sábado, 31 de outubro de 2015

Despeço-me de Outubro

George Inness - October (1886)

Custa despedir-me de Outubro. Não porque o Inverno se aproxime, mas porque amo a indecisão deste mês, um mês perdido entre a desmedida exuberância do Estio e a frugalidade que se aproxima. Ao meu lado só vejo campeões da decisão, gente de horizontes determinados e de objectivos bem definidos. Gente que sabe fazer pela vida. Em mim, porém, há uma voz recalcitrante, um murmúrio vindo de longe que, por vezes, recrudesce e quase grita: para que serve uma vida reduzida a um projecto, à glória do triunfo dado no cumprimento de objectivos previamente construídos?

Gosto de Outubro e das cores que ele traz à paisagem. Gosto de Outubro porque é um mês de queda e de esquecimento. Novembro quase que começa com a rememoração dos mortos. Ah sim, também tenho mortos a rememorar, mas na verdade prefiro o esquecimento. Os meus mortos doem-me dentro de mim. Por vezes, a dor é insuportável e é preciso esquecê-la. Nessas horas, fico a ver as folhas a caírem das árvores. Um sopro do vento, um leve tremer, e a folha desce, hesitante, e cai quase silenciosa num chão indiferente. A hesitação das folhas ilumina a grandeza da indecisão, esse reconhecimento de que não se sabe o que se quer nem para onde se vai. Despeço-me de Outubro e sento-me no meu escritório. Espero que a Terra siga o seu destino e me devolva o mês que agora me rouba.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Os olhos de Antígona

Frederic Leighton - Antígona

Talvez com as excepções de ter começado a andar aos 10 meses e de me ter iniciado também cedo no uso perceptível da linguagem, nunca fui precoce no que quer que seja. Pelo contrário, em mim as colheitas são tardias e os frutos, por norma, nunca são temporãos. É preciso ter isto em conta para considerar a minha afirmação de que li cedo o Édipo Rei e a Antígona, ambas as obras tragédias de Sófocles. Li-as cedo, mas não com a precocidade dos génios. Li-as na velha edição dos livros RTP, o que não deixa de indicar alguma coisa sobre o país em que vivia, e sobre mim exerceram um continuado e nunca extinto fascínio. Mais do que Édipo, a figura da sua filha Antígona, resultado da incestuosa relação com Jocasta, constituiu-se numa referência fundamental.

Polinices e Eteócles, irmãos de Antígona, batem-se até à morte pelo trono deixado vago pela expulsão de Édipo. Creonte, tio de todos eles, é o novo rei e decreta cerimónias fúnebres para Eteócles e o abandono, ao ar livre e à voracidade das feras, do corpo de Polinices, tomado como traidor à cidade de Tebas. Contrariar esta decisão equivaleria incorrer na pena de morte. Não é o gesto de piedade de Antígona – a sua tentativa de dar sepultura a Polinices – que me marcou, mas o desafio ao poder, o desafio à ordem de Creonte. O trágico destino de Antígona mostrou-me, muito cedo, o lado obscuro do poder, aquilo a que eu chamaria a natureza creôntica do poder político, uma mistura de razão de Estado e de irracionalidade. Não é que isso tenha, alguma vez, feito de mim um anarquista, mas sempre que olho para o poder, aquilo que em mim olha de imediato são os olhos de Antígona, que nunca mais deixaram de estar abertos no fundo da minha alma, e aos quais devo a libertação de certas miragens e de alguns enviesamentos ópticos.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Livro do Entardecer (21) o silêncio

Max Ernst - The Eye of Silence (1943-44)

21. o silêncio

o silêncio é um palácio  antigo
onde guardamos a memória
daquilo que um dia amámos

o olhar que se cruzou comigo
um rosto que não teve história
a voz com que então cantámos

(averomundo, 2010/01/17)

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A memória do mal

Primeira Guerra Mundial (1914-1918)

A História devolve-nos quase sempre uma imagem de melancólica decepção sobre o Homem. O torcido tronco da nossa animalidade, mais tarde ou mais cedo, submete a razão e torna-a instrumento da voracidade violenta que o habita. Essa pulsão para a violência alimenta-se de si mesma mas também da memória. Passados mais de 3 mil anos, os descendentes de David e de Golias continuam, com persistência e zelo, a matar-se. O ministro francês da Economia, Emmanuel Macron, argumentou que a Europa está dividida num conflito entre calvinistas e católicos. Os historiadores apressaram-se a informar que esse conflito entre latinos e germânicos data do tempo do Império Romano. O que aprendemos com tudo isto é que a memória do mal, por mais antigo que seja, nunca se apaga. A qualquer instante essa memória cai sobre nós e envolve-nos na sua própria pestilência. Decididamente, a História não é o lugar do perdão. Mais século ou mais milénio, as constas ajustam-se.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

O lugar da noite

Max Beckmann - A noite

Costumo explicar aos meus alunos uma evidência: a política não é o lugar da verdade. Quem esteja preocupado com a verdade deve procurá-la noutro lado. Na ciência ou na filosofia. A política é o lugar do poder e a relação do poder com a verdade é meramente instrumental. A verdade só é perseguida se for um instrumento de conquista e manutenção do poder. Sempre que é um obstáculo, a verdade é posta de lado. E isto é comum a todas as partes que nela se envolvem. A política não é o lugar onde a luz da razão dissipa as trevas. Sempre que a razão tenta penetrar no conflito político descobre que está perante o território das trevas mais densas, onde paixões e interesses aniquilam a probidade e qualquer compromisso com a verdade. Ali é o lugar da noite.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O pós-Ocidente

Shen Zhou - Branche de néflier

Assim, em última análise, o «post» da pós-Modernidade revela-se como o «post» de uma idade pós-ocidental que ainda se busca a si própria. É um «depois» que sacode as grades do presente e dá expressão a uma claustrofobia dos tempos do fim. (Peter Sloterdijk, A Mobilização Infinita, p. 218)

Quando Peter Sloterdijk escreveu estas palavras ainda o muro de Berlim não tinha caído. Eram, porém, já claros os indícios de que o Ocidente deixara de ser o centro da história. O período que vai de 1917 a 1989, devido à pressão exercida pela ideologia marxista, em vigor numa parte substancial do planeta, tem uma natureza equívoca. Equivocidade essa intensificada pelo facto de o comunismo pretender ser uma saída da história e o socialismo real pretender ser uma história que quer deixar de o ser. Ora esta relação conturbada do marxismo com a história, essa perspectiva pré-moderna e pagã que foge à linearidade mortal da história, foi, após a queda do muro e de imediato, abraçada pelo liberalismo triunfante, que não via, nem vê, nada para além da sua própria vitória e a submissão do mundo à utopia do mercado livre.

Aquilo que se passou de 89 para cá, apenas confirmou a intuição irónica de Sloterdijk. Mesmo que os EUA ainda sejam, e por muitos anos, a principal potência militar do mundo, a verdade é que vivemos claramente numa «claustrofobia dos tempos do fim», vivemos, ao mesmo tempo, no aurora de um mundo que não conhecemos, que não sabemos designar. Mas o ponteiro da história volta-se decididamente para Oriente. O domínio dos EUA representa apenas o tempo da agonia do Ocidente.

Mas o que será esse pós-Ocidente? Não pode ser outra coisa senão o Oriente. Aqui há duas alternativas. Ou o Oriente que triunfa se funda nas tradições de razoabilidade que, da China à Índia, passando pelo Japão, sempre existiram, ou o Oriente é o Médio-Oriente e a tradição do Islão. A herança ocidental, pois é já disto que se trata, apesar de ser constituída por uma parte substancial recebida do Islão, parece ser melhor recebida e trabalhada no Extremo-Oriente. Nestas últimas décadas, as culturas orientais têm dado provas de uma grande capacidade plástica para, sem alterar os seus valores fundamentais, absorverem a cultura ocidental.

