segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Nocturnos 123

David de Almeida, sem título, 1984 (Gulbenkian)

A noite desce do alto da sua loucura, paira abscôndita num lugar sem nome, treme na perturbação de vir à existência e entra pela porta do mundo, para trazer a fantasia da escuridão a quem definha no cansaço das coisas iluminadas ou entristece na cegueira trazida pelo tumulto de uma luz excessiva.

sábado, 19 de outubro de 2024

Ode ao vento

Paul Signac, Brisk Breeze from the North, 1985

No centro da terra, uma cobra conspira,

um buraco branco, uma respiração

suspensa na seiva das árvores.

Pela caligrafia, reconhecem-se os desígnios,

o vendaval da existência,

a dor surda soprada nos ouvidos,

os passos do homem sob a névoa da natividade.

 

Tinha os braços abertos ao vento.

A corola lavrada pelas mãos,

sacudida pelo ar, pelo rumor das sombras,

acesa na luz verde dos presságios.

Sobre a sua virtude crescia uma mulher,

olhava a brisa da noite, a madeira trespassada

na imobilidade da rocha,

no eco inocente inscrito na terra.

 

Pela doença respiratória vibra o mundo,

a convulsa iluminação das tardes de Outono,

cercadas de castanheiros,

os esparsos cabelos ao vento.

Um temporal tépido, uma tristeza de terra.

As vielas abandonadas, graves,

adormecidas no império do trigo ondulado,

a ceifa por fazer na minúcia aérea

da boca branca e calada.

 

É um cansaço na fronte, o portão

dobrado pelos batentes, um ruído

de plásticos pelos ares. Abandona-se

a chaga ao vento e pelo pólen das tardes

curva-se um rio, um empréstimo de células

abrasadas no vendaval sanguíneo do futuro.

 

1993

[Poema pertencente à série Cânticos da Terra Amarela]

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Imigração e escolaridade


Quando as pessoas, a reboque da demagogia irresponsável da extrema-direita, colocam o problema da imigração como um perigo para Portugal estão a entrar num caminho muito perigoso. Fechar as portas à imigração, para contentar os grupos extremistas, conduzirá a um problema dramático para a economia portuguesa e para a segurança social. As empresas precisam de trabalhadores que não encontram no país. Sem eles, não há geração de riqueza. Por outro lado, a segurança social, com o apoio a desempregados e doentes, também será posta em causa por falta de dinheiro que deveria provir de impostos sobre lucros e rendimentos do trabalho. Por fim, as próprias pensões de reforma estarão em perigo. As pensões futuras dependem em parte, cada vez mais significativa, dos descontos dos imigrantes.

Há, contudo, um problema ligado à integração daqueles que provêem de culturas estranhas ao mundo europeu, mesmo que falem português. Uma integração deficiente, como aconteceu em diversos países europeus, vai originar na segunda geração um problema de difícil resolução. A generalidade dos imigrantes económicos vem à procura de uma vida melhor para si e para os filhos. Não procuram problemas. Os portugueses sabem muito bem o que é isso. Ora, se os filhos não se integrarem, se sentirem diante deles um futuro sem esperança, podemos ter a certeza de que haverá problemas. A questão decisiva joga-se no processo de escolarização das crianças e jovens filhos de imigrantes. Um artigo do Público, noticiava que os filhos de pais estrangeiros reprovam três vezes mais do que os filhos de pais portugueses. E isto é um problema político de primeira grandeza.

Se os filhos dos imigrantes não encontrarem na escola portuguesa um caminho para uma vida realizada, se forem confinados a guetos tanto nas instituições escolares como na sociedade, então teremos no futuro problemas muito desagradáveis. As culturas de origem serão valorizadas e a nossa odiada como opressora, tal como acontece noutros países europeus. As direcções escolares e os professores precisam de ter uma consciência aguda do problema, mas isso não basta. É necessário que o Ministério de Educação aja em conformidade. O actual ministro, cuja acção tenho apreciado pela sua sensatez (até que enfim, alguém sensato), parece ter consciência do problema. Terá, porém, de tomar medidas substantivas de apoio e de avaliação do processo de integração. Sem amadorismo. Mas isso não basta. É necessário que os Municípios sejam também envolvidos no processo. São parte interessada. Na escola joga-se hoje a segurança e a paz públicas da comunidade de amanhã.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Comentários (23)

