sábado, 18 de março de 2023

Os abusos e a desorientação da Igreja


A Igreja Católica portuguesa, na sequência do relatório da Comissão Independente sobre os abusos sexuais, tem mostrado uma inconcebível desorientação. A resposta dada pela Conferência Episcopal Portuguesa e algumas intervenções de altos dignitários, entre eles o Cardeal-Patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, deixaram muita gente perplexa e não poucos católicos desiludidos. O carácter sexual dos abusos tem ocultado a raiz do problema e a causa última da desorientação eclesiástica. Há quem pense que a questão está na relação perversa que a Igreja Católica mantém com a sexualidade, por um lado, e a exigência do celibato dos padres, por outro. O problema, todavia, é mais fundo.

É um facto que existe uma pulsão na Igreja para tentar controlar a sexualidade dos fiéis ou mesmo, caso fosse possível, de toda a gente. Enquanto se preocupa com o controlo da vida sexual dos outros, o clero – que domina toda a Igreja – sempre foi muito benevolente para com os seus, mesmo nos casos de abuso de menores, como se tem sabido. O problema, porém, não é, em primeiro lugar, um problema com a sexualidade, mas a forma como a Igreja tem sido incapaz de lidar com o mundo moderno e a autonomia dos indivíduos. Não é a sexualidade que leva parte do clero à desorientação, mas o facto de a relação com os crentes, na qual o pastor tem poder sobre as consciências, estar em contradição com sociedades onde os indivíduos são livres. Não podemos esquecer que os abusos, agora relatados pela Comissão Independente, ocorreram em relações onde, por norma, o poder eclesial do abusador se conjugava com a submissão das vítimas.

Essa relação de poder sobre as consciências está ameaçada. É essa ameaça que explica a desorientação de parte importante da hierarquia católica. Outrora, o seu poder era suficiente para ocultar as coisas desagradáveis. Agora deixou de ser. Enquanto a Igreja não compreender que a liberdade das pessoas e a autonomia da sua consciência é um bem que deve ser não só respeitado, mas cultivado, continuará a ver nos padres pastores de um rebanho de ovelhas submissas. E isto abre o caminho para todos os abusos. O que há de doentio na relação da Igreja com a sexualidade, o que há de inominável na história dos abusos, radica numa perversa relação de poder dos clérigos com os fiéis. Sem alterar esta relação, parte substancial da Igreja continuará desorientada, perdida entre o sonho do retorno a um passado de poder e dominação das consciências e os ditames de um mundo onde cada um deve guiar-se pela sua razão e não pela do prior da paróquia.

quinta-feira, 16 de março de 2023

Cardílio (24 sonetos) 8

Imagem obtida com IA da CANVA

Na luz destas colunas, em teu rosto

Macerado, coberto pelo musgo,

 Desenhado na areia dos olivais,

Quantos anos passaram sem vestígio.

 

As paredes são pó, pedra calcária,

Abandonadas águas tão salobras.

Aves siderais pálidas de morte,

Folhas, frutos perdidos no silêncio.

 

Uma palavra rasga o horizonte,

Grita-te incendiada na memória,

Ecoa na lezíria devastada.


No porão dos Invernos esquecidos,

Nas pedras arrastadas pelo tempo,

Ergue-se a sombra pura do passado.


2007

 

terça-feira, 14 de março de 2023

Comentários (4)

Imagem obtida com IA da CANVA

De repente, depois de morreres, aqueles amigos
que nunca concordaram com nada
concordam sobre o teu carácter.
Louise Glück

A morte é a porta aberta para o consenso. Sobre os mortos, mesmo aqueles que geraram mais ódio ou qualquer outro antagonismo extremado, o tempo trabalha para que, lentamente, as facetas mais agudas se vão erodindo, tornando-se cada vez mais planas. É verdade que alguns mortos precisarão de passar milénios no purgatório do esquecimento até que sobre eles se forme o consenso que os apaziguará e os libertará do rancor dos vivos, mas também a eles será dada uma oportunidade de paz. A morte é a entrada no paraíso de onde toda a dissensão foi banida.