Seja como for, a verdade é que entre a Europa e esse mítico Oriente há uma barreira, o mundo inquieto do Islão. O que é perturbante não é a possibilidade de a nossa civilização não sobreviver. Sobreviverá nesse Oriente extremo. O que é perturbante é imaginar que a Europa possa não sobreviver, apesar da sua cultura se ter propagado e entranhado, em parte, no Oriente. A demografia, o cansaço, a velhice não auguram nada de bom perante vizinhos tão jovens e irrequietos. (averomundo, 2008/01/21)

sábado, 24 de outubro de 2015

Livro do Entardecer (20) chuva

José Alfonso Morera Ortiz - Chuva (1992)

20. chuva

agora o vento empurra a chuva
fá-la crescer contra a vidraça
e eu sou essa chuva que cresce
talvez um homem talvez uma farsa

tantas vezes a chuva em mim correu
e muitas outras nela adormeci
água não é o que oiço contra a janela
mas o deus que um dia me sonhou

(averomundo, 2010/01/15)

O rancor de Cavaco Silva

Francis Bacon - After the life mask of William Blake III (1955)

O rancor de Cavaco na comunicação da indigitação de Passos Coelho incendiou os ânimos de toda a esquerda, a qual, recorde-se, obteve mais de 50% dos votos e possui, se unida, uma maioria parlamentar. O que incendiou a esquerda não foi a indicação do líder do PSD para primeiro-ministro. Isso é absolutamente constitucional e, na minha óptica, era a única coisa que Cavaco Silva devia fazer. O que fez os ânimos exaltarem-se foi o despudorado apelo à sedição e concomitante traição nas hostes dos socialistas e a exclusão na participação de soluções governativas que foi sentenciada aos representantes de mais de 18% dos eleitores.

Mais que um rancor político – que também o é – a comunicação de Cavaco é o retrato de um homem derrotado, de um homem que nunca compreendeu a natureza do regime democrático (onde foi tão bem tratado). Derrotado porquê, perguntará o leitor. Cavaco Silva é o homem que, de longe, mais vitórias políticas obteve no Portugal democrático. É um dos grandes responsáveis pela natureza do regime e pelo aspecto que ele tem. Mas podemos dizer que Cavaco foi de vitória em vitória até à derrota final.

Quando se apresta para sair da vida política, depois de 10 anos em Belém, ele, que recebeu um país pacificado, vai deixar o quê? Ele passou os mandatos a falar no consenso dos partidos do arco da governação, embora nunca tenha feito nada para moderar o extremismo do governo e a ânsia de vingança que habitou a maioria absoluta de Passos Coelho e Paulo Portas. Protegeu as tropelias de Portas e as palavras torpes que foram dirigidas aos portugueses mais fracos. Protegeu todas as opções que enfraqueceram as classes médias e deitaram ao desprezo os sectores mais frágeis. O apelo ao consenso foi sempre um apelo para que os socialistas assinassem por baixo os desvarios do governo cessante. Lembram-se de o ir além da troika?

Qual vai ser o legado da magistratura de influência de Cavaco Silva, o legado do seu desprezo pela política e do seu amor à união nacional? Enumeremos o legado: as classes médias destruídas e a consequente destruição do centro político; a sua maioria (PSD+CDS), apesar de sistematicamente protegida por si, em minoria; o país completamente dividido em duas facções, ambas em fronda aberta, ambas despeitadas; um Partido Socialista, que fora sempre um moderador da política nacional, em luta para não desaparecer e, por isso, a encostar-se à sua esquerda; os dois partidos críticos dos actuais caminhos da Europa com um milhão de eleitores, com mais de 18% dos votos e às portas da governação. Este é o legado de Cavaco Silva. É obra.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Sobre a modernidade

Remedios Varo - Modernidad (1936)

Há um assunto que me interessa particularmente que é o da modernidade e do seu hipotético fim. O que quero eu dizer com isto? Que o processo civilizacional que começou no pós-renascimento, com a filosofia cartesiana e a ciência moderna, que ganhou substância no pensamento do iluminismo, nomeadamente com Kant, que encontrou na revolução industrial a sua energia, que supôs, tanto na versão liberal como na marxista, uma emancipação racional, ainda que diferenciada, do homem, pode ter chegado a um ocaso. Há sintomas desse ocaso? Há. Tanto o individualismo, nascido do subjectivismo cartesiano e do liberalismo empirista de Locke, como a ciência e a economia apresentam sinais de profundas contradições.

Por exemplo, o crescimento dos direitos e da afirmação dos indivíduos está a conduzir a situações em que os indivíduos libertados da tutela social se encontram agora abandonados e nesse sentimento de abandono cresce um outro sentimento: o de uma vida desprovida de sentido e, por isso, irracional.

Por seu turno, a economia nascida com a revolução industrial gerou um conjunto de contradições (não apenas as sociais e económicas analisadas por Marx), nomeadamente uma contradição naquilo que foi considerado como um stock de matérias-primas para o homem, isto é, a natureza. O desenvolvimento indefinido da economia implica a existência de um stock infinito sempre disponível. Ora a natureza, esse fundamento material da economia, nem é infinita, nem parece disposta a aceitar sem vingança a sua redução a um mero stock à disposição do capricho do homem.

Por fim, a própria ciência apresenta também contradições interessantes. A ciência é uma actividade de investigação racional da realidade. No entanto, a sua afirmação e expansão foi feita sempre na base de um programa ideológico: a ciência seria um auxiliar libertador e emancipador do homem das tutelas que a ignorância e a servidão à natureza impunham. Ora as ciências empírico-analíticas, como por exemplo a Física, a Química e a Biologia, libertaram um conhecimento tal que ele pôs à disposição um poder que, a cada momento, parece querer abater-se e esmagar o próprio homem. Mas não são apenas as ciências empírico-analíticas que levantam este problema. Também as ciências humanas e sociais, nomeadamente a sociologia e a psicologia, têm contribuído para o crescimento das formas de dominação e de esmagamento do homem. O carácter emancipatório que alimentou a legitimação da actividade científica é hoje absolutamente problemático.

Em todos estes processos, todos de carácter racional, há uma coisa em comum: a razão a dado momento do devir dos processos mostra um fundo irracional. Esta irracionalidade não é a mesma que habitaria os sentimentos de fé medievais ou outro tipo de superstições. É uma irracionalidade gerada pelos próprios mecanismos da razão, de uma razão que, ao mesmo tempo, se fragmenta (razão científica, razão económica, razão social, razão psicológica) e se absolutiza. As contradições apontadas atrás, são apenas encarnações de uma contradição que habita os processos racionais e a própria razão.

Vale ainda a pena olhar para o fenómeno no âmbito da política. A experiência do socialismo, já consumada, mostrou o mesmo fenómeno: a emancipação do homem gerou sociedades onde a liberdade foi aniquilada, como se a emancipação não implicasse, na sua natureza, a própria liberdade. Mas a experiência pela qual agora passamos, a do liberalismo, não é diferente da do socialismo real: a consideração liberal de que todos os homens são seres racionais e se movem por interesses racionais está a mostrar também os seus limites extremos: o interesse racional de alguns é que outros não sejam considerados homens, isto é, que sejam escravos e logo não possuam interesses racionais. Assim como a lógica emancipatória do socialismo acabou, ao eliminar a liberdade, na contradição consigo mesma, também a lógica do liberalismo, ao não limitar o interesse, está a criar condições para uma efectiva eliminação da liberdade e uma desrealização do homem enquanto ser racional (aliás, muito desta análise foi feita por Marx).

