terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Joaquim Paço d'Arcos, A corça prisioneira


Sexto e último romance da Crónica da Vida Lisboeta, A Corça Prisioneira, de Joaquim de Paço de Arcos, explora o território ambíguo que, mais do que separar, une traição e fidelidade. A temática da traição amorosa vem sendo explorada desde o primeiro romance do ciclo. Em todos eles, diversas personagens femininas são dilaceradas pelo conflito entre a fidelidade à convenção, representada pelo casamento enquanto contrato e instituição, ou a fidelidade a si mesmas, à inclinação provocada pelas afecções da alma e pelos desejos do corpo. Neste último romance, o jogo entre fidelidade e traição coloca-se, todavia, a vários níveis, indo muito para lá da questão amorosa e sexual, apesar de ambas constituírem os pólos de um eixo, em torno do qual roda, sem parar, a vida dos homens.

O tempo romanesco corresponde ao primeiro lustro da década de cinquenta do século XX. Estamos em plena Guerra Fria e vive-se a época em que o equipamento atómico dos arsenais militares se tornou decisivo na geoestratégia mundial. Portugal seria um exportador de urânio para as potências aliadas, mas a sua produção é também disputada pela União Soviética. Uma empresa fantasma, dirigida, através de testas-de-ferro, por personagens influentes na vida económica, tenta desviar parte de produção para os soviéticos. É nesta trama que um dos principais produtores nacionais, Fernando Malafaya, um grande proprietário, é apanhado, através das manobras do seu sogro, um burlão que, antes de ser descoberto, se tinha alcandorado dos lugares mais baixos de um banco ao topo da sua administração. Saído da prisão, trai a boa-fé do genro e causa-lhe, pela sua aliança com os empresários feitos com os soviéticos, uns percalços desagradáveis com a polícia política. Paço d’Arcos manifesta as frágeis fidelidades políticas dos homens de negócios, a sua duplicidade, marcada por uma adesão de superfície e uma fidelidade funda aos seus interesses privados.

É também o tema da fidelidade e da traição aquele que diz respeito a Alberto de Lemos. Este era um antigo amigo de Malafaya, quando ambos estudavam em Paris, antes da II Guerra Mundial e da ocupação alemã da capital francesa. Apesar de serem politicamente afastados – Malafaya era monárquico e Lemos, comunista – tinha nascido uma amizade que não teve continuidade em Lisboa. Alberto, um físico de prestígio, retornara a Portugal e, apesar das inclinações ideológicas de juventude, já esmorecidas, trabalhava na Comissão de Energia Nuclear. Três fidelidades disputavam a sua pessoa. A do regime, devido ao papel destacado que tinha num organismo científico tão sensível do ponto de vista político. A dos antigos camaradas do Partido Comunista, que tentavam explorar as suas antigas crenças, em proveito dos soviéticos. A da sua vocação de cientista, que era a única que, na verdade, o movia e determinava as suas opções. Se não foi fiel aos seus antigos camaradas, também não o era ao regime. E se com isso evitou a prisão, não pôde esquivar-se a uma expulsão do país.

Um encontro inesperado em Paris entre Malafaya e Lemos, no período do pós-guerra, conduz ao reatamento da velha amizade em Lisboa. E aqui entra de novo o tema da fidelidade e da traição, agora no campo do amor e da amizade. A mulher de Fernando Malafaya, Leonor, tinha sido explicanda de Alberto e entre eles teria ocorrido uma equívoca situação amorosa que ele tinha deixado cair aquando da prisão do pai de Leonor. Esta, porém, nunca o esquecera e o reencontro foi oportunidade para desenvolver uma paixão funesta. No centro do triângulo amoroso, estava Fernando Malafaya. Que tinha sido traído pelo sogro, e era agora traído pela mulher e pelo amigo de juventude. Com a descoberta da situação, porém, Malafaya mantém-se fiel ao seu compromisso com a religião. Não desfaz o casamento. 

Leonor é a corça prisioneira, que casa com Fernando quase como vingança contra a mãe deste, que, como madrinha a recebe em casa e a maltrata continuamente, após a queda e prisão do pai. A sua traição é o outro lado da fidelidade profunda ao seu desejo. Alberto é apenas fiel à sua vocação de cientista. Trai o amigo, a amante, os antigos camaradas e o próprio regime que o acolheu. Tudo isso era, na verdade, irrisório para ele. Fernando é traído três vezes, mas mantém-se fiel às suas convicções espirituais. O triângulo amoroso encarna três tipos de fidelidade. A fidelidade ao corpo e ao desejo, em Leonor, a fidelidade à vocação e à vontade, em Alberto, a fidelidade ao espírito e ao sentimento, em Fernando.

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