Roger Cook, R 15, 1964 (Gulbenkian)

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
Luiza Neto Jorge

A poética é uma pedagogia da queda e uma aprendizagem da natureza dos solos. Cair exige uma arte para que o corpo, ao tocar o chão, encontre o caminho para se erguer e reclama uma ciência dos solos para descortinar os propícios e aqueles onde nunca se deverá cair. Todo o poema é, então, o resultado de uma queda, a primeira, a mais funesta e a de consequências infinitamente gravosas. Escreve-se para que qualquer nova queda encontre uma terra macia e um solo fértil.

domingo, 13 de outubro de 2024

Eduardo de Noronha, O Conde de Villamediana


Publicado em dois volumes, no ano de 1938, O Conde de Villamediana é um romance histórico, que combina factos históricos e ficcionais. Representa uma prova de que a sombra do romantismo se prolongou, na literatura portuguesa, bem dentro do século XX. De certo modo, Almeida Garrett, com o Arco de Santana, e Alexandre Herculano, com Eurico, o Presbítero e O Monge de Cister, tiveram uma prolongada descendência, que nem o advento do Realismo e do Naturalismo, nem a chegada dos Modernismos, conseguiram pôr em causa, mesmo que a crítica e a universidade pouca atenção dêem a esse contínuo fluir, desde o século XIX, da narrativa histórica. O romance histórico nunca deixou de atrair escritores e leitores. É o caso de Eduardo de Noronha e das suas obras romanescas.

O Conde de Villamediana é uma figura histórica. Trata-se de Juan de Tassis y Peralta, segundo conde de Villamediana, que nasceu em Lisboa em 1582 (os pais acompanharam Filipe II (primeiro de Portugal) na viagem para Lisboa, quando assume a coroa de Portugal e permanece algum tempo no país.  Morreu, assassinado, em 1622, em Madrid. Foi um poeta do Barroco espanhol, ligado ao culteranismo, uma subcorrente do conceptismo, que interpretou de maneira bastante pessoal. Foi uma personalidade polémica, tanto pela sua inclinação para D. Juan como pela sua ousada sátira das elites castelhanas, as quais eram retratadas impiedosamente nos seus poemas. Isso valeu-lhe três exílios ainda no tempo de Filipe III (segundo de Portugal) e uma situação conflituosa com a nobreza espanhola no tempo de Filipe IV (terceiro de Portugal). As razões do seu assassinato nunca foram clarificadas e vão desde a vingança de nobres poderosos cansados da sua pena ou com as suas conquistas amorosas, do próprio rei, agastado com um eventual caso entre a rainha e o conde, até ao facto de estar implicado num processo de sodomia, no qual vários homens acabaram na fogueira, a que ele escapara. A figura deu origem a várias obras literárias em Espanha, tanto no século XIX como no XX.

Apesar da ligação do conde a Portugal ser fortuita, o nascimento devido a um acaso histórico e uma ou outra amante de origem portuguesa, Eduardo de Noronha utiliza-o para fazer um retrato da corte espanhola no tempo do último dos Filipes que governaram Portugal. A corte era um espaço de grande fausto e um lugar de ostentação, mas também o lugar de intriga política, de corrupção e de fomento da injustiça. Esta caracterização de um poder absoluto é o espaço ideal para fazer emergir um herói, sendo ele próprio um nobre e um dos grandes de Espanha, que desafia os poderes instituídos e as práticas políticas e sociais que giravam em torno desse poder. Um herói que é benevolente com os humilhados e intrépido perante os poderes instituídos. A narrativa é, assim, um exercício de denúncia de um poder político que oprimia a nação portuguesa, explorando eventuais contradições no seio da própria elite castelhana.

