem um limite para o
tamanho do verso. Esta concepção da civilização tomada em analogia com a
métrica dos versos não deixa, porém, de obedecer a uma concepção moderna de
civilização. Uma ideia que se liga de imediato à civilização é a de limite. Um
ser civilizado é, contrariamente a um bárbaro, alguém que reconhece limites à
sua acção e à satisfação das suas faculdades de desejar e de conhecer. Ser
civilizado significa reconhecer que tanto o que pode desejar quanto o que pode
conhecer é limitado. Esta ideia de limite é central na modernidade e,
fundamentalmente, no Iluminismo e épocas subsequentes.
O carácter moderno deixa-se compreender, talvez ainda com mais
intensidade, numa outra característica presente no verso metrificado, no verso
não livre. Trata-se do próprio conceito de medida. A poesia estaria aberta a
uma compreensão matematizante e quantificada através da escansão das sílabas
poéticas. Escandir um verso é uma forma de medir o verso, de introduzir o
cálculo e a quantidade nesse elemento que, na imaginação popular, está mais
próximo de uma visão qualitativa do real do que de uma visão quantitativa. É
esta ligação do verso à quantidade que permite, juntamente com a ideia de
limite, que se estabeleça a analogia entre verso e civilização, isto é, aquilo
que nós ocidentais modernos consideramos civilização. A vida civilizada do
Ocidente tem no seu fundamento o cálculo e a quantificação. Basta olharmos para
o peso que a economia tem, desde há muito, na vida social e política. Basta
compreender que os sistemas políticos civilizados – isto é, as democracias –
fundam-se na matematização das opiniões expressas em votos e, também, em
sondagens.
No âmbito da analogia entre verso e civilização, podemos,
agora, perguntar o que significa a emergência do verso livre, do verso que
abandonou, na sua estratégia prosódica, o cálculo das sílabas poéticas e a
ideia de limite do verso, isto é, que rompeu com as convenções anteriores. A
primeira coisa que é possível compreender é que uma civilização – tal como um
verso – está fundada em convenções. Assim como a métrica dos versos é uma
convenção, a vida civilizada é também uma vida convencional, uma vida que
adoptou certo tipo de convenções e que proscreveu outras. Isto tem um impacto
muito maior do que se possa pensar. Significa que a civilização ocidental não é
a civilização mas uma civilização
possível entre outras. Tem as suas convenções diferentes de outras convenções
adoptadas por outras formas de vida civilizada. O verso livre, ao relativizar
os versos métricos, diz-nos, ao mesmo tempo, que a nossa civilização é
meramente relativa, um modo de vida entre outros modos de vida possíveis e
civilizados.
Uma segunda consequência do verso livre, se se continuar com
a analogia entre verso e civilização, é que a ideia de limite ou de fronteira
foi estilhaçada. Não é que os limites ou as fronteiras tenham deixado de
existir. Tornaram-se, porém, mais difusos se não mesmo mais confusos.
Curiosamente, foi isso que sucedeu no mundo desde o início do século XX (e o
século XX começa, efectivamente, em 1914, com a Grande Guerra) até aos dias de
hoje. Neste caso, o verso livre teve a capacidade de antecipar o destino da
vida civilizada, onde as fronteiras entre civilizados
e bárbaros, para recorrermos à
distinção grega, se tornaram completamente porosas.
Onde a analogia parece não fazer sentido é na questão do
cálculo e da quantificação. Se o verso livre trocou a quantificação métrica por
outras formas de prosódia para a construção do ritmo e do sentido poéticos, a
vida da nossa civilização continuou – aliás, tem-se assistido a uma
intensificação – dependente do cálculo e da matematização da realidade. Se o
ritmo de um verso já não é dado pela quantidade métrica, a vida civilizada
depende, cada vez mais intensamente, de uma compreensão quantificada da
realidade, seja esta qual for. Aceitando isto, poderemos dizer que a analogia,
há muito intuída, entre verso e civilização falhou completamente. Ou então, uma
possibilidade sempre atraente, pode-se afirmar que o verso livre se constituiu
como uma profecia, acerca da nossa civilização, ainda não realizada, uma
profecia que contém a ameaça do fim de uma vida dependente continuamente do
cálculo e de uma interpretação quantitativa da realidade.