sexta-feira, 31 de maio de 2019

A crise da direita

Salvador Dali, En busca de la cuarta dimensión, 1979

Deixo de lado a interpretação que o Presidente da República faz do seu papel na hora actual. Centro-me na crise da direita, por ele referida. Na verdade, é uma falsa crise. A verdadeira crise, para um partido de poder, é estar na oposição. Assim que lhes chega ao nariz um leve odor de poder, a crise desvanece-se, as tropas marcham disciplinadas e cantantes e os chefes exultam de peito feito. Na oposição, os socialistas estavam de rastos. Tiveram um resultado medíocre nas eleições de 2015. O poder deu-lhes o tónico que precisavam. É esse que falta ao PSD e CDS.

quinta-feira, 30 de maio de 2019

Ensaio sobre a luz (61)

Piet Mondrian, Along the Amstel, 1903

No princípio era luz. Depois veio o silêncio e dele nasceu a água. Quando esta tomou a forma de rio, o mundo descobriu um espelho onde se reflectir. Vieram então ás árvores, os animais e, por fim, o homem, aquele que mergulha na corrente para segurar a imagem que as águas levam para a foz.

domingo, 26 de maio de 2019

Bruno Lage, privatizações, comendas e europeias


BRUNO LAGE. O actual treinador do Benfica é, justamente, louvado pelo que fez no campo desportivo. Se o Benfica é campeão deve-o a Bruno Lage. Quero, porém, louvá-lo por outra coisa. Não apenas pela humildade e gratidão que ostentou, mas pelas palavras que disse sobre o país. O futebol é importante, mas há coisas mais importantes que o futebol. É preciso que o entusiasmo que as pessoas têm com o futebol o tenham com essas coisas. O apelo à civilidade nos festejos e no tratamento dos adversários talvez tenham caído em saco roto, mas mostram que Bruno Lage sabe que um país decente e uma vida civilizada são mais decisivos que os acasos do pontapé na bola. Seria bom que fosse escutado.

PRIVATIZAÇÕES. António Barreto descobriu que “as privatizações e as reprivatizações que moldaram a política e a economia das duas últimas décadas” contribuíram para o enfraquecimento do Estado democrático. No entanto, continua a acreditar no Pai Natal, a crer que foram feitas “pelas boas razões, por espíritos liberais, concebidas para libertar a sociedade e a economia”. Meu Deus, como é que tantos espíritos liberais e bondosos foram tão cegos? Como é que ninguém, tão iluminado, viu que as ricas empresas iriam ser devoradas e, em grande parte, aniquiladas? Ninguém conhecia a história devorista do capitalismo português? Ninguém conhecia os grupos estrangeiros a que se venderam os bens nacionais? Sim, o Pai Natal existe.

COMENDAS. Anda tudo num virote por causa do senhor Joe Berardo e do seu comportamento na Assembleia da República. Agora querem descondecorá-lo. Ora o problema não está em Berardo, mas nos critérios que conduziram há muito a julgar que os homens de dinheiro são o modelo que se deve oferecer à emulação da sociedade. Muitos dos condecorados fazem parte daquilo a que se chama crony capitalismo, um capitalismo clientelar cujo sucesso depende da relação com o poder político. Durante todo o século XX e no XXI, o capitalismo português não foi outra coisa senão um capitalismo clientelar, que o Estado apadrinhou e a cujos corifeus distribuiu, a torto e a direito, comendas.

EUROPEIAS. Por estranho que possa parecer aos portugueses, as eleições europeias são muito importantes. Parte significativa da nossa vida é regulada no Parlamento europeu. Não são indiferentes os deputados que elegemos. Por outro lado, a abstenção será sempre interpretada como desinteresse dos eleitores pela União Europeia. Será que nós portugueses nos podemos dar ao luxo de desprezarmos a União? Já imaginou o que seria Portugal sem a União Europeia? Domingo é dia de eleições, o melhor é ir votar.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