Para concluir, o conjunto de contradições que foram geradas pelos tempos modernos, contradições que se agudizam continuamente, apontam claramente para o ocaso da modernidade. Também os conceitos que utilizámos para viver e pensar essa realidade ainda viva estão moribundos. Penso que o conceito de socialismo está morto e o mesmo começa a passar-se com o de liberalismo. Aquilo que talvez seja o mais difícil é a criação de novos conceitos, não conceitos que expliquem o que se passou, mas conceitos que captem o caminho a seguir, que lancem as bases do que se há-de desenvolver. Por exemplo, como pensar a política após a morte do socialismo e do liberalismo? Como conjugar o ideal de liberdade, da tradição liberal, com o ideal de justiça social, da tradição socialista? 

Neste âmbito, a minha perspectiva é a do abandono da submissão da política à economia, submissão presente tanto nos liberais como em Marx. Há que fazer implodir o conceito de economia-política. Avanço uma tese, provavelmente sem qualquer originalidade: o carácter distópico do socialismo real e do liberalismo reside na submissão dos imperativos políticos aos imperativos económicos. Mas isto é ainda e só uma tese sobre o passado histórico. Não é o conceito vivo que permite pensar aquilo que, por não ter sido pensado, dá que pensar. (averomundo, 2008/01/24)

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Senhor de si

Oscar Dominguez - Libertad (1957)

Como muitas vezes acontece, a perversidade pode nascer daquilo que tem um valor intrinsecamente bom. A democracia e o conjunto de direitos que estão na sua base, entre os quais os direitos sociais, são coisas que têm um valor intrinsecamente bom. Move-os o respeito pela liberdade, pela pluralidade de pontos de vista, pela solidariedade comunitária e pela partilha vantajosa para todos de recursos escassos. A perversidade inscreve-se numa das atitudes que geram o fenómeno da abstenção política. Essa atitude é a da decepção.

Essa decepção pode ter várias motivações. Por exemplo, a decepção com a pouca qualidade das elites políticas. Aquela decepção que, porém, é a mais perversa é a que radica na expectativa de que os políticos e a política teriam de tornar as pessoas felizes, teriam de contribuir decisivamente para o bem-estar individual. O corolário desta perspectiva é que a minha infelicidade não se deve a mim, mas que eu sou vítima da malevolência de terceiros. A punição é a da abstenção política e um ódio contumaz a todos os que se dedicam à política.

É evidente que as opções políticas favorecem ou prejudicam certos grupos, mas, em última análise, eu tenho de ser responsável pela minha felicidade e não posso esperar que ela me seja oferecida pela benevolência do governante. A perversão que a política introduz reside na expectativa de que a minha vida deva ser resolvida por outros. Isto significa que eu não sou livre e, por isso, estou destituído de toda e qualquer iniciativa. O grande desafio que se coloca é compatibilizar uma democracia política com direitos sociais e o desenvolvimento nos cidadãos um sentimento de responsabilidade última pelos seus destinos, o sentimento de ser senhor de si.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Livro do Entardecer (19) paixões

Frantisek Kupka - The Book Lover I (1897)

19. paixões

as paixões não são incêndios na planície
nem de labaredas se tecem os corpos
apenas um frio de fogo murmura
sob o rumor da folhagem presa na hera

trazem uma nostalgia de movimento
para fugir à eterna imobilidade que as espera
e assim se entregam ao desmoronamento
como se a vida não fora mais que queda

(averomundo, 2010/01/14)

terça-feira, 20 de outubro de 2015

O processo e a virtude

José Jiménez Aranda - El Quijote

A situação gerada pelos resultados eleitorais merece ser pensada para além daquilo que é o interesse partidário imediato. A questão centra-se na indignação moral de muitos apoiantes da coligação PàF, a mais votada, perante a possibilidade de um partido menos votado, o PS, poder formar governo, desde que consiga um acordo com os partidos à sua esquerda e obtenha, desse modo, uma maioria no parlamento que apoiará esse governo. Na esfera pública, têm-se confrontado, para além do argumento da tradição e do argumento da eficácia política, que deixaremos de lado, dois argumentos. Um argumento moral fundado na ideia de virtude: é injusto – isto é, não é virtuoso – que o partido perdedor das eleições acabe por ser ele a formar governo em detrimento daquele que obteve mais votos. Um segundo argumento puramente processual fundado na lei constitucional: o que determina a formação de um governo não é o facto de se ter obtido mais votos, mas, como o governo depende do parlamento, o facto de conseguir ou não uma maioria de deputados que o apoiem.

Estes argumentos são, à partida, incomensuráveis, pois estão a falar de coisas diferentes. Não se podem contrapor num debate para determinar, por exemplo, como deve agir o Presidente da República. As decisões políticas devem ser tomadas segundo as regras processuais neutras e imparciais elaboradas a priori, devendo deixar de lado considerações de carácter moral. Contudo, a indignação e o grito de injustiça dos apoiante da coligação que obteve mais votos merecem ser pensados. Para tal, contudo, há que dizer que, muito provavelmente, se a situação fosse ao contrário, se fosse o PS ganhar as eleições, mas os partidos de direita obtivessem uma maioria no parlamento, os defensores das normas processuais neutras seriam os actuais apoiantes da coligação e os indignados morais estariam do lado da esquerda, nomeadamente do PS.

O que está em jogo não é muito diferente daquilo que sucede no mundo da economia, quando o mercado de trabalho está desregulado, como por norma é defendido pela direita, e os contratos de trabalho dependem apenas da negociação individual entre trabalhadores e entidades patronais, segundo a presunção de que todos são livres e iguais no acto contratual. Por norma, a esquerda argumenta que essas situações são injustas (moralmente pouco virtuosas), pois, apesar das normas suporem que as partes são livre e iguais, há uma desproporção entre elas, pelo facto do trabalhador estar numa situação de fragilidade e poder ter de aceitar um salário injusto, mas que é determinado pela lei – neutra e imparcial – da oferta e da procura. O que me interessa nestes dois casos não é discutir sobre quem tem razão. O que me interessa é outra coisa: o conflito que há entre as normas processuais tidas como neutras e imparciais e o nosso sentimento de justiça. A aplicação imparcial de normas tidas como neutras e existentes a priori não consegue aplacar a sensação de que eles produzem situações em que nos sentimos injustiçados, pois acabam por recompensar quem perdeu ou penalizar quem é fraco, expulsando da decisão qualquer consideração do que é ou não é virtuoso, do que é bom e justo.

Esta situação emerge com a modernidade e a subsequente autonomização das diversas esferas de vida. A economia tem as suas regras que devem ser autónomas tanto da moral como da política. A política rege-se por princípios que lhe são próprios e de carácter imparcial, que, na prática, não têm em consideração o que é virtuoso moralmente. A moral tornou-se uma questão de consciência individual, mas, devido à pluralidade de convicções morais, que não tem influência decisiva na determinação das regras da vida económica e da vida política. Qual a vantagem de a vida política e de a vida económica se regularem por regras processuais onde a virtude moral – o bem e a justiça – não são tidas em conta? A vantagem é que essas regras processuais não impõem, pelo menos em aparência, nenhum visão particular do que é o bem e do que é o justo. Deixam à liberdade individual a decisão de determinar o que é para cada um a justiça ou o bem. Esta vantagem assenta numa concepção não paternalista e que sublinha o carácter formal da liberdade dos indivíduos e da sua igualdade. A contrapartida é a expulsão da virtude moral na determinação das regras fundamentais da vida em sociedade.