Outro elemento estrutural do romance de Eduardo de Noronha é a oposição, de inspiração romântica, entre o indivíduo e a colectividade, neste caso a aristocracia espanhola. Villamediana é uma excepção no meio de um grupo social, ou, para se ser mais preciso, uma casta. Mais do que um nobre, Juan de Tassis y Peralt é um indivíduo. Esta individualidade é sublinhada pela excepcionalidade, seja na poesia, seja no confronto, seja na sedução. A sua excepcionalidade manifesta-se também por não integrar o grupo de bajuladores nem pretender ao estatuto de protegido real. Afronta o poder não por uma causa social, mas por uma estética pessoal. Ora, é essa subjectividade radical que se torna perigosa para o Absolutismo, pois não representa um confronto, mas uma ameaça de dissolução. O absolutismo é possível onde os indivíduos estão subjugados aos imperativos da casta a que pertencem, seja à nobreza, ao clero ou ao terceiro-estado. Villamediana, tal como é concebido por Eduardo de Noronha, é uma anunciação do triunfo da subjectividade sobre a tradição e a cultura comum. É a afirmação do valor central da liberdade individual perante a ordem social marcada pela sujeição e subordinação. As aventuras e peripécias do conde são uma ruptura com a servidão voluntária com que os indivíduos se submetem ao estatuto do corpo social a que pertencem e ao arbítrio absoluto do supremo magistrado. De certo modo, Eduardo de Noronha transforma Villamediana num anunciador dos novos tempos.

Contudo, o autor não resiste em capturar o próprio herói numa das categorias mais tradicionais e conservadoras, a que está ligada à oposição entre o desejo carnal e um amor casto, de natureza platónica. O romance começa com o resgate por Villamediana de Lavínia, uma mulher pertencente às camadas populares, mas de grande beleza, das mãos do marido, que, continuamente, a maltratava. Entre o conde e a mulher resgatada nasce uma relação que se tornará arquetípica no decorrer da narrativa. Villamediana deseja-a, mas ela, amando-o, recusa qualquer tipo de comércio sexual. O seu amor é puro e contemplativo e é este amor idealizado que se torna o critério de avaliação das relações que o herói entretece com outras mulheres e, eventualmente, com a rainha. O desejo do corpo e a entrega erótica surgem como uma sombra perante a luminosidade de um intenso amor espiritualizado e casto, que é ao mesmo tempo uma fonte de frustração do desejo do amante. O romance é assim percorrido por uma dupla tensão. A primeira, a que opõe a indivíduo ao organismo social. A segunda, a que opõe eros e ágape, a paixão erótica e o amor espiritual.

A obra está concebida, apesar de não poucas vezes estar estruturada segundo o cânone de romance de aventuras, como uma tragédia. Juan de Tassis y Peralta é um herói trágico que caminha para a sua perda com a cegueira de todos os heróis das tragédias clássicas. De onde vem essa cegueira? O que lhe oculta o destino que espera por ele? Nos heróis gregos, a perda acontece devido à húbris, à desmedida. Tomado pela húbris, o herói ultrapassa a sua medida, o que se manifesta na presunção e arrogância perante os deuses. Ora, Villamediana desafia os deuses terrestres e eles conluiam-se para a sua perda. Onde se manifestam presunção e arrogância em Juan de Tassis y Peralta? Tanto na afirmação da individualidade contra o senso comum e o conformismo social, como no desregramento erótico. A morte do herói acaba por lançar um véu conservador naquilo que foi mostrado como redentor e socialmente inovador. A afirmação do self e o culto de Eros têm um preço e esse preço é a morte.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

David Hume, Que a política pode ser transformada em ciência


“Que a política pode ser transformada em ciência” é um pequeno ensaio de apenas doze páginas na tradução portuguesa. Faz parte de uma obra que colige diversos ensaios, publicada em 1758. Em português recebeu o título de Ensaios Morais, Políticos e Literários. A tese de Hume não é que a acção política possa ser transformada numa disciplina científica, onde o agente político tenha uma evidência comparável à do cientista tanto nas suas decisões quanto nas suas acções e respectivas consequências. A cientificidade é entendida no ensaio como uma certa capacidade de deduzir as consequências a partir do se poderia chamar princípios axiomáticos, embora o filósofo escocês não utilize esta linguagem. Ele parece responder a uma pergunta que, na altura, estaria a atormentar diversos pensadores políticos. Perguntavam-se eles se não seria a boa ou má administração (governação) que faria de um regime político bom ou mau e não a própria forma de regime (a sua natureza plasmada numa constituição).

