Mateo Vilagrasa - Selva urbana (1987)
A nossa
perspectiva é que nada do que o homem tenha pensado ou feito é inteligível
excepto no seu próprio contexto de circunstâncias. (Michael Oakeshott, Lectures
in the History of Political Thought)
Deixemos de lado o numeroso conjunto de patetices que se dizem e
escrevem sobre uma pretensa ilegitimidade – ou coisas ainda mais descabeladas e
sem fundamento constitucional –de um governo de esquerda nas actuais
circunstâncias parlamentares. Deixemos de lado também a questão de saber se um
governo de esquerda é bom ou mau. O que importa perceber é outra coisa e
importa perceber para além dos preconceitos e das ilusões que, à direita e à
esquerda, não param de ser lançados na esfera pública. O problema é o seguinte:
o que está a motivar a alteração de posições do PCP e do BE relativamente à
governação e a uma cedência perante os compromissos que Portugal tem com a
União Europeia? Este é um dos problemas centrais que os últimos dias têm
colocado.
Tomo como princípio de interpretação a perspectiva de um pensador
inglês de orientação conservadora, Michael Oakeshott. Esse princípio diz-nos
que aquilo que os homens pensam e fazem na política está ligado às
circunstâncias. Tomo como princípio complementar uma ideia de orientação
darwiniana que se pode traduzir no seguinte: os organismos vivos (e assumo,
polemicamente, que os partidos políticos são organismos vivos) para sobreviver
têm de se adaptar ao ambiente onde estão inseridos. Destes dois princípios –
cuja complementaridade se percebe intuitivamente – decorre a seguinte tese: as
posições actuais do PCP e do BE só são compreensíveis ligadas às actuais
circunstâncias e representam uma estratégia de adaptação ao ecossistema
político em que vivemos, estratégia que resulta de uma alteração da percepção
política, de ambos, relativamente ao território político.
Dois factos contribuem para uma alteração da percepção política de
ambos. Em primeiro lugar, apesar dos sorrisos de vitória do BE, tanto o PCP e o
BE compreenderam, no dia das eleições, senão antes, que a sua política de
contestação sistemática estava esgotada. Depois de quatro anos de políticas
impopulares, por vezes extraordinariamente agressivas, os dois partidos, apesar
dos bons resultados, não conseguiram atingir, somados, 20%. Isto significa que parte
significativa dos eleitores quer encontrar soluções dentro do actual sistema
(pertença à União Europeia, respeito pelo Euro e pelo Tratado Orçamental).
Bastará uma ligeira alteração das políticas de austeridade seguidas até aqui
para que BE e PCP refluam, caso se mantenham como organizações de contestação. À primeira vista, os resultados destas forças
políticas foram muito bons, mas contêm uma ameaça latente para a sobrevivência
desses partidos como organizações políticas com peso nas decisões. Mesmo muitos
eleitores tradicionais desses partidos querem que eles sejam parte da solução e
não apenas canais de contestação. Esta ameaça à sobrevivência que transpareceu,
apesar de disfarçada, nas últimas eleições deve ser tomada em consideração para
perceber o que se está a passar.
Em segundo lugar, há um acontecimento decisivo que vai contribuir para
que PCP e BE mudem a sua percepção sobre o espaço político (sobre o ambiente
onde têm de sobreviver). Trata-se da experiência do Syriza na Grécia. Esta
experiência veio liquidar uma ideia que estava presente na esquerda à esquerda do PS. Essa ideia é a da
existência de um outro território político diferente daquele que é traçado pela
União Europeia (UE) e dos compromissos que ela implica, território para o qual
se poderia emigrar caso não gostássemos daquilo que a UE exige (e que Portugal
assinou). Ora Alexis Tsipras e o Syriza vieram mostrar, de forma contundente e
que deixou muita gente perplexa, que esse território não existe. Preferiram o mundo
organizado pela UE ao caos que sair dela implicaria. As bravatas políticas,
fundadas na possibilidade de emigrar para um espaço utópico fora da UE,
acabaram nesse dia. Para países como Portugal, Grécia, Irlanda ou Espanha não
há, nas actuais circunstâncias, um território político para onde se possa ir. O
que significa isto? Que quem quiser fazer política nestes países, quem quiser
sobreviver enquanto organização partidária, tem de se adaptar às exigências do
território, tem de procurar realizar os seus ideais (por exemplo, defender o
Estado social) segundo as circunstâncias contextuais onde está inserido. Não há
um fora do sistema. É dentro dele, segundo as regras em vigor, que há que
agir. E em política só se pode agir com eficiência se se ocupar o poder.
A disponibilidade para encontrar soluções políticas viáveis mostrada
agora por PCP e BE são uma resposta à sua alteração da percepção do território
político e à necessidade de adaptação para sobrevivência. Nada disto é
particularmente novo, mesmo em Portugal. O PCP desde 1975 que vai fazendo isto,
adaptando-se a novas circunstâncias que lhe são adversas. O próprio BE é o
resultado – um resultado com assinalável sucesso – de um processo adaptativo
dos membros das organizações políticas que lhe deram origem. Mais, isto nem
sequer é um privilégio da esquerda. Leiam-se os programas originais do CDS e do
PPD. Eles não são mais do que estratégias – que tiveram sucesso – de adaptação
a um ambiente que lhes era adverso. Como ensina Oakshott aquilo que os homens –
e os partidos políticos – fazem e pensam só é inteligível se considerarmos o
seu contexto. O que estamos a ver no PCP e no BE são adaptações ao contexto,
mas não são os únicos. Também o PS está a fazer o mesmo, bem como o CDS e PSD,
embora nestes dois últimos casos o espectáculo adaptativo seja menos exuberante, pois o
território é o seu.
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