terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Comentários (1)

Hannah Höch, Self portrait with Raoul Hausman, ca. 1919
Estávamos à conversa
e de repente calámo-nos.
Wislawa Szymborska
 
Por vezes, as coisas mudam lentamente, como se o tempo fosse um animal saciado e paciente, sem que os nossos olhos detectem o movimento, tornando-se cegos perante aquilo que sob eles se transforma. Outras, porém, a mudança é tão súbita, o tempo tão ansioso, que não resta, perante o espectáculo, senão suspender as nossas conversas e entrar no silêncio, como quem entra num quarto escuro e espera que os olhos se habituem às trevas para se poderem orientar num território desconhecido.

domingo, 29 de janeiro de 2023

Ensaio sobre a luz (97)

Deborah Turbeville, Vera Abrusova, Stroganov Palace, 1996
Uma última pedra e toda a luz desabará sobre o corpo preso ao enigma que canta dentro de cada vida, roubando-lhe a arte da respiração, o fluxo do sangue que anima os pés ao dançarem, a lâmina com que as mãos cortam o ar para as narinas, em silêncio, o poderem sorver. Uma última pedra e o mais insuportável dos pesos, o da luz imponderável, afogará o corpo vivo no grande lago do mundo.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Simulacros e simulações (43)

Harold Edgerton, This is Coffee, 1933

A precipitação dos objectos para a queda não é mais do que a projecção do impulso para a morte que habita naqueles que os criam ou usam. Entre os seres humanos e os artefactos que produzem existe um fio delicado e invisível, mas que permite simular na destruição de uma coisa o desaparecimento de si mesmo.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Cardílio (24 sonetos) 2

Vila Cardílio

Ruínas, ervas, noites deserdadas,
Sonhados sonhos, âncora que a morte
No tempo sempre arvora. Pedras vãs,
Ruas de palha ao tormento abandonadas. 

No pó que agora tudo em si recolhe
Há vidros de sol e água, breves nuvens
De ardósia, ervas rasas, velhas lágrimas
Que teus olhos cansados derramaram.

Tudo se desvanece no olvidado
Mundo: razões distintas ou verdades
Falazes. Tudo é pedra, tudo é nada.

Só ficaram murmúrios dos teus gritos
Surpresos pelo sol da madrugada.
Ruínas, sonhos são nunca sonhados.

2007


sábado, 21 de janeiro de 2023

Os professores, mais uma vez

O mal-estar entre os docentes remonta a 2005, ao consulado de Sócrates e Lurdes Rodrigues, onde o governo de então perpetrou um conjunto de ataques à classe e à própria profissão. Vejamos os motivos do descontentamento actual.

Municipalização do ensino. Os professores temem ficar submetidos às burocracias camarárias, que passariam a superintender a educação, sem conhecimento da realidade educativa. Receiam, e muito, que os concursos de docentes se tornem municipais. A classe não confia em concursos de professores sob a alçada dos municípios.

Tempo de serviço não contado para progressão na carreira. Os professores nunca aceitaram que o tempo em que estiveram congelados não fosse contado para a sua progressão na carreira. São mais de seis anos. Os professores não pedem que lhes seja devolvido o dinheiro que foi cortado nos salários, apenas o tempo que trabalharam.

Estatuto da carreira docente. Na verdade, não há uma carreira docente. Um professor começa a carreira e acaba-a a fazer as mesmas coisas. A ideia de carreira foi um truque dos governos para evitar pagar ordenados decentes, tendo em conta a formação e o papel social dos professores, fazendo-os subir uma longa escada. Até 2005, um professor podia chegar ao escalão mais alto, se cumprisse tudo o que estava determinado, ao fim de 26 anos de profissão. Isto é, já próximo dos 50 anos. A partir de Sócrates/Lurdes Rodrigues, é aos 32 anos, embora muitos professores fiquem retidos muitos anos em dois dos escalões intermédios. A maioria não chegará perto do último escalão. Os docentes contestam também o modelo de avaliação docente, que, na opinião de muitos, e não sem razão, é fomentador de grandes injustiças.

Manutenção de muitos milhares de professores fora dos quadros. Apesar de as escolas estarem sempre a necessitar de professores, as vagas para aceder aos quadros abrem com muita parcimónia. Um truque para manter milhares e milhares de professores, os contratados, fora da carreira, o que implica salários ainda menores.

A concepção de escola dominante. Este não será o menor dos problemas. Aquilo que é exigido aos professores é muito mais do que ensinar alunos. Toda a vida escolar se tornou um imenso exercício de burocracia. Reuniões, planos, projectos, monitorizações, avaliações. Os professores gostariam de ensinar as suas disciplinas, mas isso é desvalorizado pelas políticas educativas. Os professores desejam concentrar-se no básico, ensinar alunos, o Ministério de Educação aposta em criar um inferno burocrático nas escolas.