domingo, 12 de março de 2023

Descrições fenomenológicas 70. A praça

Willem De Kooning, Cuadro, 1948

Não se sabe ao certo quando aquele espaço foi transformado numa praça, roubado às tarefas agrícolas que, noutros tempos, ocupavam as terras que cidades belicosas invadiram, desterrando os camponeses cada vez para mais longe. Sabe-se apenas que ali se reuniam há séculos pessoas para se entregarem ao comércio, às paixões do mundo, ao hábito da conversa. É essa praça antiga que ainda se suspeita sob a actual, com um enorme tabuleiro empedrado, ladeado por duas filas de velhos plátanos, agora despidos pelas agruras das estações. De um lado e de outro, existem cafés e bares, com as suas esplanadas cobertas e gente, muita gente, sentada nas mesas, uns lendo os jornais, outros a conversar, outros silenciosos olhando em frente, sem que se consiga saber qual o destino desses olhares desavisados. A noite cai, a iluminação eléctrica cria nuvens de luz ao misturar-se com uma chuva fina e melancólica. Entre os renques de árvores, no empedrado do tabuleiro central, não falta gente. Casais passeiam devagar, chapéus de chuva abertos, homens e mulheres solitários levam à trela cães de diverso porte, que vão sacudindo a água fina que se deposita no pêlo. Um jovem casal dá as mãos, enquanto a luz incide sobre eles, tornando-os o foco de quem, desocupado, olha por curiosidade, por não ter mais nada para fazer, por não saber como ocupar o tempo que antecede a hora de jantar. Depois, o casal perde-se entre os transeuntes, enquanto a chuva fina e rala forma aglomerados de gotas suspensas no ar, vibrando sob a luz, para cair no empedrado, nos chapéus de chuva, nos ramos despidos dos plátanos, uma água embalada pela hora do crepúsculo e pela vida que ainda ali freme, passados tantos séculos, mas que mais um pouco desaparecerá, por algumas horas, quando aquela gente recolher a casa para jantar e proteger-se das trevas da noite.

sexta-feira, 10 de março de 2023

Nocturnos 98

Imagem gerada por IA da DALL-E 2, da OpenAI

A frágil transparência da noite abre-se entre a névoa vinda da floresta e a luz branca que, pelas ruas desertas, faz lembrar a presença cintilante de estrelas decaídas. O silêncio ocupou o espaço vazio, como se a cidade abrisse os braços para acolher o último noctívago perdido no dédalo das suas avenidas.

quarta-feira, 8 de março de 2023

Cardílio (24 sonetos) 7

Anónimo romano, Mosaico de las figuras (detalhe), Museo Arqueológico. Córdoba. España

Já não resta do amor senão fragmentos
Dilacerados, rosas secas, murchas,
Espinhos acerados no silêncio
Da Primavera lábil e olvidada.

O inquieto chão que outrora tu pisaste
Não passa dum murmúrio, seca página
Da mão logo apartada. Ouve, Cardílio,
A lâmpada apagou-se, a noite veio.

Tremem-te as mãos, amarga o coração,
Já nada em ti respira, nem a voz,
Nem a língua suspira. Anjo não és,

Nem ladrão, nem um deus inconsolado.
- Sombra, vermelha sombra, quem és tu?
- Um nome, sem destino nem morada.

2007

segunda-feira, 6 de março de 2023

Ensaio sobre a luz (98)

Artur Pastor, Série De volta à Cidade, Lisboa, Avenida João XXI , décadas de 60-70
A cidade é um mar de luz com arquipélagos de sombra. Quem passa mergulha nas águas luminosas ou cobre-se nas pequenas ilhas que protegem os olhos do resplendor nascido no centro da terra. A Primavera cresce na encruzilhada entre os rigores do Inverno e as promessas do Estio, entre os frutos maduros da cintilação do sol e o pano escuro de um céu coberto pela cinza das nuvens.

sábado, 4 de março de 2023

Um estranho país


Descobre-se, ao olhar a comunicação social, que o país é composto praticamente por proprietários de casas devolutas e por donos de casas utilizadas para alojamento local. O alarido perante a iniciativa governamental relativa à habitação diz muito da comunicação social, mas muito pouco sobre o país. Isto não significa que as propostas do governo não sejam discutíveis. São-no. Contudo, o problema central não será o suposto ataque ao direito de propriedade ou a limitação da iniciativa no caso do alojamento local. Em primeiro lugar, é o próprio problema da habitação que se tornou dramático. Em segundo, é a expulsão dos habitantes menos ricos das grandes – e pequenas – cidades, com a consequente descaracterização. Por fim, é o impacto político resultante do ressentimento de parte da população ao sentir-se expulsa do lugar onde sempre viveu.