sábado, 25 de maio de 2019

Da persistência dos lugares

Charles Marville, Rue Vieille-Notre-Dame (de la rue du Pont-aux-biches), 1864-66

A fotografia de Charles Marville tem mais de 150 anos e, no entanto, aquela paisagem urbana ainda me foi familiar. Não em Paris, mas em muitas cidades e vilas portuguesas. O mesmo tipo de ruas, o mesmo género de casas, a mesma sensação de imobilidade do tempo. Sabemos, pela razão, que o calendário passa uniformemente pelos diversos lugares habitados pelo homem. A experiência, porém, desmente esse saber. Há lugares em que o passado persiste, escorado numa obstinação contra a natureza devoradora do tempo. Nesses lugares, o grande devorador é obrigado à ficção da imobilidade. Os dias e os meses passam, mas as folhas do calendário são rasgadas com uma lentidão tal que ninguém percebe o anacronismo em que vive. O espaço humano é uma revolta contra o tempo.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Villa Cardillio 24. Visão

Vila Cardílio, Torres Novas

24. Visão

Sob o áspero silêncio da noite
a ave do gólgota os dias debulha.
Em suas asas de sombra os leva
o corvo turvado pelo incenso,
ave nos desfiladeiros da morte.

Um uivo ecoa no saibro da vila.
Homens caídos de borco rastejam,
serpentes na aliteração do medo,
restos de vida que metáfora alguma
aos penhascos do Inverno resgatará.

1979

domingo, 19 de maio de 2019

Eleições europeias e abstenção


Estamos a uma semana das eleições europeias. Os portugueses passam por elas como se não existissem. É possível que a abstenção no próximo domingo ainda seja maior que em 2014 (66,2%). Não é que a União Europeia seja vista negativamente pelos portugueses. Ainda não surgiu por cá nenhum movimento eurocéptico. Os eurocépticos portugueses residem, fundamentalmente, no PCP e, como se tem visto nestes últimos quatro anos, convivem pacífica e ordeiramente, senão com secreta e inconfessada aprovação, com a União Europeia e com o próprio Euro. No entanto, a política europeia – com o impacto que tem sobre o país – deixa os portugueses indiferentes. Esqueceram-se uns, e não sabem outros, o que era Portugal antes de ter entrado para a CEE, hoje União Europeia. Se tivessem um vislumbre do que era o país na altura – ou o que virá a ser se a União acabar – iriam em massa votar.

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Beatitudes 8. Da memória

Pere Ysern Alié, Cuevas del Drac. Mallorca, 1925

O silêncio da gruta atiça os cães da memória e eles soltam-se, mergulham na paisagem, fazem ecoar na pedra das paredes os latidos de um medo ancestral. Depois, aos abrirem-se os olhos, o coração apazigua-se, uma sílaba solta-se dos lábios e o terror gravado no fundo do coração dissolve-se na luz crepuscular do presente.

domingo, 12 de maio de 2019

Crise, Professores, Brexit e Venezuela


1. CRISE POLÍTICA. A questão da contagem do tempo de serviço congelado dos professores foi uma bênção caída do céu para os socialistas. Deu-lhes oportunidade de se mostrarem responsáveis, e mostrou uma oposição de direita desorientada, perdida entre o eleitoralismo puro e duro e, quando confrontada com a reacção de António Costa, em recuo humilhante perante a opinião pública. Com as tomadas de posição conhecidas do CDS, PSD, PCP e BE parece que a crise está resolvida. O governo consegue infligir uma derrota total às pretensões dos professores. Isso dará, caso o governo não cometa erros graves, muitos votos ao Partido Socialista.

2. A POSIÇÃO DOS PROFESSORES. Entre a imagem que os professores têm de si e da sua profissão e aquela que os outros têm vai uma grande distância. As elites (políticas, económicas, universitárias e sociais) desprezam os professores do ensino não superior. A plebe democrática varia entre o ódio ostensivo e o ressentimento surdo. Basta visitar as redes sociais. A longa conflitualidade em que os professores estão envolvidos não ajuda a sua imagem. No entanto, o problema está noutro lado. Para as elites, a grande maioria dos alunos que frequentam o ensino público é descartável e a sua educação demasiado cara. Precisam que eles estejam na escola entretidos na socialização, mas para isso não é necessário pagar o que se paga a técnicos especializados (professores) no saber disciplinar. Quem não acreditar vá estudar as reformas educativas do actual governo.