Desde Sócrates e Lurdes Rodrigues que se anda nisto. António Costa e João Costa não são melhores. O desprezo dos socialistas pelos professores é total. Um dia estoira.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Nocturnos 96

Robert Frank, London, 1952

O litoral da noite abre-se, na luz toldada pela névoa, para receber o rumor pela vida exalado. Transeuntes sem destino entram pelas portas abertas de par em par. Esperam, escondidos na sombra imponderável, encontrar um abrigo onde possam escandir, entre o silêncio e o sonho, a métrica perturbada do sono. 

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Cardílio (24 sonetos) 1

Villa Cardílio
A poeira os verdes campos cobre
E o rio entre salgueiros se despede
Das noites onde frágeis as mulheres
Ao cansaço do amor graves se entregam.

Os risos entre tílias, luz sonora
Que ilumina a furtiva solidão,
São barcos solitários que no rio,
Entre esquecidas mágoas, se despedem.

Tudo no horizonte já fenece.
No rio levedado abrem-se pássaros
De azul incendiados. Tempo breve,

Que em teu severo andar ruínas ergues,
Das pedras fazes cinzas, e dos dias
Nem a gasta lembrança tão fria resta.


2007

domingo, 15 de janeiro de 2023

Beatitudes (57) O que está consumado

Kurt Hielscher, Salt Warehouses, Lübeck, 1931

Nunca a perfeição do passado deixa de espantar o viajante no tempo. A duração tem estranhos poderes, pois, sem que se saiba a razão, vai limando as imperfeições que o presente nunca esconde, para que aquilo que ultrapassou os dias da utilidade vibre agora sob uma outra luz. Esta nova luminosidade, com uma cintilação secreta e comedida, faz poisar o grande pássaro da felicidade naqueles lugares onde um dia reinou o tumulto, que confundia num abraço indistinguível o prazer e a dor. Eliminada esta pelo bisturi da temporalidade, reina a serena beatitude com que se olha aquilo que está consumado.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Cadernos do esquecimento 50 A redenção do esquecimento

Frederick Sommer, Taylor, Arizona, 1945

A persistência da erosão é o outro lado da vulnerabilidade humana, que se dissemina do corpo para tudo o que os homens realizam. Durante parte substancial da vida da espécie, pretendeu-se limitar a acção do tempo e assegurar que as obras humanas transportariam para eternidade o selo dos seus autores. Uma luta vã contra um inimigo impiedoso, que, continuamente, dispara sobre aquilo que os homens semeiam como testemunho. Cansados da luta, perdidas as ilusões, os seres humanos passaram a cultivar a rápida obsolescência e a curta memória. Agora, a eternidade deixou de ser a linha do horizonte que o viajante quer alcançar. Mergulhados no fluxo do devir, apenas se espera a redenção do esquecimento.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Meditações melancólicas (91) O parco poder do tempo

Autor não identificado, Moment of execution, February 1, 1968

Existem estranhas convicções que, muitas vezes, quem as tem nem dá por elas. Numa resposta a um tweet sobre a execução de dois iranianos, condenados num julgamento, no qual os condenados já o eram antes de serem julgados, alguém dizia: Como é possível acontecerem actos bárbaros em pleno século XXI. Nesta afirmação, aliás trivial, existe a convicção de que com o passar do tempo, os seres humanos vão deixando de ser aquilo que eram no passado e se vão tornando mais cordatos, mais civilizados. Por certo, haverá uma crença ingénua no progresso moral da humanidade. Esta crença pressupõe uma outra. A moralidade terá poder, ao exercer ao longo do tempo uma pedagogia civilizatória, para conter e modificar aquilo que existe de tenebroso nos seres humanos.

Apesar de existirem autores, como Steven Pinker, que argumentam a favor de um progressivo domínio dos anjos bons da nossa natureza, um olhar para o século XX só pode deixar desolado quem quer acreditar no progresso moral dos homens. Talvez o tempo – a passagem dos séculos – tenha pouco poder sobre a nossa natureza básica, onde a disposição para a bondade e o altruísmo convivem com a inclinação para a violência e a maldade pura. O século XXI, onde ainda não existiram grandes manifestações de maldade colectiva como aquelas que surgiram no anterior, não parece, todavia, menos propenso para a barbárie. Assiste-se até ao questionamento de certas práticas de convivência social que se tinham por adquiridas. Por exemplo, tem perdido prestígio a ideia da resolução pacífica e negociada de conflitos sociais e de diferenças de opinião moral e religiosa.

