Sexto e último romance da Crónica da Vida Lisboeta, A Corça Prisioneira, de Joaquim de Paço
de Arcos, explora o território ambíguo que, mais do que separar, une traição e
fidelidade. A temática da traição amorosa vem sendo explorada desde o primeiro
romance do ciclo. Em todos eles, diversas personagens femininas são dilaceradas
pelo conflito entre a fidelidade à convenção, representada pelo casamento enquanto
contrato e instituição, ou a fidelidade a si mesmas, à inclinação provocada
pelas afecções da alma e pelos desejos do corpo. Neste último romance, o jogo
entre fidelidade e traição coloca-se, todavia, a vários níveis, indo muito para
lá da questão amorosa e sexual, apesar de ambas constituírem os pólos de um
eixo, em torno do qual roda, sem parar, a vida dos homens.
O tempo romanesco corresponde ao primeiro lustro da década
de cinquenta do século XX. Estamos em plena Guerra Fria e vive-se a época em
que o equipamento atómico dos arsenais militares se tornou decisivo na
geoestratégia mundial. Portugal seria um exportador de urânio para as potências
aliadas, mas a sua produção é também disputada pela União Soviética. Uma
empresa fantasma, dirigida, através de testas-de-ferro, por personagens influentes
na vida económica, tenta desviar parte de produção para os soviéticos. É nesta
trama que um dos principais produtores nacionais, Fernando Malafaya, um grande
proprietário, é apanhado, através das manobras do seu sogro, um burlão que,
antes de ser descoberto, se tinha alcandorado dos lugares mais baixos de um
banco ao topo da sua administração. Saído da prisão, trai a boa-fé do genro e
causa-lhe, pela sua aliança com os empresários feitos com os soviéticos, uns
percalços desagradáveis com a polícia política. Paço d’Arcos manifesta as
frágeis fidelidades políticas dos homens de negócios, a sua duplicidade,
marcada por uma adesão de superfície e uma fidelidade funda aos seus interesses
privados.
É também o tema da fidelidade e da traição aquele que diz
respeito a Alberto de Lemos. Este era um antigo amigo de Malafaya, quando ambos
estudavam em Paris, antes da II Guerra Mundial e da ocupação alemã da capital
francesa. Apesar de serem politicamente afastados – Malafaya era monárquico e
Lemos, comunista – tinha nascido uma amizade que não teve continuidade em
Lisboa. Alberto, um físico de prestígio, retornara a Portugal e, apesar
das inclinações ideológicas de juventude, já esmorecidas, trabalhava na
Comissão de Energia Nuclear. Três fidelidades disputavam a sua pessoa. A do
regime, devido ao papel destacado que tinha num organismo científico tão
sensível do ponto de vista político. A dos antigos camaradas do Partido
Comunista, que tentavam explorar as suas antigas crenças, em proveito dos
soviéticos. A da sua vocação de cientista, que era a única que, na verdade, o
movia e determinava as suas opções. Se não foi fiel aos seus antigos camaradas,
também não o era ao regime. E se com isso evitou a prisão, não pôde esquivar-se
a uma expulsão do país.
Um encontro inesperado em Paris entre Malafaya e Lemos, no
período do pós-guerra, conduz ao reatamento da velha amizade em Lisboa. E aqui
entra de novo o tema da fidelidade e da traição, agora no campo do amor e da
amizade. A mulher de Fernando Malafaya, Leonor, tinha sido explicanda de
Alberto e entre eles teria ocorrido uma equívoca situação amorosa que ele tinha
deixado cair aquando da prisão do pai de Leonor. Esta, porém, nunca o esquecera
e o reencontro foi oportunidade para desenvolver uma paixão funesta.
No centro do triângulo amoroso, estava Fernando Malafaya. Que tinha sido traído
pelo sogro, e era agora traído pela mulher e pelo amigo de juventude. Com a
descoberta da situação, porém, Malafaya mantém-se fiel ao seu compromisso com a
religião. Não desfaz o casamento.
Leonor é a corça prisioneira, que casa com Fernando quase
como vingança contra a mãe deste, que, como madrinha a recebe em casa e a maltrata
continuamente, após a queda e prisão do pai. A sua traição é o outro lado da
fidelidade profunda ao seu desejo. Alberto é apenas fiel à sua vocação de
cientista. Trai o amigo, a amante, os antigos camaradas e o próprio
regime que o acolheu. Tudo isso era, na verdade, irrisório para ele. Fernando é
traído três vezes, mas mantém-se fiel às suas convicções espirituais. O
triângulo amoroso encarna três tipos de fidelidade. A fidelidade ao corpo e ao
desejo, em Leonor, a fidelidade à vocação e à vontade, em Alberto, a fidelidade
ao espírito e ao sentimento, em Fernando.
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