3. BREXIT. A saída do Reino Unido da União Europeia está uma salganhada tal que já se fala, com alguma viabilidade, de um segundo referendo. Por norma, vitupera-se a irresponsabilidade de David Cameron, a impotência de Teresa May, a duplicidade de Jeremy Corbyn ou a malvadez dos brexiteers. Talvez, também aqui, o problema esteja noutro lado, esteja no instituto do referendo. Como é que uma matéria tão complexa se pode resolver com uma pergunta com apenas duas respostas? Uma coisa pode-se aprender com o que se passa no Reino Unido: há que moderar o entusiasmo com os referendos.

4. O AZAR VENEZUELANO. O azar da Venezuela é ter petróleo. Isso incendeia a imaginação dos reformadores sociais e abre o apetite às potências deste mundo. O chavismo não passou de um delírio ateado pelo petróleo. Hoje está na mão dos interesses russos e, possivelmente, chineses. A oposição, por seu lado, não é melhor. Dividida e dobrada aos interesses norte-americanos, cujo embargo está a deixar o país na miséria, tem muito menos apoio popular do que as televisões querem fazer crer. Ter petróleo, um azar dos diabos.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

sábado, 11 de maio de 2019

Villa Cardillio 23. A medida

Wall painting from Room H of the Villa of P. Fannius Synistor at Boscoreale, ca 50-40 B.C.

23. A medida

Falavas do vento à sombra roubado,
essas canções de água rente à luz,
perdidos esses murmúrios de pedra
nas areias movediças do que passou.
No átrio, transportavas a vara verde
com que mediu, o velho agrimensor,
a sombra do sol, o júbilo dos juncos,
o salgado do ardor na toca da noite.

1979

sexta-feira, 10 de maio de 2019

A vitória de António Costa

Carlos de Haes, Paisaje con ruinas, 1871

Deu-se hoje o desenlace do drama da recuperação do tempo de serviços dos professores. António Costa e o governo saem completamente vitoriosos. Destroçaram a oposição de direita, obrigaram os seus aliados parlamentares a ajoelhar e recolheram uma enorme propaganda nacional e internacional. Pelo chão deixaram, para gáudio da plebe que agora vitoria os vencedores, um corpo docente moribundo, ajoujado a uma derrota humilhante, massacrado pela opinião publicada e afrontado pela opinião pública.

António Costa não agiu por ódio aos professores, como muitos destes pensam, e não agiu apenas por questões orçamentais e cálculo político, embora também o tivesse feito. Agiu de acordo com a convicção que existe nos partidos do arco da governação sobre o papel da educação pública nas sociedades actuais. Os alunos que existem na escola pública contam pouco e não se justifica aquilo que custam em ordenados dos professores. O ataque não foi contra os professores, como estes pensam. Foi contra os alunos que precisam do ensino público. Se os professores não acreditam, então estudem os célebres decretos-lei 54 e 55, ambos de 2018. A ideia de uma educação pública de grande qualidade não passa de uma velha ruína.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Beatitudes 7. A obscuridade

Brett Weston, Bamboo Forest, Japan, 1970

A obscuridade cresce na floresta, expande-se, em passos lentos, trazendo no ventre vazio o vento da noite, quando os pássaros cessam o canto e os homens, de coração vacilante, entregam o corpo à inocência do sono.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Ensaio sobre a luz (60)

Benvenuto Benvenuti, La luce sorge dalla Verna, 1943

A luz irrompe por detrás da montanha. Eleva-se silenciosa e ronronante, cintila ao anunciar-se para que os olhos se resguardem e os corações moderem a exaltação. O dia desliza no seu carro triunfal, enquanto as trevas se resguardam nas sombrias cavernas da terra.

terça-feira, 7 de maio de 2019

Villa Cardillio 22. Uma sílaba

Women, Pompeii

22. Uma sílaba

No pórtico, a poeira
levita luminosa.
Canta devagar
a luz do teu nome.

Uma sílaba abre-se,
cobre o coração,
desenha na memória
a aurora do amor.

Pego num copo
e bebo o vinho
da ruína esquecido
no casco da solidão.