Em muitos países democráticos, as forças que defendem soluções violentas têm já grande peso ou estão em crescimento, como se o acto de se sentar com os outros e de negociar com eles exasperasse os instintos de parte da população. Na verdade, estão em confronto duas compreensões do homem. Uma nascida com o Iluminismo e assente na crença de que o homem se vai moralizando com o passar do tempo. Outra fundada no mito da Queda e da Expulsão do Paraíso, na qual o mundo para onde a espécie humana foi enviada é um vale de lágrimas, isto é, um lugar de onde a barbárie nunca será erradicada. É plausível pensar, não sem melancolia, que o mito tem uma compreensão mais funda da situação dos homens do que a racionalidade iluminista com a sua fé no futuro. O tempo pouco poderá fazer para modificar aquilo que a espécie é, a não ser que esta deixe de ser a espécie humana e passe a ser outra coisa. 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Ensaio sobre a luz (96)

Bill Perlmutter, Along the Banks of the Main, Germany, 1955
Um lento ensaio extrai do frio da neve uma luz branca, coberta pela névoa matinal, que se abre sobre a terra como se fosse uma campânula onde os corações regelados encontram abrigo para poderem pulsar. Tudo então se torna mais preciso e onde a vida parecia um esboço é, agora, um animal que encontra em si a ferocidade que lhe permite arrancar-se ao vendaval da noite.

sábado, 7 de janeiro de 2023

Bento XVI, Lula da Silva e guerra na Ucrânia


Bento XVI. No último dia do ano que acabou morreu o Papa Bento XVI, Joseph Ratzinger. Bento XVI não suscitou nem grandes reconhecimentos populares nem grandes ódios. A serenidade e a timidez não lhe conferiam o dom da comunicação com as massas. Contudo, tinha uma enorme solidez intelectual e uma visão muito clara do papel da Igreja Católica no mundo. Percebeu que as interpretações ditas progressistas do Vaticano II estavam a conduzir a Igreja à irrelevância e estava consciente de que a Europa se podia perder para o catolicismo. Contudo, designá-lo como conservador – ou ultraconservador – é falhar completamente o alvo. Era apenas e completamente católico, fiel à tradição apostólica, às sagradas escrituras e ao magistério da Igreja. Do ponto de vista político, tinha uma funda compreensão da situação da Europa e os livros que lhe dedicou continuam a merecer leitura.

Lula da Silva. No primeiro dia do novo ano, Lula da Silva tomou posse como Presidente do Brasil. O acto, normal em democracias maduras, representou, nas circunstâncias em que o Brasil tem vivido, uma vitória da democracia. Uma vitória difícil, num país em que parte da população pede a instauração de uma ditadura militar e com ela o fim das liberdades políticas. Veremos se a experiência política do novo Presidente é suficiente para ultrapassar a profunda divisão em que o país se encontra, onde a direita democrática foi pulverizada pelo bolsonarismo, que tem um vincado ódio ao centro esquerda, que pinta como se fosse constituído por perigosos radicais. Veremos ainda se Lula da Silva tem capacidade e instrumentos políticos para tirar da pobreza os 60% de brasileiros, ou parte deles, que nela se encontram.

Guerra na Ucrânia. O ano que acabou trouxe a guerra para dentro da Europa. Foi o ano em que os europeus tiveram uma terrível lição sobre o que é a política internacional. As guerras eram há muito, com exclusão do problema dos Balcãs, uma coisa longínqua. Agora, é à porta de casa, uma guerra incompreensível para o cidadão comum. Os europeus aprenderam – espera-se – que a sua segurança não está garantida e que é preciso fazer alguma coisa por ela. Aprenderam ainda outra coisa – espera-se, mais uma vez –, aprenderam que diversas potências mundiais utilizam a economia e os negócios como forma de fazer ruir a casa europeia, criando laços de dependência que, na altura certa, são usados como trunfos políticos, senão militares, para conduzir, muitas vezes com cúmplices europeus, os países da velha Europa à submissão.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

A persistência da memória (20)

W. Eugene Smith, Extremadura. Town of Deleitosa, Spain, 1951
Como um eco vindo do fundo tempo, a vida mantém-se na crueza com que atravessou os séculos. Reduzido à frugalidade daquilo que é meramente necessária, cada gesto é o prolongamento de um gesto mais antigo, e este o de um outro ainda mais arcaico. Em cada corpo existe um espaço arqueológico, onde o olhar atento sabe distinguir as camadas em que a vida se foi depositando, para construir um terreno fértil para o exercício da memória, dessa memória que habita tudo aquilo que foi tocado pela cornucópia da escassez e pela dádiva da falta.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Beatitudes (56) Uma branca beleza

Lee Miller, The veiled Eiffel Tower from the Palais de Chaillot. Winter 1944-45
A brancura poisa sobre a terra, inundando ruas e avenidas. A neve é sentida como uma graça. Os olhos extasiados fazem o corpo esquecer o frio, e a imaginação deixa-se contaminar por uma estranha beatitude, como se um mundo assim, tão branco e tão frio, fosse o lugar mais genuíno onde os seres humanos podem encontrar aquilo que há de mais fundamental na sua existência. A invernia surge à consciência como o tempo em que se manifestam as coisas autênticas, aquelas que não admitem ao homem tergiversar perante a realidade, para que a vida prossiga e triunfe, apesar da ameaça que, envolta em branca beleza, sobre ela se inclina.