Há dias foi publicado um dado relevante sobre a nossa sociedade que está condenado a provocar menos alarido, menos comentários empolgados e delirantes, menos preocupação. Trata-se do crescimento da pobreza. O caso mais impressionante, porém, é que, se não existissem apoios sociais, 45% dos portugueses viveriam na pobreza. Isto é, quase metade da população. Além do mais, muitos, se não a maioria, dos outros 55% vivem pouco acima desse limiar de pobreza. Quando se junta estes dados à situação do sistema de saúde, e a falta de profissionais, do sistema educativo, e a falta de profissionais, fica-se com uma imagem terrível de Portugal. Uma sociedade extremamente estratificada, com grandes desigualdades e com os serviços sociais em colapso. Portugal entrou na União Europeia em 1986. A adesão era vista como a única forma de o país ser viável e não ver, a prazo, a sua independência ameaçada.

Passados mais de 35 anos, com muitos milhões de euros entrados no país, os problemas da pobreza não foram resolvidos. Por outro lado, os direitos constitucionais à habitação, saúde e educação encontram, cada vez mais, sérias limitações. Os portugueses, por norma, têm grande capacidade de sobreviver nos momentos difíceis, mas são incapazes de olhar o longo prazo, de estruturar e planear o que virá. Os governos, como no caso da habitação, mas também noutras áreas, improvisam, reagem aos problemas que vão surgindo, sendo incapazes de os antecipar e evitar. A agravar tudo isto, temos uma sociedade civil débil, com horror à política, composta por cidadãos que têm por aspiração máxima não ficarem pior do que estão. O alarido da comunicação social em torno das casas devolutas e do alojamento local é o outro lado da cegueira perante um país doente e em degradação contínua.

 

quinta-feira, 2 de março de 2023

O ódio ao Ocidente

Tornou-se manifesta a existência não apenas de um sentimento antiocidental, mas de um propósito de isolar o Ocidente e destruí-lo. A questão é a de saber o que tem a cultura ocidental de específico que provoca um ódio tão avassalador noutras partes do mundo. Alguns ocidentais dirão que o seu comportamento imperialista, a necessidade de abrir mercados nem que seja pela violência. Ora, essa conduta não é uma especificidade ocidental, e, por outro lado, os impérios ocidentais ruíram há muito. A diferença específica geradora de um ódio persistente ao Ocidente é a liberdade dos indivíduos.

O que marca as nossas sociedades é não estarmos submetidos a nenhuma religião, podendo-se adoptar uma ou outra, ou nenhuma. Ser religioso depende da consciência de cada um, da sua liberdade. Do mesmo modo, ninguém é obrigado a suportar a política do governo em exercício. Os chefes políticos são governantes transitórios, sujeitos à lei e à crítica e avaliados nas urnas. Cada um escolhe segundo a sua consciência, a sua liberdade. Por outro lado, a orientação moral não deriva de uma moral colectiva, mas de valores que cada um adopta, respeitando o mesmo direito para os outros, segundo a sua consciência, a sua liberdade. Também a vida sexual da pessoa, desde que não viole a autonomia de terceiros, é da responsabilidade da sua consciência, da sua liberdade.

O ódio que os governantes das potências autoritárias propagam relativamente ao Ocidente deve-se a este ser um mau exemplo. As sociedades ocidentais evoluíram de modo a que cada ser humano possa ser um indivíduo responsável pelos seus actos e dotado de direitos para agir em liberdade, desde que não infrinja direitos de outros. É isto que não é suportável para as lideranças políticas e religiosas do mundo submetido ao autoritarismo de tiranos e tiranetes que olham para as pessoas apenas como membros indiferenciados de um rebanho que deve obedecer, sempre e em todas as questões, ao pastor de serviço.

A liberdade, que viu a luz no Ocidente, é uma flor frágil e, na história dos seres humanos, tem sido a excepção e não a regra. A sua defesa, em todas as áreas, religião, política, moralidade, vida sexual, etc., é uma das tarefas fundamentais dos dias que correm. Defesa perante as ameaças não apenas dos inimigos externos, mas também dos que, internamente, sonham em liquidá-la, para repor nas mãos de um tirano político ou de uma igreja, ou de ambos, o controlo das vidas de cada um. Defender a liberdade é defender a existência de indivíduos que administram a sua vida conforme lhes dita a sua consciência, a sua liberdade.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Cardílio (24 sonetos) 6

Vila Cardílio

Havia aldeias de pó, casas de espuma,
Animais de cabeça incendiada.
De vento e som que imagens desse tempo
Na distância ficaram soterradas?

