segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Carlos Malheiro Dias, Paixão de Maria do Céu


Os grandes nomes da literatura portuguesa formam uma espécie de cortina opaca que acaba por ocultar a realidade da vida literária nacional. Atrás dessa cortina, porém, esconde-se um vasto território colonizado por habitantes que, apesar de não merecerem a honra do cânone, possuem mérito e cuja leitura é, pelo menos, instrutiva do país em que vivemos e dos valores que guiam a sociedade portuguesa. Isto vem a propósito do romance Paixão de Maria do Céu, de Carlos Malheiro Dias, publicado em 1902. Trata-se de um romance histórico, cuja acção se situa no tempo das invasões francesas. Por melhores e mais bem informadas que sejam estas narrativas sobre o tempo e os modos de vida da época que pretendem retratar, elas acabam por falar mais do tempo, dos valores e dos temores da sociedade em que vive o autor do que da sociedade onde a narrativa é situada. No fundo, utiliza-se o passado para falar do presente e para se dirigir ao futuro.

A trama romanesca gira à volta de duas figuras modelo, a de D. António Sepúlveda, senhor do morgadio do Corgo, e a da sua filha Maria do Céu. Ele é o arquétipo do fidalgo intrépido e patriota dos tempos antigos. Ela, o modelo trágico da inocência corrompida pela paixão amorosa.

O morgado provinciano é apresentado em contraponto com a pusilanimidade da corte e de parte da nobreza que se submete aos invasores. As virtudes heróicas de Sepúlveda, contudo, são mostradas como intemporais, como se ele encarnasse valores universais de uma casta que o tempo jamais dissolveria. É preciso não esquecer a situação política nacional no início do século XX. Depois do ultimato britânico, a monarquia encontra-se em dissolução e a nobreza nacional, por certo, está bem longe dos modelos viris encarnados pela personagem de Malheiro Dias. Perante a calamidade das invasões napoleónicas, só a decisão de homens como António Sepúlveda permitiu reverter a situação. E este é o modelo de homem que poderá fazer frente à dissolução dos velhos valores que o liberalismo monárquico já representava. O aniquilamento da monarquia (acontecerá em 1910) e a queda da aristocracia na irrelevância só poderão ser evitados por homens cujas virtudes emulem as do senhor do Corgo.

O destino de Maria do Céu, com as suas peripécias amorosas, parece ser mais uma história banal de sedução e embuste, onde a inocência, impotente pelo limitado conhecimento que possui da vida, se perde na trama de um conquistador – um jovem coronel francês – que junta às vitórias militares as conquistas amorosas. É um facto que a rendição de Maria do Céu ao militar invasor não deixa de ser uma metáfora da sedução que os ideias da Revolução Francesa exerciam sobre parte do país. No entanto, ela é ainda uma outra coisa. Ela é um aviso e um reforço do modelo de mulher que deve aliar a virtude moral e a perspicácia do espírito, para se precaver das tentações do coração. Caso contrário, à paixão amorosa sucederá a paixão entendida como sofrimento e dor. Não deixa de ser interessante que seja este o modelo que, através da visão trágica do destino de Maria do Céu e do uso ambíguo da temática da paixão, seja proposto como ideal feminino para o século XX, o século onde as mulheres adquiriram, entre outros direitos, o direito às suas paixões.  

Do ponto de vista literário, tanto o senhor do Corgo como a sua filha valem mais pela natureza arquetípica – ele positiva e ela negativa – do que pela complexidade psicológica. Malheiro Dias é excelente a criar ambientes, descrever situações, pintar com palavras os quadros onde se desenrola a acção romanesca. Somos conduzidos de um solar de província e da vida provinciana dos inícios do século XIX até ao turbilhão da capital do reino, na mesma época, com a sua vida multifacetada, ocupada pelo exército invasor. A riqueza das descrições está ancorada num léxico riquíssimo – certamente, léxico em uso no período onde a acção romanesca se situa –, algum dele incompreensível nos dias de hoje, mesmo para leitores cultos. As personagens, porém, são previsíveis e fiáveis. Por imprevisíveis que sejam os acontecimentos, o destino de cada uma das principais figuras é antecipável, pois elas são, na verdade, modelos e não pessoas concretas, com as suas hesitações, incertezas, aprendizagens, metamorfoses. Estamos perante um romance de intervenção. Não que ele transporte uma visão política estrita. Traz, porém, uma cosmovisão e, enquanto obra literária, é uma forma de se bater por essa visão do mundo, que – o autor não o poderia saber – haveria de morrer definitivamente na grande guerra de 1914-1918.

domingo, 30 de dezembro de 2018

Sonhos numa noite de Verão 9

Claudio Bravo, Auto-retrato, 1971

Uma avenida que parecia não ter fim. A princípio, corria nela sem que soubesse a razão. A partir de determinada altura, onde havia um edifício imponente, com grandes arcadas e persianas verdes, senti que ia nu. À frente de mim corria a minha roupa, uma estranha roupa para os meus hábitos, corria como se fugisse. Por vezes, ela olhava para trás. Se eu me aproximava, ela ia buscar um novo fôlego e afastava-se. Sentia o medo da roupa e o meu desespero. Eu corria cada vez mais depressa para me vestir. Ela fugia-me cada vez mais determinada. Ao acordar senti um profundo cansaço e doía-me a cabeça. Tinha dormido vestido com uma roupa que desconhecia.

sábado, 29 de dezembro de 2018

No Limiar da Porta 21. Sôfrego, sento-me

Jean François Millet, Nu reclinado

21. Sôfrego, sento-me

Sôfrego, sento-me
na véspera da noite.
Traço no vidro da voz
figuras de ócio.
Trémulo, deixo cair
a porosa porcelana
do teu amor.

1978

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Ensaio sobre a luz (44)

Ansel Adams, Mount Robson from Mount Resplendent, 1920

A luz resvala pelos céus, cai sobre a montanha, funde-se no negro da pedra. Então, arrefece, e gélida ganha textura e branca como a neve espera a infâmia da sombra, o vexame da escuridão.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Natal e sociedade


Entre a religião e a sociedade há uma dinâmica que, nos dias de hoje marcados pela indiferença religiosa, parece já não ser compreendida pela maioria das pessoas. Esta incompreensão deve-se à religião ter sido relegada para o foro da subjectividade. As pessoas podem dizer-se católicas, frequentarem a Missa, mas na vida social comportarem-se objectivamente como alguém despido de qualquer crença religiosa. Isto afecta, de forma muito evidente, o sentido social da Festa da Natividade do Senhor, a qual se degradou numa espécie de orgia de consumo.