O resultado são as explosões de indignação pela possibilidade das coisas determinadas por essas regras imparciais e neutras colidirem com o nosso sentimento de justiça. A questão, porém, não me parece de resolução conciliatória. Uma das tentativas mais consistentes teoricamente de resolver este problema é a Teoria da Justiça de John Rawls, mas a sua aplicação às sociedades reais é, no mínimo, muito problemática, como o fez notar Robert Nozick. Para que as regras que regulam a vida política e económica fossem permeadas por uma concepção moralmente virtuosa seria necessário que houvesse um consenso sobre o que é virtuoso e que esse consenso se traduzisse na unificação das esferas da acção humana: a política, a moral e a economia. Esse tempo acabou com o fim da cristandade medieval. Subsiste no desejo e no ideário dos fundamentalismos religiosos, mas não é praticável em sociedades plurais. A moral bem como a religião pertencem agora à esfera privada. O que resta? Aos cidadãos resta a vigilância contínua sobre a imparcialidade das regras, nomeadamente das regras políticas, e um debate contínuo sobre o que é a virtude moral que cada um deve ostentar na vida social. Debate significa pluralidade de pontos de vista, comunicação entre eles e argumentação. Esse debate não dará conteúdo substantivo às regras processuais, mas tornará patente o pluralismo moral e a necessidade de aceitar as regras processuais neutras.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Os deuses obscuros

Max Ernst - Os deuses obscuros (1957)

O obscurecimento de Deus trazido pelo Iluminismo, visto a partir da nossa experiência de hoje, tem um curioso resultado. A luz da razão - essa luz que dá nome ao Iluminismo - concentra-se no mundo material, na conhecimento da matéria e na organização da sociedade. O foco, com o passar do tempo, tornou-se cada vez mais forte e poderoso. Onde ele se concentra, nada fica como está. Conhecimento e organização social, ainda que de formas diferentes embora concomitantes, passam continuamente por alterações umas vezes mais reformistas, outras mais revolucionárias, mas em ambos os casos a luz traz a impermanência e a alteração contínuas.

A focalização da luz nestas áreas veio a criar, à volta delas, espaços de obscuridade. Estes espaços não são o lugar do Deus que o Iluminismo afastou e que fez o homem abandonar. Esta obscuridade, que se infiltra nos interstícios  do mundo material e da vida social, é o lugar onde emergem os deuses obscuros que povoam os sonhos, mas não tanto a consciência, dos homens de hoje. Estes deuses obscuros, fundidos à obscuridade gerada pela focalização da luz da razão, tomam os homens de assalto sem que estes tenham a possibilidade de lhes resistir ou, tão pouco, tomar conhecimento desses assaltos. Prestam-lhes culto pensando que é a si mesmos que cultuam. Na verdade, toda a vida contemporânea está organizada como um grande ritual em honra desses deuses obscuros que não reconhecemos mas a quem amamos e obedecemos.

domingo, 18 de outubro de 2015

Destruir o outro

Joan Ponç - Suite Toros (1953)

O clima pós-eleitoral em Portugal, com o grau inusitado de intolerância que tem vindo à luz do dia, é apenas o sintoma de uma doença que alastra por todo o planeta. De há uns anos para cá, tem sido clara a ascendência de ideias e práticas que, em vez de buscarem compromissos, são pautadas pelo desejo cego de aniquilar moral ou fisicamente o outro. A queda do Muro de Berlim, que pôs fim a um período de intolerância controlada, não deu lugar a uma situação mais tolerante e menos perigosa. Alguns exemplos bastam para percebermos que aquilo que agora se manifesta em Portugal, suscitado por resultados eleitorais equívocos, é apenas o reflexo de uma doença que corrói as entranhas da humanidade.

O exemplo mais flagrante é o do fanatismo religioso proveniente do Islão. Não é o único fanatismo religioso, mas é aquele que mais vítimas faz e que tem um programa claro de amedrontamento e de liquidação do outro. O regime chinês também não se caracteriza pela brandura com que trata os opositores. Muitos regimes africanos seguem, de forma mais irracional, o padrão chinês. Na América Latina, do Brasil à Venezuela, a intolerância política cresce todos os dias. Nos EUA, onde havia uma longa tradição de compromisso entre republicanos e democratas, há muito que se vive em grande tensão, com os republicanos a liquidarem, sempre que podem, as iniciativas dos democratas. A própria União Europeia, através de um conjunto de tratados e de organismos não democraticamente validados, aniquilou a possibilidade de alternativas políticas, o que, apesar da aparente brandura, não passa de uma forma refinada de intolerância política, que por vezes se manifesta com extrema brutalidade como no caso da Grécia. Para não falar de outros casos, como a Hungria ou a Rússia.

Parece haver por toda a parte uma necessidade de destruir o outro. Destruir as suas ideias políticas, a sua visão moral do mundo, as suas crenças religiosas. Estão-se a formar grandes conglomerados unidimensionais que lutam por impor, num mundo globalizado, a sua visão do mundo, como se o pensar e o viver de outra forma fosse uma afronta impossível de suportar. Não é que não existam contra-exemplos, como o do actual Papa e de muitas outras figuras religiosas, políticas, do campo da cultura, etc. ou dos movimentos de acolhimento de refugiados que emergiram agora na Europa, mas a energia da intolerância parece crescer todos os dias, alimentada por um desejo de triunfo e esmagamento que parece ser infinito. A continuarmos assim, o prognóstico não é lá muito animador. E não faço ideia como será possível, não digo sequer acabar com este desejo de aniquilação do outro, mas reverter a situação, tornar as posições de tolerância mais dinâmicas e as de intolerância menos enérgicas. E temo que ninguém saiba como domar o touro da intolerância.

sábado, 17 de outubro de 2015

Livro do Entardecer (18) o filósofo

Antonio Bisquert - Filósofos (1979)

18. o filósofo

ao filósofo cabe-lhe a tarefa do infinito
sobre os seus ombros curvados
repousa a negação de tudo o que acaba
na flor não vê pétalas nem o fruto a vir
apenas a ideia que lá não está

cego pela luz do que não tem fim
caminha nesta terra sem pátria ou lar
e assim vai arguindo o arconte da humanidade –
dissolve os frutos maduros da velha árvore
na névoa invisível do obscuro meditar

(averomundo, 2010/01/13)

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Sobre o espírito liberal

El Greco - La expulsión de los mercaderes del templo (1600

O comércio é talvez a actividade que fundamenta o espírito liberal europeu. Antes da emergência da indústria moderna, são os mercadores que lançam o alicerce onde a ideologia liberal ganhou fundamento. Mas o prestígio da actividade é, na história do Ocidente, muito recente. Se se olhar para o espelho da religião, descobre-se, com facilidade, a raiz do velho espírito antiburguês e antiliberal ocidental.

Quem não conhece a história dos vendilhões do templo corridos a chicote por Cristo. Mas este espírito não sopra apenas da vertente judaico-cristã da nossa cultura. Também da vertente greco-latina sopra um espírito pouco simpático para o comércio. Hermes, Mercúrio na versão romana, era ao mesmo tempo o deus do mercado, protector dos comerciantes e dos ladrões. Nada destas coisas acontecem por acaso e são reveladores de um determinado espírito.

O que eu acho mais curioso é certa combinação, numa mesma individualidade, de um espírito liberal e de um espírito tradicionalista, como se ambas as coisas se pudessem casar. Se se atentar nas redes sociais, descobrimos um exército dedicado de liberais, a maior parte tradicionalistas e monárquicos, sempre prontos a denunciar o espírito antiliberal dos que vivem ajoujados à ideologia do socialismo. Eu que não vivo tal ajoujamento, fico espantado com tão grande limitação do conhecimento histórico.