Foram-se os meses, dias foram também.
Tudo se foi tão rápido. Os rios trémulos
Abandonaram-se à foz e o silêncio
Da noite entre colinas logo avançou.

A flecha da memória, uma seta
De cristal, um revérbero de cinza,
A luz branca e animal. Lâmina fria

Em tua cabeça cai. Pesados ombros
Ao feroz peso da água tão vergados,
Sois sombra leve ou lâmpada apagada?

2007

 

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Simulacros e simulações (45)

Imagem gerada através do Dalle 2 da OpenAI

Simula-se a chuva para que chegue a tempestade e, com o furor dos elementos, a natureza se purifique das manchas que nela as ideias semeiam. Não há pior pesadelo para a natureza do que o pensamento. O que é vivo reduz-se às pequenas perfídias da abstracção. Ao crescerem, transformam-se nos martelos furiosos do desejo. Então, batem, batem, batem sem piedade e reduzem o mundo a um simulacro do inferno.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Comentários (3)

Leopoldo Novoa, Brun a deux reliefs, 1970

Recolheu-se a ouvir. De tudo
quanto ouviu não ficou nada
Fernando Echevarría

De todos os limites que circunscrevem o poder dos homens, não haverá limite mais doloroso que o da memória. Cabe-lhe a árdua tarefa da conservação, o desígnio de trazer ao presente as palavras e os gestos havidos, o recordar o que foi dito, para que, perante o jogo das solicitações, se faça presença. A falência da memória é, porém, uma dor que liberta, é a criação de uma clareira para que o não dito e o não acontecido possam, sobre as cinzas do esquecimento, eclodir e trazer sobre o mundo a cintilação de uma nova luz.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Beatitudes (58) A luz da Lua

Caspar David Friedrich, Couple Watching the Moon, 1824

O peso da noite torna-se leve, se a Lua rasga as trevas e abre uma clareira onde os amantes encontram o lugar para o seu amor. Nem a rudeza silvestre da paisagem, nem o ar frio soprado pelo vento norte, nem o temor da escuridão, nem a dúvida que, ainda há momentos, assomava no espírito e tocava no coração, bastam para dissolver o encantamento que a luz do astro lança sobre os corpos, para os raptar do cuidado diurno e os lançar na festa embriagada da beatitude.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Cardílio (24 sonetos) 5

Vila Cardílio

Tão sentado estás na erva verde
Incendiada, fremente como o pólen
De onde destila o tempo. Pelas vinhas
Sopra o Verão voraz, o cru cansaço.

Dos caminhos de sílica, dos fogos
De Outono, do calcário do teu ombro,
Nada resta. Enumeras as palavras,
Mas os dias apagaram-se p’ra ti.

Sombra na superfície das paredes,
Pelo chão derramada, sombra negra,
Tuas mãos o pão deixaram de alumiar.

No fulgor do horizonte, no caminho
Fumegante da vida, és terra, treva,
Ocaso doloroso, um fogo-fátuo…

2007

sábado, 18 de fevereiro de 2023

A questão colonial


A requalificação do Jardim da Praça do Império, de Lisboa, e, especificamente, os brasões das províncias ultramarinas em pedra abrem nova frente de conflito entre direita e esquerda. Não é indiferente dizer província ultramarina ou colónia. Esta linguagem dividia aqueles que apoiavam o regime e os que estavam na oposição, embora entre estes pudesse haver adeptos da colonização. A ideia de império colonial português atravessa tanto a Monarquia como a República e permanece no Estado Novo, reforçando-se com os conflitos coloniais dos anos sessenta e setenta. Salazar abandona a designação de colónias quando os ventos internacionais mudam e a colonização é vista como um atentado à liberdade e à dignidade dos povos colonizados. Portugal, na retórica de Salazar, era uma entidade una que ia do Minho a Timor.