O Natal tem um significado religioso, de natureza espiritual, e tem um sentido social. Não foi apenas a sua dimensão espiritual que foi rasurada, mas também o significado profundo da sua natureza mais exterior e comunitária. No nascimento do Menino, as nossas sociedades sacralizavam e divinizavam a emergência de uma nova vida. O Menino Jesus é o arquétipo de todas as crianças que vêm à vida. Isto significava que a banalidade do nascimento humano tornava-se num acontecimento excepcional. Por mais crianças que nascessem, por mais vulgar que fosse a mecânica que conduz da fecundação ao nascimento, todo o recém-nascido era um excepção, um acontecimento extraordinário e singular. Uma manifestação divina.

No Natal, as sociedades celebravam o poder da vida, a sua regeneração e a sua eterna novidade. Celebravam também outra coisa, celebravam a sua própria continuidade. Esta simbolização, pelo Natal, da continuidade da vida e da comunidade parece, nos dias de hoje, completamente perdida, ocultada pela festividade profana que, dinamizada pela indústria e pelo comércio, se ergueu nas cidades e nos lares. Em vez da vida, desde há muito que o Natal celebra o poder de compra. Deixou de ser uma questão vital para se tornar num dado nas estatísticas económicas dos países e uma dor de cabeça para aqueles que, crentes ou não, terão de participar nas festividades, arrastados pela enorme máquina publicitária.

Que o Natal tenha perdido a sua dimensão espiritual, isso diz respeito aos crentes. Que ao Natal se tenha retirado o poder para simbolizar o triunfo da vida e a continuação da comunidade, deveria preocupar crentes e descrentes. Sem a simbólica do Natal, a vida e a continuidade de uma comunidade perdem a sua natureza sagrada e são arrastadas para o domínio do que é vulgar e banal. Se o Natal passou a ser uma prova do poder de comprar, a vida – essa que se renova em cada recém-nascido – tornou-se um exercício dependente de um cálculo económico, e a continuidade da comunidade ficou sujeita à aritmética dos prazeres e dos desprazeres que a nova criança poderá trazer.

[A minha crónica em A Barca]

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

O negócio dos extremos


Uma das questões que parece atormentar certos comentadores políticos é a da ausência de uma extrema-direita em Portugal. Apesar de isso não ser completamente verdade – não existe uma extrema-direita organizada politicamente, mas existe uma extrema-direita social, ainda inorgânica –, há uma outra questão que deveria merecer atenção. Haverá uma extrema-esquerda em Portugal? Muita gente – uns por ignorância e outros por oportunismo – utiliza o epíteto de extrema-esquerda quando se refere ao BE e ao PCP. No entanto, alguém acha plausível que dois partidos que, nas últimas eleições, valiam quase 20% do eleitorado, se comportassem como eles se comportaram nos últimos três anos, caso fossem de extrema-esquerda?

Bloquistas e comunistas têm podido, nesta legislatura, influenciar o poder. E têm-no feito. No entanto, em momento algum puseram em causa qualquer dos elementos políticos que constituem o núcleo central de pertença de Portugal aos países democráticos ocidentais. Nem a democracia representativa nem a economia de mercado foram, por um instante, postos em xeque pela sua acção. Por outro lado, apesar das suas discordâncias, também em momento algum foram questionados, por esses partidos, os nossos compromissos externos. Continuamos a pertencer à NATO. Não houve qualquer alteração relativa à União Europeia. Até o malfadado Euro e as suas regras draconianas de controlo do défice e de contenção da despesa pública foram aceites, sem que comunistas e bloquistas se sentissem particularmente incomodados.

O BE e o PCP não tiveram, neste processo e em momento algum, uma actuação de extrema-esquerda. Foram, na realidade, reformistas e pragmáticos. Não exigiram o impossível nem propuseram qualquer delírio utópico, daqueles que a extrema-esquerda é fértil em produzir. Se foram alguma coisa de esquerda, não foram mais do que sociais-democratas. Centraram-se naquilo que poderia beneficiar o seu eleitorado e deixaram de lado o conjunto de crenças ideológicas que os constituíram. Contudo, esta dose de responsabilidade e reformismo pode ter um preço. Vivemos numa época em que a irresponsabilidade, as soluções fáceis e mirabolantes, os devaneios da imaginação e o fervilhar do ressentimento andam à solta. A esquerda, mesmo que o quisesse, já não conseguirá colonizar esse território, que um dia foi o seu. E é aí que está a terra pantanosa que a extrema-direita poderá vir a ocupar. É ela que neste momento transporta o facho da exigência do impossível. É ela que abomina a prudência e execra a responsabilidade.

[A minha crónica no Jornal Torrejano.]

domingo, 23 de dezembro de 2018

Isabel da Nóbrega, Viver com os Outros



O romance Viver com os Outros, de Isabel da Nóbrega, recebeu, no ano da sua publicação, 1964, o Prémio Camilo Castelo Branco e é, por certo, a obra mais conhecida da escritora nascida em 1925. O tempo e o espaço da narrativa concentram-se num apartamento da classe média-alta lisboeta, num serão, que prolongou um jantar de amigos. Um retrato de uma burguesia citadina que se ia libertando da cosmovisão tradicionalista, que dava forma à sociedade portuguesa da altura, e onde se juntavam admiradores do Estado Novo com aqueles que, de alguma forma, se distanciavam, quer politicamente, quer pelo gosto ou interesses culturais. É significativo o facto da autora apresentar Fernando Lopes Graça – um dos mais importantes compositores portugueses do século XX e militante comunista – como pertencente à esfera de relações do casal anfitrião, Ana e Henrique.

O romance usa, em toda a sua extensão e de forma intercalada, apenas duas técnicas. O diálogo e a exposição da corrente de consciência das várias personagens que se encontram naquele apartamento. O narrador ouviu as conversas e leu os pensamentos, e partilha-os com o leitor, sem se imiscuir com qualquer tipo de consideração sobre as personagens e as suas ideias. O uso destas técnicas não pretende explorar uma possível dissonância entre o que é dito para os outros escutarem e o que é pensado no foro da própria consciência. Elas tornam antes patente uma espécie de paralelismo entre o dito e o pensado, paralelismo esse que, aqui e ali, se vai quebrando, fazendo com o que é dito seja prosseguido no diálogo interior ou que certas intervenções sejam o resultado daquilo que, no momento, perpassa na consciência de quem fala. O efeito pretendido é o de usar uma reunião social entre amigos, onde a conversação está sempre policiada pela etiqueta e as boas maneiras, como uma situação de revelação da verdade dos presentes.