1979

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Beatitudes 6. Moinhos de água

Léonard Misonne, By the Watermill, 1900s

Imaginar, primeiro, o sussurrar das águas no leito do rio. Depois, a sua passagem turbulenta, o mover dos rodízios e o esmagar do cereal pelo peso da pedra. Um grito abre o portal do passado e, por instantes, avista-se a vida tranquila e as águas livres, em correria desenfreada, à procura da foz. Não há perfeição maior que a do passado que o crepúsculo, indiferente aos nossos desejos, nos deixa idealizar.

domingo, 5 de maio de 2019

Heinrich Böll, E não disse nem mais uma palavra


Escrito em 1953, E não disse nem mais uma palavra é apontado como um romance central na obra do Nobel alemão Heinrich Böll. Em Portugal foi presumivelmente publicado em 1960 pela Editorial Aster, com tradução de Maria Teresa e João Carlos Beckert d'Assumpção. A narrativa concentra-se em dois dias, num fim-de-semana, numa cidade alemã, nunca identificada, onde decorre, com exuberância e alvoroço, um estranho congresso de droguistas. Aparentemente, este congresso nada tem a ver com o enredo central, o qual gira à volta do casal Fred e Käte Bogner. No entanto, o omnipresente imperativo publicitário “CONFIA NO TEU DROGUISTA!” estabelece, de modo irónico, o problema da confiança como horizonte onde se desenrola o drama humano daquele casal.

Os dois dias em que decorre a acção do romance situam-se no pós-guerra, numa Alemanha devastada pelos bombardeamentos e, ainda mais, por uma derrota militar, que foi também a derrota de uma ideologia total que conferia um sentido e um destino históricos aos alemães, e que estes, na sua generalidade, não deixaram de abraçar seja por acção, comprometendo-se com o nazismo, seja por omissão de resistência. A devastação das estruturas físicas necessárias à vida, a derrota militar humilhante e a perda do sentido para a existência só poderiam conduzir a um abalo desse sentimento que funciona como um cimento que une as comunidades, a confiança. Como se poderá sentir um povo derrotado que acreditou na retórica da raça superior?

Fred e Käte são um casal separado com três filhos e, provavelmente, a caminho de um quarto. Apesar da separação, continuam a encontrar-se em hotéis miseráveis. Ele entrega-lhe praticamente tudo o que ganha. Dorme onde calha e vive de expedientes e empréstimos. Tem fama de alcoólico, embora raramente se embebede. Ela vive obcecada pela limpeza da parte de casa em que vive. O que Böll mostra de forma crua é os interstícios de uma vida marcada pela pobreza e a falta de esperança. Foi a pobreza que se imiscuiu na vida daquelas pessoas, que não apenas lhes retirou expectativas como as correu por dentro, incluindo no carácter. Fred sai de casa porque se tornou violento com os filhos. Essa pobreza, porém, tem uma raiz e essa é a guerra. Ele esteve na guerra, da qual não gosta de falar. Essa guerra, apesar de terminada, continua presente na paisagem da cidade, na vida social e no coração dos homens.

Um elemento central na estruturação do romance é a omnipresença do catolicismo. Heinrich Böll era católico, embora desde muito cedo crítico para com as opções da Igreja. Essa duplicidade perante a sua religião está bem presente na obra. Por um lado, o casal é católico. Ela reza e frequenta de alguma forma Igreja. Há uma cena onde Käte, antes de se ir encontrar com o marido, se confessa e fala da raiva que habita dentro dela. O padre, que também sente em si raiva pela vida dos seus superiores, fica hesitante se lhe pode ou não dar absolvição. Fá-lo apenas de forma condicional. Esta hesitação do sacerdote é central para se compreender até onde se coloca o problema da confiança. O próprio conhecimento da fé e a interpretação das condutas se tornam vacilantes aos olhos dos próprios pastores. Não são apenas as ovelhas que perderam o norte, também os pastores deixaram de saber o caminho e perderam a capacidade de interpretar os sinais.