As ideologias socialistas (falo no plural, pois elas são múltiplas) são apenas a espuma de uma atitude histórica muito anterior ao nascimento do liberalismo e do socialismo. Essa atitude é inerente aos fundamentos da nossa cultura e liga-se a uma crítica cerrada ao espírito burguês. Esta crítica pode ter uma origem aristocrática, ou sacerdotal, ou proletária, mas o motivo é sempre o mesmo: o egoísmo que superintende à mentalidade liberal-burguesa. O conflito centra-se entre um ideal de serviço (presente no 1.º, 2.º e 4.º estados) e o pragmatismo egoísta do 3.º estado.

Os liberais sofrem de um défice de compreensão histórica. A ideia de tábua-rasa, aplicada por John Locke à natureza da mente antes da experiência sensível nela inscrever as ideias, acabou por contaminar o espírito liberal. Faz-se tábua rasa de todo o passado histórico, como se o homem tivesse nascido com o Iluminismo. Não nasceu. Quando damos demasiada ênfase aos acontecimentos de momento, ficamos incapazes de perceber a raiz de muitas atitudes e a sabedoria que nelas se esconde. (averomundo, 2008/01/31)

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Adaptação aos contextos

Mateo Vilagrasa - Selva urbana (1987)

A nossa perspectiva é que nada do que o homem tenha pensado ou feito é inteligível excepto no seu próprio contexto de circunstâncias. (Michael Oakeshott, Lectures in the History of Political Thought)

Deixemos de lado o numeroso conjunto de patetices que se dizem e escrevem sobre uma pretensa ilegitimidade – ou coisas ainda mais descabeladas e sem fundamento constitucional –de um governo de esquerda nas actuais circunstâncias parlamentares. Deixemos de lado também a questão de saber se um governo de esquerda é bom ou mau. O que importa perceber é outra coisa e importa perceber para além dos preconceitos e das ilusões que, à direita e à esquerda, não param de ser lançados na esfera pública. O problema é o seguinte: o que está a motivar a alteração de posições do PCP e do BE relativamente à governação e a uma cedência perante os compromissos que Portugal tem com a União Europeia? Este é um dos problemas centrais que os últimos dias têm colocado.

Tomo como princípio de interpretação a perspectiva de um pensador inglês de orientação conservadora, Michael Oakeshott. Esse princípio diz-nos que aquilo que os homens pensam e fazem na política está ligado às circunstâncias. Tomo como princípio complementar uma ideia de orientação darwiniana que se pode traduzir no seguinte: os organismos vivos (e assumo, polemicamente, que os partidos políticos são organismos vivos) para sobreviver têm de se adaptar ao ambiente onde estão inseridos. Destes dois princípios – cuja complementaridade se percebe intuitivamente – decorre a seguinte tese: as posições actuais do PCP e do BE só são compreensíveis ligadas às actuais circunstâncias e representam uma estratégia de adaptação ao ecossistema político em que vivemos, estratégia que resulta de uma alteração da percepção política, de ambos, relativamente ao território político.

Dois factos contribuem para uma alteração da percepção política de ambos. Em primeiro lugar, apesar dos sorrisos de vitória do BE, tanto o PCP e o BE compreenderam, no dia das eleições, senão antes, que a sua política de contestação sistemática estava esgotada. Depois de quatro anos de políticas impopulares, por vezes extraordinariamente agressivas, os dois partidos, apesar dos bons resultados, não conseguiram atingir, somados, 20%. Isto significa que parte significativa dos eleitores quer encontrar soluções dentro do actual sistema (pertença à União Europeia, respeito pelo Euro e pelo Tratado Orçamental). Bastará uma ligeira alteração das políticas de austeridade seguidas até aqui para que BE e PCP refluam, caso se mantenham como organizações de contestação. À primeira vista, os resultados destas forças políticas foram muito bons, mas contêm uma ameaça latente para a sobrevivência desses partidos como organizações políticas com peso nas decisões. Mesmo muitos eleitores tradicionais desses partidos querem que eles sejam parte da solução e não apenas canais de contestação. Esta ameaça à sobrevivência que transpareceu, apesar de disfarçada, nas últimas eleições deve ser tomada em consideração para perceber o que se está a passar.

Em segundo lugar, há um acontecimento decisivo que vai contribuir para que PCP e BE mudem a sua percepção sobre o espaço político (sobre o ambiente onde têm de sobreviver). Trata-se da experiência do Syriza na Grécia. Esta experiência veio liquidar uma ideia que estava presente na  esquerda à esquerda do PS. Essa ideia é a da existência de um outro território político diferente daquele que é traçado pela União Europeia (UE) e dos compromissos que ela implica, território para o qual se poderia emigrar caso não gostássemos daquilo que a UE exige (e que Portugal assinou). Ora Alexis Tsipras e o Syriza vieram mostrar, de forma contundente e que deixou muita gente perplexa, que esse território não existe. Preferiram o mundo organizado pela UE ao caos que sair dela implicaria. As bravatas políticas, fundadas na possibilidade de emigrar para um espaço utópico fora da UE, acabaram nesse dia. Para países como Portugal, Grécia, Irlanda ou Espanha não há, nas actuais circunstâncias, um território político para onde se possa ir. O que significa isto? Que quem quiser fazer política nestes países, quem quiser sobreviver enquanto organização partidária, tem de se adaptar às exigências do território, tem de procurar realizar os seus ideais (por exemplo, defender o Estado social) segundo as circunstâncias contextuais onde está inserido. Não há um fora do sistema. É dentro dele, segundo as regras em vigor, que há que agir. E em política só se pode agir com eficiência se se ocupar o poder.

A disponibilidade para encontrar soluções políticas viáveis mostrada agora por PCP e BE são uma resposta à sua alteração da percepção do território político e à necessidade de adaptação para sobrevivência. Nada disto é particularmente novo, mesmo em Portugal. O PCP desde 1975 que vai fazendo isto, adaptando-se a novas circunstâncias que lhe são adversas. O próprio BE é o resultado – um resultado com assinalável sucesso – de um processo adaptativo dos membros das organizações políticas que lhe deram origem. Mais, isto nem sequer é um privilégio da esquerda. Leiam-se os programas originais do CDS e do PPD. Eles não são mais do que estratégias – que tiveram sucesso – de adaptação a um ambiente que lhes era adverso. Como ensina Oakshott aquilo que os homens – e os partidos políticos – fazem e pensam só é inteligível se considerarmos o seu contexto. O que estamos a ver no PCP e no BE são adaptações ao contexto, mas não são os únicos. Também o PS está a fazer o mesmo, bem como o CDS e PSD, embora nestes dois últimos casos o espectáculo adaptativo seja menos exuberante, pois o território é o seu.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Insónia

Remedios Varo - Insónia I (1947)

Na insónia, descobre-se a estranha e radical alteridade do corpo. O espírito e a vontade ordenam o sono, mas o corpo em tumulto invade o pensamento e gera rios de pensamentos que parecem não ter fim. São pensamentos insones, pensamentos não pensados, mas impostos pelo devir heraclitiano dos humores corporais. O corpo rola na cama, mas a cabeça não pára no atafulhamento que o corpo, esse grande inimigo dos ascetas, lhe impõe. A insónia vem, por norma, devagar, instala-se como quem não quer a coisa, sugere temas a merecer meditação ou urgente e clara resolução. Aqui já está tudo perdido e ao insone resta-lhe abdicar da sua vontade, agora manifesta em toda a fragilidade, levantar-se e espreitar a noite que corre decidida para a manhã. Na insónia, descubro-me como dois e ao levantar-me confesso a minha incapacidade de soldar com firmeza essas partes de mim. (averomundo, 2008/03/10)