A corrente de consciência, a de cada um dos protagonistas, torna-se o lugar onde parte da verdade se revela. Raramente essa verdade conflitua com a verdade do discurso, com as palavras trocadas no diálogo social. Não se trata de utilizar a revelação feita pela descrição dos pensamentos para mostrar uma duplicidade, um falseamento ou uma distância acentuada entre a máscara social e um eu interior e autêntico. Trata-se antes de criar um efeito de complementaridade entre o eu íntimo e a persona social. Trata-se também de mostrar a essência da arte de conviver, marcada pelo jogo da revelação, através da fala, e da ocultação daquilo que só pode habitar a intimidade do pensamento.

Tudo isto nos coloca perante o título da obra. Viver com os outros é um jogo marcado pelo equilíbrio entre o que se diz e o que se pensa, entre o que pode e o que não  pode ser partilhado e tornado público. A Tia Leopoldina, por exemplo, pôde rememorar uma aventura amorosa de uma noite ocorrida há muitas anos atrás, no início da sua vida de casada, enquanto o marido, Vladimiro, se encontrava ausente. Ou pôde deixar correr na sua consciência o que pensava  de duas das suas antigas amigas, mães de dois dos homens ali presentes. Não pôde, porém, tornar público cada um destes pensamentos. Seria de uma inconveniência imperdoável. E como a Tia Leopoldina, cada um dos presentes é percorrido por pensamentos que a arte de viver com outros  impede que se transformem em palavras. Os desejos, as apreciações, as pequenas aversões, tudo isso se mantém secreto, embora como um elemento que, juntamente com o que é dito, revela a verdade de cada um.

Este vulgar jantar de amigos – estão presentes dez convivas – é uma pequena encenação doméstica de um salão burguês do tempo das Luzes. Ana, a anfitriã, comporta-se como uma animadora de um desses salões, onde, em França, germinou a morte do Ancien Régime, morte em nome de uma razão cuja carácter central é a sua natureza pública e a oposição ao segredo, ao não manifestado. O que o pequeno salão da Lisboa do início dos anos sessenta do século XX nos mostra, através do jogo narrativo que alterna a palavra pública  e o pensamento secreto e privado, é que a arte de viver com os outros só é possível numa situação de compromisso entre as luzes e as sombras, entre o público e o privado, entre o manifestado e o secreto. A verdade não está nem no segredo, como pretendia a tradição pré-iluminista, nem no que vem à luz, como exigiam as Luzes. A verdade de cada personagem manifesta-se nas palavras e nos pensamentos, tanto seus como dos outros. Uma verdade que, através da fala, se manifestasse plenamente à luz do dia, teria uma natureza luciferina. As boas maneiras, a arte do convívio social, são um exercício de precaução que, não fazendo renascer o paraíso, evitam que a vida se torne num inferno.

sábado, 22 de dezembro de 2018

No Limiar da Porta 20. Um arco-íris poisa-te

Erwin Blumenfeld, Variant of Vogue U.S. cover March 15, 1945

20. Um arco-íris poisa-te

Um arco-íris poisa-te
nos ombros,
dedilha-te o dia,
enovela-te na noite.

Toco-te. O vento sopra
no dédalo do desejo.
Na luz do Inverno,
o sol da cegueira.

1978

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Alguma preocupação

Wassily Kandinsky, Caprichoso, 1930

Apesar do humilhante flop dos chamados coletes amarelos nacionais, as forças políticas e os defensores das instituições da democracia representativa não devem subestimar o espírito que está por detrás do acontecimento. Por boçais e indigentes que possam ser certas intervenções, há um conjunto de sinais larvares que deveriam inquietar toda a gente. O mais preocupante é o ódio ao parlamento. Uma sociedade democrática não existe sem um parlamento, onde as diversas posições políticas e sociais encontram um lugar para se expressar e dirimir pacificamente interesses e perspectivas em conflito. O parlamento está no lugar da guerra civil ou da ditadura, que não é outra coisa senão uma guerra civil em que uma parte tem exército e a outra está desarmada. O pior que os partidos políticos democráticos – da direita à esquerda – podem fazer é achar que aquilo que se passou hoje, devido ao gritante fracasso, é irrelevante e tudo pode continuar na mesma. Não é por acaso que o ódio ao parlamento ressumou muitas vezes nas bocas dos candidatos a insurgentes. Em Portugal nunca foi grande a consideração popular pela instituição parlamentar. E isto nunca deve ser esquecido. O espírito do tempo é caprichoso.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Descrições fenomenológicas 35. Cães na rua

Franz Ehrlich, Azul y amarillo con un extremo blanco, 1930

No parapeito de uma janela baixa, um cão branco olha para o fundo da rua, uma pobre viela, as orelhas dobradas para trás, numa pose de expectativa, como se não tivesse a certeza de que aquilo que espera vá acontecer. É um cão de olhar inquisitivo, tocado por um brilho que, por instantes, parece desvanecer-se e logo volta intenso e esperançoso. O sol bate nas paredes e ilumina o trabalho dos anos, as rugas nas casas velhas, o esventramento dos muros, a humidade do empedrado que cobre, incerto e cansado, a terra do chão, maculada pela água que a chuva da noite ali depositou, como nos homens os acontecimentos depositam resíduos fluidos na memória. Numa das paredes, um grafiti descreve, a negro, uma qualquer dor de alguém que por ali passou. Numa das janelas, um vulto perscruta a rua, encosta a testa ao vidro e deixa que a respiração o embacie. Depois, afasta a cabeça e com o dedo desenha no vidro turvado um hieróglifo, e afasta-se para dentro de casa. O cão branco continua alerta, enquanto outro, escuro e pequeno, vem sorrateiro, pára e fica, sob a luz que lhe faz cintilar o pêlo, a olhar para o seu companheiro. Este nem repara. Uma sombra desenha-se ao fundo. Então o cão branco arrebita as orelhas, ladra, salta para a rua e corre em direcção a alguém que o chama, enquanto o sol se reflecte no vidro dos candeeiros públicos e o cão preto prossegue em silêncio o seu caminho.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

As notas, esse bode expiatório

Juan Botas, School, 1989

Esta entrevista no Público, à volta dos resultados de um inquérito sobre o estilo de vida dos adolescentes, é um repositório de lugares comuns, em consonância com as banalidades em que repousam as actuais políticas educativas. O momento culminante dá-se quando a entrevistada, a investigadora Margarida Gaspar de Matos, afirma: “Parece que o ensino está todo virado para a nota em vez de para o conhecimento académico e das pessoas. E isto é uma escola muito punitiva. É uma escola que existe para enfardar conhecimento e não para fazer com que as pessoas desabrochem do ponto de vista da cultura e do conhecimento do meio.”