Com o desencadear das guerras coloniais, a oposição, das várias cores, afastou-se do devaneio colonial. O problema é que parte significativa da intelligentsia e da militância da direita democrática e moderada vive na saudade simbólica desse devaneio artificioso que era o Portugal pluricontinental. Tem dificuldade em dizer guerra nas colónias e soletra guerra no ultramar. É uma saudade interessante, pois não acarreta riscos. Aos jovens de direita não se põe o problema de ir combater na guerra e os pais não têm de ver os filhos partir, ou se influentes, usar a influência para que o rapaz tenha uma tropa confortável, longe da frente de combate. Um dos principais problemas do nosso regime, que emerge sempre que se trata do passado, é a cumplicidade da direita portuguesa, ao contrário da italiana ou francesa, com a ditadura. Só o 25 de Abril a libertou e tornou democrática.

Uma democracia deve aprender a olhar para o seu passado com aquilo que teve de exaltante e de aviltante. Faz parte do exaltante o facto de Portugal ter sido um dos artesãos principais da primeira globalização e, desse modo, ter também preparado o mundo para os tempos modernos. Isso não pode tapar o facto de Portugal ter sido uma potência colonial, que esbracejou com outras potências coloniais europeias o domínio de territórios onde existiam pessoas que foram colonizadas e escravizadas. Era o espírito europeu da época, mas esse espírito era objectivamente errado, mesmo que os políticos da altura não o achassem. Era importante que os partidos democráticos, à esquerda e à direita, tivessem uma visão comum sobre a questão colonial, pois esta não é um problema apenas do passado. Toca as relações com os Povos Africanos de Língua Oficial Portuguesa, que terão pouca paciência para o negacionismo luso.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Simulacros e simulações (44)

Pier Luigi Lavagnino, Estate, 1963

O Estio é um rebanho de terras incendiadas pelo silêncio solar, a promessa de um fogo eterno, puro e resplandecente como um fruto acabado de amadurecer. Quem o olha de longe não sabe se vê uma simulação do inferno ou o símbolo da sabedoria que se eleva para guiar os mortais na escuridão.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Nocturnos 97

Brassaï, Le pilier du Métro Corvisart, 1934

A noite semeia sombras como secretos símbolos. Rasga as pedras brancas com a mancha da escuridão. Inventa estranhas personagens que povoam ruas e praças, figuras maiores do arquipélago selvagem dos sonhos, ilhas rodeadas pelo pélago da fantasia, lugar onde as estações do ano perdem o contorno e o tempo se funde na linha da obscuridade.

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Comentários (2)

Vincent Van Gogh, Roots and Tree Trunks, 1890

A raiz é um pássaro
voa pelo interior da terra
Jorge Gomes Miranda
 
O voo inexplicável das árvores é uma sombra que fende a poeira e, nas cavernas mais escuras, esconde-se dos olhos de fogo dos pássaros sem nome. É nesse território sem som nem luz que as florestas tomam o impulso que lhes anima o desejo do ambiente rarefeito dos céus. A raiz procura o fogo interior, o combustível que alimenta o voo em direcção à morada azul onde os deuses benfazejo aguardam o odor das suas folhas e a sombra onde repousarão dos trabalhos e dos dias que preenchem a sua vida divina.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Cardílio (24 sonetos) 4

Vila Cardílio

Cardílio a resgatada casa tua
É pela tarde um lago devastado.
Definharam as ervas, e os poços
Secaram. Já não tens nome nem pátria.

Se teus pés nestas pedras resvalaram,
Estão agora exaustos, tão cansados
de séculos voláteis, de anos idos,
de sonhos não cumpridos. Morto estás.

Que te vale a fendida mancha negra
Aberta na pesada pulsação,
Silenciosa na noite pura e vã?

Os escravos partiram, e as mulheres
Não sabem o teu nome. Adormeceste.
E sonâmbulo a morte te encontrou.

2007

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Cadernos do esquecimento 51 Não quebrar os contratos

George Platt Lynes, Lew Christiensen, William Dollar, and Daphne Vane
performing Orpheus and Eurydice,
1934
Há esquecimentos irremediáveis. O ânimo cede perante o punhal do desejo e o que era o horizonte de uma esperança torna-se a experiência da desilusão. Quando, por fim, se descobria no amor o caminho para remir da morte os que para ela tinham sido atirados, a falência da memória aniquila a jubilosa expectativa e deixa que o curso das coisas retome a norma traçada pela feroz necessidade, fechando para sempre a porta que separa os mortos do mundo dos vivos. Nunca os homens devem quebrar um contrato que graciosamente os deuses permitiram a celebração.