No entanto, ao lado desta Igreja hesitante e perdida, mas que nessa hesitação e perda torna patente a sua autenticidade, existe uma outra fria, julgadora, imperturbável. Esta é encarnada pela mulher do casal que partilha a casa com os Bogner, ocupando a maior parte das divisões. Ela, com o seu farisaísmo, retrata uma Igreja que se considera infalível e acima das vicissitudes da humanidade. Böll, ao dissecar as estruturas sociais, põe de lado a configuração política emergente e olha para o papel da religião como elemento ainda central para a construção da vida das pessoas. Todo o romance é perpassado por um conflito entre duas formas de conceber a relação dos homens com a religião, isto é, com o absoluto. Se a confiança em si e nas estruturas sociais é abalada, apenas resta ao homem a confiança no transcendente. Se também aí não há lugar para a confiança, resta o irónico imperativo “CONFIA NO TEU DROGUISTA!”.

sábado, 4 de maio de 2019

Um dramma giocoso

Imagem de Il mercato di Malmantile (1758), de Carlo Goldoni

No fundo, esta maneira latina de fazer política não passa de uma ópera bufa. O pior é que os espectadores também são latinos e, apesar de dizerem mal dos artistas, o que faz parte do espectáculo, não deixam de gostar de um dramma giocoso. Tem que se passar o tempo de alguma maneira.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

A democracia cansa


Parece haver uma sombra saudosista da ditadura. Por enquanto, esse saudosismo é limitado, embora activo nas redes sociais, onde constrói narrativas delirantes sobre a bondade daqueles tempos. O traço mais marcante da ditadura de Salazar e Caetano é a consideração que o regime fazia dos portugueses. Nas perseguições políticas, na censura, na eliminação da liberdade, mas também nas políticas sociais e económicas, em tudo isso havia um traço comum humilhante. Esse traço é o paternalismo.

As pessoas não eram consideradas como capazes de dirigirem a sua vida sem a tutela paternal da ditadura, dos seus chefes e guardas zelosos. Para além da inegável violência do regime, os portugueses eram tidos e tratados como crianças sem capacidade de discernir e tomar decisões. Dito de outro modo, a ditadura tratava as pessoas como menores, incapazes de usar a sua razão sem a direcção de um tutor, para empregar uma expressão de Kant. Este traço do regime seria aquele que deveria causar maior indignação e repulsa entre as pessoas. Quem, sendo adulto, gosta de ser visto e tratado como um menor? No entanto, o amor à menoridade é um dos trunfos principais com que o saudosismo pode contar.

Viver em democracia é ter de tomar decisões. Viver em democracia é saber-se responsável pela qualidade dos políticos que se escolhe e pelas políticas que existem. Viver em democracia é saber que as nossas escolhas podem sair derrotadas. Viver em democracia é saber lidar com a frustração e ter claro que mesmo quando as nossas ideias saem vitoriosas isso não significa esmagar ou perseguir os que pensam de maneira diferente. Viver em democracia exige que sejamos adultos, responsáveis pela nossa vida e responsáveis pela comunidade de que fazemos parte. Viver em democracia é muito mais trabalhoso de que viver sob a alçada de ditadores paternalistas.

A democracia é um exercício cansativo. Exige de nós responsabilidade e coloca-nos perante a qualidade das nossas escolhas. Não é por acaso que o saudosismo da ditadura se manifeste em gerações muito novas, pouco habituadas a viver fora da dependência dos pais. O cansaço com a democracia toma, muitas vezes, a máscara da repulsa pelas elites políticas. Isso, porém, é uma forma já de menoridade, de não assumir que se as elites políticas têm comportamentos pouco aceitáveis isso se deve ao facto de nos termos desresponsabilizado pela sua escolha e pelo controlo dos seus actos. O maior perigo para a democracia em Portugal vem do desejo de muitos em continuarem a ser menores, mesmo quando adultos.

[A minha crónica em A Barca]

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Villa Cardillio 21. A Névoa da noite

Pompeii - Terme Suburbane - Apodyterium - Scene IV

21. A névoa da noite

Na névoa fluorescente de Novembro,
deixariam os homens a língua correr
rente aos rudes  recantos do corpo,
erva esparsa na alma das mulheres?

Oiço gritos breves, breves e puros.
Sombreiam de sal as núpcias da noite,
o uivo do lobo na placenta da vida,
as crinas de coral do cavalo da morte.

1979