Deixemos de lado o lirismo do desabrochar e a elegância de enfardar conhecimento. Onde é que este género de pensamento acha que os professores vão buscar as notas que dão? Não há, a não ser na imaginação destas pessoas, qualquer conflito entre nota e conhecimento académico. Quanto mais conhecimento académico os alunos adquirem melhores são as suas notas. Na verdade, o que está a ser dito - sem haver percepção disso - é que a escola é muito punitiva porque exige conhecimento académico aos alunos. Este falso dilema, que opõe classificação escolar e conhecimento académico, funciona, objectivamente, para ocultar o real problema que existe na escola e na sociedade. Curioso é que o inquérito mostra o problema, mas a ideologia não o deixa ver.

Vejamos os dados. Quase 30% dos alunos não gostam da escola. Quase 52% consideram-se maus alunos. Mais de 45% não pretende fazer estudos superiores. E, para completar a imagem, os dados referentes à relação dos alunos com os conteúdos curriculares: mais de 87% dos alunos julgam-nos excessivos; quase 85% classificam esses conteúdos como aborrecidos; 82% taxam as matérias como difíceis. O que isto mostra é a profunda desadequação dos adolescentes com as exigências do conhecimento académico. As notas são um bode expiatório de uma realidade que não se quer ver.

Há em Portugal - e, de forma impressionante, nas crianças e jovens em idade escolar - uma cultura adversa à aprendizagem e às exigências do conhecimento académico. Os governos - e este com especial requinte - e certo tipo de investigadores (ideologicamente orientados) atribuem todos os males ora à escola, ora aos professores. De preferência, a ambos. A verdade, porém, é que a cultura contra-académica dos alunos - a qual tem um forte suporte social - é o principal obstáculo ao prazer de aprender, ao desenvolvimento de competências académicas e à obtenção desse conhecimento académico, que a escola tem por missão fazer adquirir aos alunos.

Enquanto se negar esta realidade, a situação só vai piorar. A não ser que a escola se transforme num parque de diversões, os currículos sejam constituídos por irrelevâncias flexíveis, as classificações desapareçam e a prestação de provas (exames) seja abolida. Assim, a coisa não piora porque deixa de existir. Enquanto se fizer das notas um bode expiatório, o país não enfrentará um problema, o da cultura adversa à escolaridade, que existe desde há muito, mas que se tornou patente quando começou a ser exigido uma grau elevado de formação académica a toda a população. Podemos levar as notas ao altar e sacrificá-las aos deuses, mas isso não vai tornar os alunos mais conhecedores e mais capazes. Pelo contrário.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Joaquim Paço d'Arcos, A corça prisioneira


Sexto e último romance da Crónica da Vida Lisboeta, A Corça Prisioneira, de Joaquim de Paço de Arcos, explora o território ambíguo que, mais do que separar, une traição e fidelidade. A temática da traição amorosa vem sendo explorada desde o primeiro romance do ciclo. Em todos eles, diversas personagens femininas são dilaceradas pelo conflito entre a fidelidade à convenção, representada pelo casamento enquanto contrato e instituição, ou a fidelidade a si mesmas, à inclinação provocada pelas afecções da alma e pelos desejos do corpo. Neste último romance, o jogo entre fidelidade e traição coloca-se, todavia, a vários níveis, indo muito para lá da questão amorosa e sexual, apesar de ambas constituírem os pólos de um eixo, em torno do qual roda, sem parar, a vida dos homens.

O tempo romanesco corresponde ao primeiro lustro da década de cinquenta do século XX. Estamos em plena Guerra Fria e vive-se a época em que o equipamento atómico dos arsenais militares se tornou decisivo na geoestratégia mundial. Portugal seria um exportador de urânio para as potências aliadas, mas a sua produção é também disputada pela União Soviética. Uma empresa fantasma, dirigida, através de testas-de-ferro, por personagens influentes na vida económica, tenta desviar parte de produção para os soviéticos. É nesta trama que um dos principais produtores nacionais, Fernando Malafaya, um grande proprietário, é apanhado, através das manobras do seu sogro, um burlão que, antes de ser descoberto, se tinha alcandorado dos lugares mais baixos de um banco ao topo da sua administração. Saído da prisão, trai a boa-fé do genro e causa-lhe, pela sua aliança com os empresários feitos com os soviéticos, uns percalços desagradáveis com a polícia política. Paço d’Arcos manifesta as frágeis fidelidades políticas dos homens de negócios, a sua duplicidade, marcada por uma adesão de superfície e uma fidelidade funda aos seus interesses privados.

É também o tema da fidelidade e da traição aquele que diz respeito a Alberto de Lemos. Este era um antigo amigo de Malafaya, quando ambos estudavam em Paris, antes da II Guerra Mundial e da ocupação alemã da capital francesa. Apesar de serem politicamente afastados – Malafaya era monárquico e Lemos, comunista – tinha nascido uma amizade que não teve continuidade em Lisboa. Alberto, um físico de prestígio, retornara a Portugal e, apesar das inclinações ideológicas de juventude, já esmorecidas, trabalhava na Comissão de Energia Nuclear. Três fidelidades disputavam a sua pessoa. A do regime, devido ao papel destacado que tinha num organismo científico tão sensível do ponto de vista político. A dos antigos camaradas do Partido Comunista, que tentavam explorar as suas antigas crenças, em proveito dos soviéticos. A da sua vocação de cientista, que era a única que, na verdade, o movia e determinava as suas opções. Se não foi fiel aos seus antigos camaradas, também não o era ao regime. E se com isso evitou a prisão, não pôde esquivar-se a uma expulsão do país.

