Entre a religião e a sociedade há uma dinâmica que, nos dias
de hoje marcados pela indiferença religiosa, parece já não ser compreendida
pela maioria das pessoas. Esta incompreensão deve-se à religião ter sido
relegada para o foro da subjectividade. As pessoas podem dizer-se católicas,
frequentarem a Missa, mas na vida social comportarem-se objectivamente como
alguém despido de qualquer crença religiosa. Isto afecta, de forma muito
evidente, o sentido social da Festa da Natividade do Senhor, a qual se degradou
numa espécie de orgia de consumo.
O Natal tem um significado religioso, de natureza
espiritual, e tem um sentido social. Não foi apenas a sua dimensão espiritual
que foi rasurada, mas também o significado profundo da sua natureza mais
exterior e comunitária. No nascimento do Menino, as nossas sociedades
sacralizavam e divinizavam a emergência de uma nova vida. O Menino Jesus é o
arquétipo de todas as crianças que vêm à vida. Isto significava que a
banalidade do nascimento humano tornava-se num acontecimento excepcional. Por
mais crianças que nascessem, por mais vulgar que fosse a mecânica que conduz da
fecundação ao nascimento, todo o recém-nascido era um excepção, um
acontecimento extraordinário e singular. Uma manifestação divina.
No Natal, as sociedades celebravam o poder da vida, a sua
regeneração e a sua eterna novidade. Celebravam também outra coisa, celebravam
a sua própria continuidade. Esta simbolização, pelo Natal, da continuidade da
vida e da comunidade parece, nos dias de hoje, completamente perdida, ocultada
pela festividade profana que, dinamizada pela indústria e pelo comércio, se
ergueu nas cidades e nos lares. Em vez da vida, desde há muito que o Natal
celebra o poder de compra. Deixou de ser uma questão vital para se tornar num
dado nas estatísticas económicas dos países e uma dor de cabeça para aqueles
que, crentes ou não, terão de participar nas festividades, arrastados pela
enorme máquina publicitária.
Que o Natal tenha perdido a sua dimensão espiritual, isso diz
respeito aos crentes. Que ao Natal se tenha retirado o poder para simbolizar o
triunfo da vida e a continuação da comunidade, deveria preocupar crentes e
descrentes. Sem a simbólica do Natal, a vida e a continuidade de uma comunidade
perdem a sua natureza sagrada e são arrastadas para o domínio do que é vulgar e
banal. Se o Natal passou a ser uma prova do poder de comprar, a vida – essa que
se renova em cada recém-nascido – tornou-se um exercício dependente de um
cálculo económico, e a continuidade da comunidade ficou sujeita à aritmética
dos prazeres e dos desprazeres que a nova criança poderá trazer.
[A minha crónica em A Barca]
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