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Livro do Entardecer (17) livros

Jan Jansz van der Heyden - Um recanto de uma biblioteca (1710-12)

17. livros

amo certos livros pela textura do papel
frutos de seda ao tocarem os dedos
ou navios que chegam ao cais
sobre a escura quietação das águas

aqueles que mais amo são estátuas
figuras hirtas de pedra e papel
olham-me da lonjura da estante
e pedem que os deixe no sono eterno

assim vagueio entre os meus livros
como se passeasse à tarde num jardim
sento-me e acaricio páginas são pétalas
e adormeço sob o olhar que vela por mim

(averomundo, 2010/01/12)

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A política como tragédia

Antígona e o corpo de Polinices

Desde muito cedo na minha vida que descobri um interesse especial pela questão política. A princípio foi um interesse ingénuo e vagamente sentimental. Pensava que ela era um sítio de salvação da humanidade ou, talvez, minha. Depois, passado esse período de românticas ilusões, ela interessou-me como elemento de estudo, como matéria de reflexão. Por fim, desde há muito tempo que ela me interessa do ponto de vista estético. Primeiramente, como jogo. Observo com prazer a forma como as diversas peças se movimentam no tabuleiro, como se evitam ou como se enfrentam. Em segundo lugar, como tragédia. Não me refiro à produção de acontecimentos a que a comunicação social chama, indevidamente, tragédia. Refiro-me mesmo à tragédia grega. Gosto de observar como os heróis e as heroínas (os dirigentes políticos) se encaminham, devido à hübris, para a sua própria perdição. E a época política que estamos a viver é fértil em gente sem contenção nas palavras, pronta para se perder. Sinto sempre um estranho arrepio de dor e prazer quando vejo uma Antígona no palco enfrentando o velho Creonte.

domingo, 11 de outubro de 2015

A Fonte Luminosa

Manifestação na Fonte Luminosa (1975)

Anda um espectro pela Europa — o espectro do Comunismo. Todos os poderes da velha Europa se aliaram para uma santa caçada a este espectro, o papa e o tsar, Metternich e Guizot, radicais franceses e polícias alemães. (Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, 1848)

De um momento para o outro, os velhos poderes fácticos (os dos partidos do arco da governação e os dos negócios com o Estado) foram tomados por um grande terror. Parece que um espectro vindo dos séculos passados está assombrar a vida tranquila com que políticos e gente dos interesses se entretinha na destruição das classes médias e na privatização dos elementos estruturais do Estado social. O espectro – uma verdadeira aventesma, como se sabe – não é outro senão o espectro do comunismo, que agora se manifesta nessa estranha possibilidade de comunistas e bloquistas poderem participar num governo de coligação com os socialistas. Hoje em dia os velhos poderes fácticos já não podem apelar ao Tsar, pois o seu tempo acabou há muito, nem ao Papa, pois este parece pouco preocupado com os delírios dos poderosos, resta-lhes apelar à memória dos socialistas e a esse momento crucial de 1975, que foi a grande manifestação na Fonte Luminosa, onde Mário Soares fez frente ao PC e à extrema-esquerda. Isso terá algum sentido? Tem do ponto de vista da manobra política, mas é irrelevante quanto aos perigos que possam vir por aí.

Em 1975, no início da democracia portuguesa, havia, de facto, uma confrontação entre dois modelos de sociedade e havia ainda um mundo dividido pela Guerra Fria e o Muro de Berlim. De 1975 para cá, muita coisa mudou e a percepção do que é possível e desejável também mudou. Do ponto de vista internacional, o bloco soviético desfez-se como se fosse um castelo de areia, o capitalismo financeiro tomou conta do mundo e a globalização quase pôs fim ao mundo industrial na Europa e, consequentemente, à classe operária, pretensamente revolucionária. Não há na Europa, mesmo dentro da esquerda dita radical, quem acredite na possibilidade do comunismo ou de uma qualquer revolução popular. Do ponto de vista nacional, também a situação de hoje nada tem que ver com a de 1975. Nesses dias, jogava-se o caminho que o país seguiria. Hoje em dia, os caminhos estão traçados e são sólidos (enquanto a União Europeia não se desfizer). Mesmo aqueles que advogam a saída do Euro sabem que não há espaço para o fazer. Resta ainda dizer uma coisa. Se em 1975 o PC e a extrema-esquerda (aquela que deu origem ao Bloco de Esquerda) se portaram fora do âmbito daquilo que seria expectável numa democracia parlamentar e representativa, a verdade é que depois do 25 de Novembro, a sua conduta é exemplar, cumprindo escrupulosamente as regras da democracia e contribuindo, como os outros partidos, para o seu desenvolvimento e consolidação. Note-se, ainda, o papel absolutamente moderador da contestação social que o PC tem tido nos últimos quatro anos. Sem a disciplina e organização do PC, muita contestação social poderia ter tomado rumos violentos e de desafio à legalidade. O que aconteceu, porém, foi outra coisa. O PC – através da sua influência sindical – conduziu sempre a contestação às medidas governamentais dentro do espaço da lei e da ordem, foi um factor de equilíbrio e moderação social, contribuindo para dar vazão às tensões sociais que o governo gerou. Vir agora falar na Fonte Luminosa é, do ponto de vista da situação histórica onde nos encontramos, um disparate sem pés nem cabeça. E este disparate acaba por ocultar aquilo que é essencial no caso, meramente hipotético, de um governo de coligação à esquerda.

O que é então essencial, do ponto de vista nacional, assegurar para que seja possível, em teoria, um governo de coligação à esquerda? Em primeiro lugar, que o PC e o BE aceitem cumprir todos os compromissos internacionais de Portugal e abandonem, enquanto partidos da governação, a retórica que pode pôr Portugal numa rota de colisão com as instituições europeias. Há que aprender com a experiência do Syriza na Grécia. O que está em jogo não é a verdade científica sobre a melhor forma de gerir a dívida (aí Varoufakis tinha razão). O que está em jogo é a questão política e a real situação do país. Portugal não tem qualquer possibilidade de ter uma política de confrontação com as instituições, portanto a melhor maneira de atingir os objectivos (diminuir o sofrimento dos portugueses e relançar a economia e o emprego) é tentar fazê-lo por dentro das instituições, dentro das regras em vigor (não temos força para mudá-las) e chegar a acordos sólidos, sem gritaria e sem irresponsabilidade. Tanto o PC como BE devem ter aprendido muito com o equívoco do Syriza na Grécia. A humilhação imposta foi de tal ordem que até os mais distraídos devem ter percebido a realidade. Em segundo lugar, o PC e o BE devem ter uma atitude reformista ao nível da organização do Estado, visando-o torná-lo mais eficiente, mais neutro e mais imparcial. Devem pugnar também por uma economia de mercado mais saudável e mais inovadora.