Um encontro inesperado em Paris entre Malafaya e Lemos, no período do pós-guerra, conduz ao reatamento da velha amizade em Lisboa. E aqui entra de novo o tema da fidelidade e da traição, agora no campo do amor e da amizade. A mulher de Fernando Malafaya, Leonor, tinha sido explicanda de Alberto e entre eles teria ocorrido uma equívoca situação amorosa que ele tinha deixado cair aquando da prisão do pai de Leonor. Esta, porém, nunca o esquecera e o reencontro foi oportunidade para desenvolver uma paixão funesta. No centro do triângulo amoroso, estava Fernando Malafaya. Que tinha sido traído pelo sogro, e era agora traído pela mulher e pelo amigo de juventude. Com a descoberta da situação, porém, Malafaya mantém-se fiel ao seu compromisso com a religião. Não desfaz o casamento. 

Leonor é a corça prisioneira, que casa com Fernando quase como vingança contra a mãe deste, que, como madrinha a recebe em casa e a maltrata continuamente, após a queda e prisão do pai. A sua traição é o outro lado da fidelidade profunda ao seu desejo. Alberto é apenas fiel à sua vocação de cientista. Trai o amigo, a amante, os antigos camaradas e o próprio regime que o acolheu. Tudo isso era, na verdade, irrisório para ele. Fernando é traído três vezes, mas mantém-se fiel às suas convicções espirituais. O triângulo amoroso encarna três tipos de fidelidade. A fidelidade ao corpo e ao desejo, em Leonor, a fidelidade à vocação e à vontade, em Alberto, a fidelidade ao espírito e ao sentimento, em Fernando.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

No Limiar da Porta 19. Corpo profanado

Ed van der Elsken, Tokyo, 1984

19. Corpo profanado

Corpo profanado
pela errância.
As mãos sujas
de cal e desejo.
Olhos presos
à muralha da espera:
sombra de cetim,
peso da claridade.

1978

domingo, 16 de dezembro de 2018

Ensaio sobre a luz (43)

Antonio Fontanesi, A Sestri Levante dopo un giorno di pioggia, 1856-7

A chuva é uma luz líquida que cai para se entranhar na terra e fazê-la cintilar, se o sol se descobre e os seus dardos caem, tomados de piedade, nesses lugares que as nuvens cobriam com o vaticínio duma noite eterna.

sábado, 15 de dezembro de 2018

Knut Hamsun, Victoria


Publicado em 1898, Victoria é um pequeno romance de Knut Hamsun com cerca de 120 páginas, na tradução portuguesa, de Carlos Aboim de Brito, para a Cavalo de Ferro. Aparentemente, é mais uma história de amor contrariado. Na verdade, é uma bela e encantada meditação sobre as obscuras forças que superintendem a vida dos homens, e que a uns concedem a felicidade e a outros, a desventura. Isto sem que a conduta moral e até a posição social de  cada um se relacionem com o quinhão de fortuna ou de infortúnio que lhe cabe. Por isso a obra ultrapassa os limites do romance moderno, sem negar essa pertença, para estabelecer laços sólidos com as velhas e tradicionais narrativas míticas. Talvez não se possa falar de amor sem esse recurso ao pensamento mítico e à dimensão encantatória deste.

Não se pense, contudo, que vamos encontrar seres transcendentes a manipular os destinos dos dois apaixonados. O que vemos são as forças sociais, as decisões individuais ou a própria dinâmica biológica a ganharem uma dimensão tal que parecem ser agentes de poderes que ultrapassam a limitada capacidade dos homens. A história gira à volta dos destinos de Victoria, a filha do castelão, uma importante personagem local, e Johannes, o filho do moleiro. Desde crianças que se sentem atraídos um pelo outro. O obstáculo principal não vem tanto da diferença social entre ambos, mas do facto do pai de Victoria se encontrar arruinado. A sua única salvação é o casamento da filha com alguém que possua muito dinheiro e que possa assim contribuir para equilibrar a situação financeira do castelão. E a filha, sentindo ser esse o seu dever moral, condescende com a pretensão paterna.

Os obstáculos centrais à consumação do amor entre os apaixonados – a diferença social e a existência real de um pretendente que satisfaz os anseios do pai de Victoria – acabam por desaparecer. O pretendente morre num acidente de caça, na altura em que é anunciado o noivado. A situação social também se tinha invertido, de algum modo. Victoria é filha de um castelão arruinado e Johannes, que chegou à universidade,  tornou-se num poeta famoso, ainda jovem. Um homem importante que, como tal, chega a ser recebido no Castelo, precisamente no dia em que é anunciado o noivado de Victoria. A inversão da situação social e o desaparecimento dos obstáculos – a morte do pretendente e a posterior morte do próprio castelão – não foram suficientes para que desaparecesse aquilo que desde o início separara os dois jovens.

O que o romance revela, assim, é que as questões sociais, por importantes que sejam, não são em última análise as mais decisivas. Os obstáculos sociais, esses ainda podem ser ultrapassados, ou porque são enfrentados e derrotados ou porque, como no romance, o destino os faz desaparecer. E é neste fazer desaparecer, quase por milagre, dos obstáculos sociais de um amor e, mesmo assim, este não encontrar um caminho para a sua consumação, que está a arte de Knut Hamsun. A eliminação das barreiras não significa a supressão da tensão dramática e a transformação do romance numa espécie de conto de fadas. Outras forças mais inquietantes e mais obscuras cerceiam o desejo e limitam a finita vontade humana.

A realidade é mais ampla do que a mera dimensão social, e mais sombria. O autor sublinha-o sem nunca o afirmar e sublinha-o de várias maneiras. A mais surpreendente é através do contraste. A essa realidade humana umbrosa, contrapõe descrições luminosas da paisagem norueguesa. Não são as paisagens que são em si luminosas, são as descrições que sublinham a beleza dos campos onde se desenrola a infância  das personagens e que são o enquadramento do seu amor, se não mesmo um dos seus detonadores. Esta luz, porém, sublinha a sombra que se projecta nos destinos de Victoria e de Johannes, gerando um efeito de encantamento mítico, que o leitor sente na leitura de uma história aparentemente banal e de leitura fácil, mas que é tecida por um complexo e difícil jogo narrativo, que o autor tem o condão de esconder para que tudo pareça transparente ao leitor. Uma pequena obra prima.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Inquietação