Dirá o leitor: mas para tudo isso não são precisos o PC e o BE, o que é que eles poderão então realizar no governo e que esteja de acordo com os seus programas? Para além de poderem dar um contributo importante na reforma do Estado, já que não estão comprometidos com as práticas de corrupção e compadrio correntes, deverão concentrar-se na defesa do Estado social. Defesa da Segurança Social, da Saúde Pública, da Escola Pública e do desenvolvimento do aparelho científico nacional (tão atacado pela actual maioria). Isto, para mais de 80% da população, incluindo muita que vota PSD e CDS, não é pouca coisa. É muito, e a qualidade de vida dessas pessoas depende da defesa desses bens sociais. E isso é necessário porque a direita coligada tem como objectivo a sua destruição, entregando os dinheiros dos impostos a interesses privados, cujo fim é o lucro próprio e não a segurança, a saúde e a educação das pessoas. Este seria o programa de uma coligação de esquerda. Sem qualquer utopia, vincando uma faceta social-democratizante, participando, com responsabilidades efectivas, na defesa daquilo que, enquanto oposição, defendem. Se os socialistas chegarem a um acordo com comunistas e bloquistas que contemple todas estas facetas, não há qualquer razão para que não haja um governo de coligação de esquerda, pois esta é maioritária no parlamento e na sociedade.

Deixemo-nos, portanto, de idiotices sobre a Fonte Luminosa, o perigo do comunismo, os tanques soviéticos, o Gulag e outras parvoíces que se escrevem por aí. Isso aconteceu, mas o mundo mudou e, tirando a mente da direita alucinada e de alguns socialistas à procura de espaço para chegarem ao poder dentro do PS, toda a gente sabe que o espectro do comunismo já não assombra ninguém, pois o próprio espectro morreu de susto ao ser assombrando por outro espectro que anda por aí agora e, ao que parece, bem vivo. Hoje a Fonte Luminosa ficaria praticamente vazia. A única coisa que interessa é saber se PC e BE estão dispostos a abandonar uma parte das suas ideias (que são minoritárias no país) para defender aquelas ideias que, sendo suas, são também de uma  parte substancial dos portugueses. O resto ou é alucinação ou uma tentativa para ser poder, mesmo que não se tenha maioria para o exercer. Uma coisa, contudo, é verdade, há muita gente que está em pânico com a possibilidade de se introduzir um corte naquela ligação especial entre os partidos do poder e o mundo discreto dos negócios. E é esse pânico que está a mover os ditirambos à Fonte Luminosa.

sábado, 10 de outubro de 2015

Pensar

Odilon Redon - O pensamento (1880)

Com tanta mente exaltada (pessoas que já vêem os tanques soviéticos a caminho de Portugal, esquecendo-se que a URSS já acabou e que o camarada Estaline já morreu há muito) por causa da hipotética possibilidade de formação de um governo de coligação à esquerda, a melhor forma de intervir na exaltação é republicar um texto escrito nos 200 anos da morte de Immanuel Kant, cujo título é Pensar. Não tem nada a ver com o assunto, mas era bom que as pessoas, antes de se inflamarem, pensassem.

Passam agora 200 anos sobre a morte de Immanuel Kant. A maioria dos portugueses nunca deve ter ouvido falar dele. Contudo, se há alguém que marca, ainda hoje, os ideais e as formas de vida política que reconhecemos como válidos e dignos de respeito, esse alguém é precisamente o filósofo de Konigsberg.

O Professor Kant, todavia, está nos antípodas daquilo que a nossa sociedade promove: não teve uma vida espectacular, não acumulou aventuras amorosas, se é que teve alguma, não foi rico, levou uma vida austera, disciplinada e de trabalho intelectual sério. Apesar de ter sido um inovador, nunca foi um homem da moda. Aquilo que ele fazia – pensar – não merece, de qualquer aluno das nossas escolas ou de qualquer condottiero da opinião pública, mais do que um esgar de desprezo.

O que, no dia de hoje, se deverá homenagear não será tanto os seus pensamentos, as grandes realizações ao nível da filosofia do conhecimento, da moral, da estética, do direito ou do pensamento político. O que é digno de homenagem, num mundo votado à voracidade da acção, submetido à eficácia da técnica e centrado na pura exibição da vaidade pessoal, é o próprio acto de pensar. Numa conferência de 1955, Heidegger, outro pensador alemão, referia que o “Homem actual está em fuga do pensamento”.

Essa fuga é o maior dos perigos para a humanidade, pois representa a alienação daquilo que a distingue no concerto dos seres que habitam a Terra. Este Homem que está em fuga do pensamento está em todo o lado: nas escolas, nas universidades, nas empresas, no Estado. Fundamentalmente, na comunicação social. É este homem que educa as novas gerações no desprezo não apenas pelo acto de pensar, mas também pelas virtudes que Kant ostentava: a sobriedade, a moderação, o trabalho dedicado e, acima de tudo, a modéstia que distingue aqueles que efectivamente são grandes.

As últimas palavras de Kant – «é bom.» – são enigmáticas. Não se sabe, naquele momento em que a morte e a vida por uma última vez se juntam, se era uma avaliação da vida ou uma saudação da morte que o filósofo moribundo fazia. Tenho para mim, porém, que era apenas uma palavra de esperança: uma afirmação do que é bom, isto é, da bondade, desse valor supremo que há que distinguir do mal e da perversão. É bom pensar! (Jornal Torrejano, Fevereiro de 2004)

Livro do Entardecer (16) estrela

Vincent Van Gogh - Road with Cypress and Star (1890)

16. estrela

a súbita estrela que irrompe na tarde
e anuncia o calor vindo dos trópicos
foge como se uma maldição nascesse
no lugar onde o tempo se tece

como um mendigo caminha pelos campos
e estende a mão a quem passa
e todos passam sem olhar a estrela caída
que errante adormece à beira da estrada

(averomundo, 2010/01/10)

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Modernização e totalitarismo

Giacomo Balla - Abstract Speed - The Car has Passed (1913)

O discurso da modernização rompe com uma continuidade histórica, e a forma como o poder é levado a legislar sem cessar conduz à inversão da função da lei que, longe de ser um factor de estabilidade, é posta ao serviço de um movimento de adaptação destabilizante. As exigências da modernização respondem a um movimento histórico que parece igualmente sem fim. E todos aqueles que fazem valer a sua ligação à herança cultural, que entendem não se submeter, não adquirem o estatuto de inimigos objectivo que entravam o movimento [de modernização]? [Jean-Pierre Le Goff, La démocratie post-totalitaire, pp. 23]

O movimento de modernização que atinge os países ocidentais tem duas características que se devem sublinhar: por um lado, o corte com a tradição, aquilo que Le Goff chama a herança cultural; por outro, a perversão da função das instituições tal como o homem as foi criando. Veja-se o caso da lei. Até aqui, a lei tinha a função de estabilizar a sociedade. Hoje, e o governo português é apenas um exemplo, a lei serve para criar dinâmicas de ruptura dentro da vida social. Em lugar da estabilidade, o que se pretende é uma mobilização sem fim que, aliada ao corte com a tradição, acabe por destruir em cada homem o significado da sua humanidade. O que está em jogo nos processos de modernização é apenas e só a destruição da humanidade, a passagem para um tempo pós-humano. (averomundo, 2008/03/16)

terça-feira, 6 de outubro de 2015

A menor das derrotas dos socialistas


O não ter ganho as eleições pode ser a menor das derrotas que os socialistas sofreram no domingo passado. Comecemos, porém, pela parte trágica da derrota de António Costa. Se os políticos tivessem a paciência e o interesse para meditar sobre as tragédias de Ésquilo, teriam muito menos dissabores. Seja o que for o que pensemos de António José Seguro – e eu penso, do ponto de vista político, muito mal – o acto de desafio de António Costa foi marcado por uma hybris (excesso, desmedida) que não augurava nada de bom. As erínias, essas vingadoras, fariam ouvir o seu zumbido quando fosse a hora menos propositada. Neste caso, foi no domingo. Mas onde se encontra o excesso de Costa? Em pretender que tinha a dar ao eleitorado algo que Seguro não tinha. Esta foi uma presunção fatal e é um dos grandes problemas dos socialistas.

Os socialistas portugueses – como os seus congéneres europeus – estão reféns das suas opções, aquelas que foram tomando ao longo das últimas décadas, e que não os diferencia em nada da direita. A principal derrota dos socialistas está na constatação de facto que, depois de terem liquidado a social-democracia que os orientava, não servem para nada. As políticas que propõem – salvo uma palavra aqui e outra ali, com paladar mais social – não se distinguem das da direita. E a maioria dos eleitores que votou nos partidos adeptos da austeridade preferiu a direita genuína em vez de uma direita com um nome de esquerda. O papel que os socialistas europeus tiveram no século XX acabou. Deixou de haver um meio-termo entre o liberalismo da direita e os sonhos marxistas da esquerda radical, digamos assim, deixou de haver lugar para uma moderação, como o próprio programa económico dos socialistas reconheceu.

Não menos preocupante é a fuga de votos do PS para o BE. É já segunda vez que acontece, mas não se trata da mesma coisa. E nesta diferença reside uma das grandes derrotas dos socialistas. Da primeira vez, os votos fugiram para o BE devido a Sócrates. Ninguém já suportava o homem nem a sua ministra Lurdes Rodrigues, nem os malabarismos de um governo arrogante. António Costa, porém, é diferente, não tem atrás de si governações polémicas, e vinha com boa imagem da Câmara de Lisboa. Tudo isso, contudo, não foi suficiente para segurar a esquerda do PS nem para atrair o voto que se deslocou directamente da direita para o BE. Ora os eleitores estão a fazer uma experiência. Muita gente que nunca votaria CDU não terá problema, como já se viu, em votar BE. E esta experiência pode acabar por fixar um eleitorado do BE bem superior aos seus 5% habituais. Os socialistas devem ter saudades do tempo em que à sua esquerda só existia o PCP.

Estes dois factores – ausência de um papel político específico e emergência de uma força política, o BE, capaz de penetrar em eleitorados onde o PC nunca entrou nem entrará – conjugados com a imagem do partido (casos Sócrates, Vara e de uma multidão de pessoas que, não tendo problemas com a justiça, ninguém suporta) conjugam-se numa síntese que deveria deixar os dirigentes socialistas – e todos aqueles que, com a derrota de domingo, acham que devem brincar às Electras e aos Orestes – de cabelos em pé. Estas eleições podem (escrevo podem e não foram) ter sido a porta para o aniquilamento do velho Partido Socialista. Não ter sido o primeiro partido, não ter ganho as eleições, foi a menor das derrotas dos socialistas.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A vitória da coligação

Para além das percentagens e dos deputados eleitos, o que podemos ler – tanto quanto é possível ler no somatório de milhões de vontades e razões individuais – na votação de ontem? Antes de começar a leitura, um aviso à navegação. Uma coisa são os desejos e outra é o possível e realizável. Uma coisa é o princípio de prazer e outra o de realidade. O que nos dizem as eleições de ontem? Comecemos por uma análise dos resultados da coligação PAF (PSD/CDS). Nos próximos dias, olhar-se-ão os resultados do PS, do BE, da CDU e do PAN.

A coligação governamental teve uma vitória estrondosa, apesar de ter perdido a maioria absoluta e cerca de 700 mil votos. Por que razões enfatizo a vitória da coligação? Por 5 razões. Em primeiro lugar, conseguir ganhar as eleições, mesmo com maioria relativa, depois de quatro anos de uma governação radical (ir além da troika, mandar as pessoas emigrar, etc. etc.), embora suavizada com o aproximar das eleições, é um feito notável. Governações destas são, por sistema, reduzidas a pó nas urnas. Esta não foi.

Em segundo lugar, porque, com estes resultados, a coligação tem todas as condições, com pretextos mais ou menos irrelevantes, para fazer cair o seu próprio governo minoritário, alegando bloqueio da oposição, e ganhar umas novas eleições com maioria absoluta. Não nos iludamos com a voz mansa de Coelho e de Portas no dia de ontem. A candura das declarações fazia já parte da nova campanha eleitoral em curso. Os objectivos estão traçados: encostar os socialistas às cordas. Ou votam no que a coligação bem entender, depois de uma encenação de busca de consenso, ou a coligação gritará por tudo o que é sítio que não deixam governar quem ganhou. E a coligação é muito profissional a gritar.

Em terceiro lugar, porque consolidou Passos Coelho, à partida uma personagem menor, como figura central no sistema político português. Não interessa se se gosta ou não do líder do PSD. A verdade é que ele pôs Paulo Portas no lugar, tornando-o uma espécie de valete de quarto, liquidou António José Seguro e António Costa. A substância dos políticos testa-se na luta pela conquista e pela manutenção do poder e Passos Coelho tem passado nos testes, mesmos os mais difíceis, como o de ontem. Goste-se ou não.

Em quarto lugar, porque tem o PS, o maior partido da oposição, refém das suas posições. A grande descida de votos da coligação governamental e o pequeno aumento dos socialistas não foi suficiente para tornar a maioria governamental refém dos socialistas. Nas actuais circunstâncias políticas (sublinho nas actuais, pois a realidade é volátil e pode mudar), são os socialistas que estão reféns dos desejos e da vontade da coligação. E não se antevê que os socialistas se possam facilmente libertar do abraço que a coligação lhes vai dar. Qualquer alinhamento dos socialistas com a esquerda provocará uma tempestade tal que o largo do Rato ameaçará cair.

Em quinto lugar, é uma grande vitória porque o espaço ideológico a que pertence ficou claramente consolidado. Esta é a maior vitória da coligação de direita. Explico. Em 2011, Passos Coelho ganhou mentindo sistematicamente, atacando Sócrates pela esquerda, canalizando para si o descontentamento com a austeridade já em vigor no tempo de Sócrates. Em 2015, quase 40% do eleitorado, depois de ter experimentado um governo com políticas austeritárias e tintas liberais, disse que gostou e que quer mais.

A vitória ideológica da coligação não acaba aí. Os próprios socialistas apresentaram-se com um programa ideologicamente semelhante ao da coligação, talvez, em certos aspectos, ainda mais liberalizante. Mesmo assim, e apesar de ter perdido votos para a esquerda, a versão austeritária e liberal dos socialistas obteve mais de 30% dos votos. Cerca de 70% dos portugueses disse claramente que queria a política imposta por Bruxelas e determinada pela Alemanha, que queria ares mais liberais na economia e mais dissolução do Estado social, embora de forma mais gradual.

Dir-se-á que esta percentagem é a habitualmente obtida, talvez um pouco menor, pelo grupo de partidos do arco da governação. É verdade, mas há uma diferença absoluta. Até aqui esses partidos tinham essa votação na base de promessas mirabolantes. Nas eleições de ontem não foi assim. Quem foi votar sabia claramente ao que ia. Os 70% de eleitores votaram numa das versões caseiras do ordo-liberalismo dominante na Europa. Isto significa que, de uma maneira ou de outro, o papel do Estado como factor de igualdade sofreu uma pesada derrota, apesar das condições ontem enunciadas por Costa para haver acordo com a maioria.

Concluo como comecei. Uma coisa é o que desejamos e outra é aquilo que a realidade nos devolve. O que aconteceu ontem foi uma subtil mudança de território político, mudança imposta pela direita durante quatro anos e consagrada nas eleições. Quem não se revê nos princípios triunfantes o pior que pode fazer é achar que há uma maioria de esquerda na assembleia e que isso tem alguma consequência na governação. A questão será, de facto, outra: como trazer para dentro do novo território os princípios que parecem não ter lugar nele?