James Ensor, The Scandalized Masks

Há uma coisa profundamente inquietante no ataque terrorista ocorrido esta semana em Estrasburgo. O inquietante não nasce do facto de o atacante ser um lobo solitário, nem de ter perpetrado o ataque numa cidade simbólica para a União Europeia, nem de o alvo ser um mercado de Natal. Tão pouco brota de o atacante ter conseguido fugir e, posteriormente, ter sido abatido, sem que se possa vir a conhecer as suas reais motivações. O inquietante nasce deste ataque já não ter provocado inquietação. Não provocar inquietação não significa apenas que os europeus sabem que têm de conviver com o terror dentro das suas fronteiras e que isso se banalizou e faz parte do hábito social, ao qual se reage burocraticamente. Não provocar inquietação significa que uma zona obscura em nós já legitimou a existência destes ataques. Ao nível consciente, ainda sabemos que o terror é ilegítimo do ponto de vista do direito. Ao nível inconsciente, a Europa, de certa maneira, já concedeu uma negra legitimidade fáctica ao terror. E isto é inquietante. Profundamente.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Guilherme Centazzi, O Estudante de Coimbra


Guilherme Centazzi é praticamente desconhecido do público português leitor de romances. No entanto, é seu o primeiro romance nacional moderno, anterior às obras românticas de Alexandre Herculano e de Almeida Garrett. Este publica o primeiro volume de O Arco de Santana, em 1845. Herculano publica Eurico, o Presbítero em 1844. Eram tidos como os primeiros romances modernos. Contudo, deve-se a Pedro Almeida Vieira aquilo a que se poderia chamar a redescoberta de Guilherme Centazzi, com a edição, pela Planeta, do mais importante romance desse autor, O Estudante de Coimbra – Relâmpago da História Portuguesa desde 1826 até 1838. A obra foi publicada em três tomos entre 1840 e 1841. Mais, ainda segundo informação de Almeida Vieira, Centazzi tinha já publicado em 1838 um romance, Carlos e Beatriz, em 1838, mas esse era uma obra bastante incipiente, que foi posteriormente reescrita e tomou outro título.

Se se comparar o romance de Centazzi com a obra de Silva Gaio, Mário (ver leitura aqui), escrita quase trinta anos depois, apesar de terem o mesmo tempo histórico como pano de fundo – o da guerra civil entre liberais e absolutistas – e, em ambos, se desenrolar casos de paixão amorosa contrariados pela acção de agentes do absolutismo, O Estudante de Coimbra parecerá, ao leitor de hoje, uma obra bem mais contemporânea do que a de Silva Gaio. Fundamentalmente, há um distanciamento crítico do narrador – e também principal protagonista do romance – relativamente a si e às suas crenças. Enquanto o ponto de vista do narrador, na terceira pessoa, de Mário é incapaz de se distanciar das crenças ideológicas liberais que sustenta, o estudante de Coimbra, comprometido também ele com as ideias e as forças constitucionalistas de D. Pedro, possui uma fina ironia que dissolve com eficácia o pathos ideológico, deixando perceber um pensamento mais racional acerca de si e dos outros, das suas paixões, interesses e limites.

A escolha da figura do estudante universitário como personagem principal da narrativa não pode ser vista, apesar de Centazzi ter sido estudante e, posteriormente, médico, como um mero dado autobiográfico. O peso social e político – ou administrativo – daqueles que passavam por Coimbra era de tal ordem que a opção de Centazzi constituiu uma leitura adequada do país em que nasceu. Também a Universidade e, mais ainda, aqueles que a frequentavam não deixou de ser olhada com feroz ironia crítica. O narrador, tendo em conta os diversos tipos de vida que os estudantes levavam, chega a fazer o cálculo de quantos efectivamente estudavam com seriedade. Chegou à conclusão que seriam aí uns 10% e que o resto saía de lá pronto para as maiores incompetências e arbitrariedades.

Não é só da boémia coimbrã que é oferecido um retrato, mas também dos exilados políticos, dos seus anseios, dificuldades e peripécias. Por outro lado, o romance mostra com clareza como o absolutismo português terá aprendido, com os jacobinos franceses, o uso do terror como arma política fundamental. As prisões arbitrárias, as execuções sem culpa formada, a perseguição cruel, as denúncias  políticas motivadas por interesses egoístas e ajustes de contas particulares, a corrupção dentro das cadeias, tudo isso perpassa nas páginas do romance de Centazzi, que casa, como o fará também mais tarde Silva Gaio, a intriga e as peripécias políticas da guerra civil com um caso de amor, entre o estudante de Coimbra e a filha de um velho militar adepto do constitucionalismo.

O interessante, neste ponto, é que o romance tem dois fins. O publicado em 1841 e um outro dado na reedição de 1861, na qual o autor praticamente suprime o terceiro tomo, dedicado a uma reflexão sobre a situação portuguesa e ao desenlace da intriga. Esta supressão, diga-se, não teve o condão de melhorar o romance original. Pelo contrário. Os finais têm desenlaces amorosos diferentes, sendo o da edição de 1841 mais coerente com o desenvolvimento dos diversos momentos da obra, havendo uma preparação cuidada do fim, contrariamente ao final abrupto proposto em 1861. A edição de Pedro Almeida Vieira (Planeta, 2010) permite aceder às duas versões do romance. Seja como for, O Estudante de Coimbra merece leitura e não é um mau começo para a ficção portuguesa moderna. Um leitor de hoje sentir-se-á bem mais perto do romance de Centazzi do que de Eurico, o Presbítero, de Herculano, ou de O Arco de Santana, de Garrett.

domingo, 9 de dezembro de 2018

No Limiar da Porta 18. Náufragos, os lábios

Pablo Picasso, El beso, 1969

18. Náufragos, os lábios

Náufragos, os lábios
que de outros
se desprendem.
Mirram no silêncio
da face.
Caem.
Fruto ferido
inclinado no limiar
da língua.

1978

sábado, 8 de dezembro de 2018

O drama dos partidos de poder


A crise em que se arrasta o principal partido da oposição, o PSD, é sintomática da natureza dos partidos de poder em Portugal. São fortes e sólidos quando estão no poder; são frágeis e à beira da desagregação quando a governação lhes foge. Também nisto, o PSD e o PS são partidos irmãos. Quando estão no poder, a distribuição de lugares serena os ímpetos dos barões, sossega os ardores das bases e aquieta os rompantes dos caciques locais, aqueles que, na verdade, mantêm o partido vivo nos piores momentos.

Enquanto esteve no poder com Passos Coelho, o PSD dava a imagem de um partido pronto para todos os combates, falava com voz tonitruante e dava a ideia de ser uma espécie de dono político do país. Por seu lado, o PS vivia em guerra civil, que conduziu ao homicídio político de António José Seguro, o que não foi suficiente para António Costa ganhar as eleições. O que perdeu o PSD e salvou o PS foi a aritmética esquerda – direita, a qual, pela primeira vez, gerou um governo, ainda por cima estável. No entanto, não nos devemos iludir. Nem o PSD está à beira do fim, nem o PS está sólido e saudável. O que se passa é que o PSD está fora do poder e o PS, dentro. Basta que a ocupação do poder mude, para que o drama que atinge o PSD seja transferido para o PS.

Isto diz muito da natureza destes dois partidos, os quais nunca tiveram princípios ideológicos reais. O PSD, um partido do centro-direita e da direita, adoptou, por oportunismo político, uma designação de esquerda (sim, a social-democracia é de esquerda). Por seu lado, o PS, contrariamente aos seus irmãos estrangeiros, não tem qualquer ligação ao movimento reformista das classes trabalhadoras. É uma organização assente nas profissões liberais, por vezes com laivos de jacobinismo oratório, sem um contacto real com as velhas tradições da social-democracia europeia. Em momentos mais exaltados fala em socialismo democrático, apenas como efeito retórico.

Os dois principais partidos portugueses são, deste modo, organizações cimentadas apenas pelo poder. O poder para PSD e PS não é um instrumento, mas o fim em si mesmo, adaptando-se à volubilidade do eleitorado, na ânsia de encontrar maiorias absolutas. Em caso de ausência dessa maioria, ambos recorrem a alianças que os mantenham no comando do país, para que bases, caciques e barões durmam tranquilos e, se possível, gratos. O facto dos dois principais partidos portugueses não possuírem, no seu núcleo, uma tradição política real, torna-os, dramaticamente, vulneráveis quando estão na oposição, e é um factor de fragilização da democracia portuguesa.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Sonhos numa noite de Verão 8

Rowland Scherman, Judy Collins and Joni Mitchell make music, 1969

Talvez o calor fosse excessivo, talvez tivesse bebido demais, a verdade é que adormeci contra a minha vontade. Como é hábito, sonhei. A novidade é que não parecia um pesadelo. Estava numa época e num sítio pacíficos, e sempre que se sonha com tempos e lugares pacíficos, ouve-se cantar. E eu ouvi cantar. Talvez não fossem anjos, eram vozes femininas e atiçavam o desejo de quem as ouvia. Deixei-me embalar no cântico e dancei, até que as vozes se transformaram numa terrível trovoada. O coração batia descompassado, quando acordei. Na rua, um raio fendera o velho plátano que servira de sombra à minha infância.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Joaquim Paço d'Arcos, Espelho de Três Faces


No quinto livro do ciclo Crónica da Vida Lisboeta, Espelho de Três Faces, Joaquim Paço d’Arcos faz uma surpreendente análise do homem técnico e do niilismo que ele traz consigo. No centro da intriga está o engenheiro Leonel Seabra, filho de um importante diplomata, que, ao enveredar pela engenharia, não segue as pisadas do pai, imbuído de uma larga cultura política. É apenas no quinto livro da Crónica que, entre a multiplicidade de personagens, emerge como figura principal um engenheiro comprometido com um projecto industrial. Em Ansiedade, segundo livro do ciclo, o estudante de engenharia Pedro Pinto era uma figura de alguma importância na trama romanesca, mas por motivos políticos, pela sua ligação a uma tentativa de revolta contra a ditadura.

Leonel Seabra é apresentado sob dois ângulos, o da vida amorosa e o da ocupação profissional. O talento de Paço d’Arcos reside no entrelaçamento dos fios provenientes de ambos para traçar o vazio que cresce na alma do homem da técnica. Esse vazio é prenunciado, logo no início do romance, pela informação de que a sua namorada, Maria Eduarda, morrera de acidente de viação, do qual ele fora o culpado. O romance é publicado em 1950, num tempo em que o automóvel era ainda, pelo menos num país periférico e atrasado como Portugal, o símbolo da revolução técnica e da segunda revolução industrial. É a sombra deste acidente que se vai projectar, de formas diferenciadas, no destino do engenheiro saído do Instituto Superior Técnico.

O romance tem um primeiro capítulo introdutório com cerca de 40 páginas, aos quais se seguem três partes. Todas elas remetem para uma mulher e para a ideia de representação: Maria do Céu – Esboço; Manuela – Retrato; Maria Antónia – Perfil. Todas estas mulheres se cruzam com o engenheiro Seabra. Maria do Céu, uma aristocrata, chegou a ser sua noiva. Manuela, rapariga umas vezes tida por conta outras tendo de trabalhar num prostíbulo elegante de Lisboa, foi sua amante antes e depois do possível casamento com Maria do Céu. Maria António, filha de um capitão monárquico preso como oposicionista, foi sua secretária e, desde os tempos de juventude, mantinha uma secreta paixão por Leonel. Em todos estes casos se reproduz, de forma simbólica, a situação originária. Em nenhum deles, o amor conduziu a um comprometimento. Na verdade, estas mulheres não eram mais do que representações (retratos, esboços, perfis) de alguém que se tinha transformado em nada.

Do ponto de vista profissional, o protagonista dirige um projecto de instalação de uma fábrica de adubos no país, empreendimento partilhado pelo Estado e por empresários privados. A acção está situada no início do Plano Marshall e caracteriza o processo de industrialização que esse plano produziu em Portugal. Leonel Seabra é o administrador delegado e todo o seu talento se centra nos aspectos técnicos e na criação da empresa. O problema surge quando é necessário,ultrapassar as preocupações técnicas e industriais do empreendimento e ser conivente com interesses financeiros que se movimentavam de forma não muito transparente à volta do projecto. Não seriam interesses ilegais, mas que eram de moralidade duvidosa. A sua recusa não o leva a enfrentar a situação, mas condu-lo ao pedido de demissão da empresa, a qual era o fim para que se tinha preparado desde o tempo de estudante universitário e que, na verdade, era o seu projecto existencial.

Uma vocação meramente técnica torna o homem incapaz de lidar com a complexidade tanto do desejo amoroso como com as teias ardilosas da vida social, com os seus interesses. Derrotado, ainda que por demissão, tanto no amor como na realização da sua vocação, Leonel Seabra foi desenhado, por Paço d’Arcos, como figuração do carácter niilista do homem técnico. A este falta-lhe uma outra cultura – presente na figura do pai – que lhe permita um compromisso real com a complexidade do mundo. A ausência dessa cultura conduz à demissão e à fuga ao compromisso. O acidente de automóvel na juventude, com a perda da mulher amada, é uma espécie de profecia trágica de um destino a que, o promissor e talentoso engenheiro, não pôde fugir. O seu talento técnico conduziu-o a lugar nenhum, assim como cada face do espelho lhe devolveu o vazio da sua personagem.

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Uma triste e vil cultura


Quando acontecimentos dramáticos como o aluimento de uma parte da estrada entre Borba e Vila Viçosa se dão, monta-se um terrível espavento cujo resultado é ocultar a raiz que está na base desses acontecimentos. O espectáculo, para além das intervenções populares e os comentários dos especialistas sobre o assunto, constrói-se com uma acalorada e muito indignada exigência de encontrar culpados para o sucedido. As televisões – secundadas de imediato pela imprensa e redes sociais ou vice-versa – são palco de um novo desporto nacional: a caça ao responsável pela tragédia. Estas cenas degradantes servem para dois fins. Por um lado, alimentar as audiências e, por outro, aliviar a consciência da nação relativamente ao modo como a generalidade dos portugueses se relaciona com a vida.

Não estou a afirmar que estas tragédias não têm culpados. Terão, por certo. Ainda menos defendo que esses culpados, caso sejam identificados, devam ficar impunes. Não devem. Será esse o trabalho do sistema judicial. A Justiça deverá seguir, célere de preferência, os seus trâmites e encontrar os indivíduos cuja acção ou omissão contribuiu para a tragédia. A Justiça, porém, não é um palco feérico e onde gente histriónica age para gáudio da plebe. Por isso, o trabalho da Justiça não deve ser confundido com o populismo justicialista que tomou conta da comunicação social, imitando o pior das redes sociais, na busca do primeiro – e se for político, melhor – a quem se possa apontar o dedo acusatório.

O reboliço comunicacional, pretensamente indignado, tem o condão de esconder a atitude dos portugueses perante a vida. Não está na sua cultura serem meticulosos, organizados, preocupados em prever o que pode acontecer. Valoriza-se antes a tendência para o improviso, para o deixa andar, tomando como virtuosa a indigna arte do desenrascanço (que palavra horrível). Esta cultura do descuido é como Deus, está em toda a parte mas não se vê. Só se torna visível quando acontecem coisas como as da estrada de Borba.

A histeria da comunicação social, com os seus rituais de caça ao culpado, oculta de imediato este traço da nossa cultura. O resultado é terrível. Punem-se os culpados, quando se punem, e espera-se por novo desastre, pois continuamos, em todas as esferas da vida, a odiar a organização, o trabalho meticuloso e a adorar a arte medíocre do deixar andar. Sim, precisamos de encontrar os culpados, mas também precisamos de mudar a forma como estamos na vida, pois o objectivo não é andar a pôr pessoas atrás das grades, mas evitar, pelo trabalho organizado e meticuloso, que as tragédias se dêem. Não precisamos de culpados, mas de pessoas vivas. Para isso temos de mudar a nossa triste e vil cultura do desenrascanço.

[Crónica publicada em A Barca, de Dezembro de 2018]

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

No Limiar da Porta 17. Um rebanho vagueia

Charles Émile Jacque, Shepard with Flock

17. Um rebanho vagueia

Um rebanho vagueia
no flanco da madrugada.
Incendeia-se na neve.
Demora-se na solidão.
Sonha um sopro de água
num rio de sol e secura.

1978

domingo, 2 de dezembro de 2018

A revolta dos coletes amarelos


A revolta dos coletes amarelos em França, aparentemente espontânea, com um grau de contestação e de violência a fazer lembrar a velha tradição francesa, merece ser observada com atenção, mesmo num sítio tão turístico como Portugal. A questão que se coloca é se este processo será uma idiossincrasia francesa ou se ele tem potencial para alastrar pela Europa, pelo menos na Europa do Sul, onde nos situamos. Antes de se responder a esta questão, é necessário tentar perceber o que está em jogo. A causa inicial do protesto foi um imposto sobre o combustível em nome do combate às energias poluentes. A esta motivação foi adicionada a da luta contra a perda de rendimentos das classes médias francesas.

O apoio à contestação é um barómetro sobre as preocupações ecológicas da população francesa. Parece que todos gostam muito do ambiente, desde que isso não implique uma mudança do estilo de vida. Aliás, quanto mais dinheiro se tiver, melhor se pode desfrutar de reservas onde o ambiente não está poluído. E aqui liga-se a segunda parte das reivindicações, a perda de rendimentos das classes médias. É possível que a defesa do ambiente seja compaginável com uma crescente e radical concentração da riqueza em muito poucos e a consequente pauperização de uma ampla parte da população. Limitar o direito e o poder de poluir apenas a alguns, enquanto a maioria terá drasticamente diminuído o tamanho da sua pegada ecológica. E é isto que, de certa maneira, parecem significar as políticas de Macron.

Pôr em xeque o uso sem limites do automóvel – esse inultrapassável fetiche das classes médias ocidentais – e degradar-lhe a qualidade de vida é uma causa que, se adoptada noutros países, desencadeará o mesmo tipo de reacção, ainda por cima com o exemplo que os franceses estão a dar. Seria o caso de Portugal, onde o ambiente político parece pacífico e longe da contestação. Contudo, o aumento do imposto sobre os combustíveis que o governo de António Costa fez passar, há tempos, sem grandes dificuldades, neste momento seria impossível. Não faltariam coletes amarelos a vociferar  por aí.

Ora a situação portuguesa – e provavelmente de outros países do Sul – é muito propícia a tentações de uma maior tributação. A contenção do défice, a dívida externa e as reivindicações dos corpos da função pública, para além do combate à degradação ambiental, são factores que geram uma necessidade acrescida de receitas. Um passo em falso do actual ou do próximo governo, seja nos impostos sobre combustíveis ou noutros com impacto nas classes médias, e a contestação francesa transbordará para Portugal. Ou então uma situação inesperada, como uma contestação generalizada do sector privado perante as exigências do sector público, isto é, aquilo que seria uma revolta de contribuintes, a que não falta já a sua pasionaria.