Hume responde peremptoriamente que a questão da boa ou da má governação não é, em última análise, relevante. Contudo, tem necessidade de fazer uma separação entre regimes absolutos e regimes republicanos e livres. Em regimes absolutos, onde há uma concentração do poder, por exemplo na figura de um monarca, a qualidade da governação e os efeitos no bem público derivam da administração, isto é, da qualidade daquele que ocupa o poder. Numa monarquia hereditária absoluta, a boa governação dependeria do acaso. Contudo, para Hume, o mesmo não se deverá passar numa república livre. Se acontece uma má governação neste tipo de regime, isso dever-se-á à própria constituição que não foi concebida de forma competente e honesta. Toda a boa constituição tem o dever de prever os desvios à boa governação e estar de tal modo organizada que leve mesmo aquele que é mau a governar a favor do bem público.

Onde se insere a questão da cientificidade da política? Na capacidade que há de deduzir os efeitos tanto para o presente como para o futuro a partir das normas e instituições que regem uma comunidade política, as quais funcionam como causa. O carácter do governante é irrelevante. Se as normas e as instituições forem boas, ele será coagido a governar para o bem comum. Caso não o sejam, o futuro do regime será a anarquia, a que se seguirá a tirania. É por isso que a herança mais valiosa que se pode deixar para o futuro é uma sábia legislação, aquela que permite a boa governação, independentemente do carácter do governante. Em plena época de afirmação do individualismo, David Hume propõe um caminho alternativo. A questão central está na qualidade das leis e das instituições e não no carácter e educação tanto do governante quanto dos governados. São estas que podem ser a causa ou da felicidade ou da infelicidade de um povo.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

A planície sinuosa (iii)

Bernardo Marques, Campo - Alentejo (Gulbenkian)

Terra amarela, suja de sangue e poeira,

cariada nos interstícios dos campos.

O verde dos sobreiros,

a cortiça devorada pela água do dia.

Avistam-se rios de alcatrão.

Degolam o silêncio da planície,

o trémulo cantar das aves.

 

Sonhava vestir de cotim cinzento

e cavalgar pelos campos,

cheirar o aroma das horas,

ouvir a dor inscrita na espádua ferida.

Quão perto me aproximei,

com olhos puídos de luz,

da substância da terra,

do segredo na raiz do mundo?

 

A planície era página em branco

aberta à caligrafia do lavrador,

ao ronco hostil da máquina.

Escrita nua, indecifrável,

um código invertido na sombra do céu,

um labor arcaico ferido pela noite,

um rosto aberto ao sopro da morte.

 

Os olhos do viajante são portas

abertas ao amarelo da campina,

às mulheres ensanguentadas pela sombra.

A planície clama pela cinza do Outono,

o chão devora as cearas

e o segredo da mão que escreve

abre-se na terra amarela, suja de saibro,

ao temor da noite na fímbria da aurora.

 

1993

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Simulacros e simulações (67)

Gabriela Albergaria, To turn around 43 (f), 2001 (Gulbenkian)
Talvez se simule uma floresta em fogo ou se interprete a tempestade que emerge da noite escura do espírito. Ou então é um sinal deixado ao viandante para que saiba que ali haverá uma lareira a arder, no cume da montanha, nos dias frios e nas noite invernosas. Ou então não é mais que o simulacro de uma vida consumida pelo incêndio das horas.

sábado, 5 de outubro de 2024

Literatura e política

Recorre-se, não poucas vezes, à ideia de que a educação de um povo será uma garantia contra as tentações totalitárias. Esta ideia parece ser corroborada pelo facto de parte significativa do eleitorado da direita radical e da extrema-direita se encontrar entre pessoas com menor habilitação escolar. No entanto, o nazismo afirmou-se e chegou ao poder num dos países mais cultos da época, aquele que produziu os grandes teóricos do espírito crítico, como Immanuel Kant. Mais do que isso, se observarmos o mundo intelectual do século passado, descobrimos que parte significativa da intelectualidade esteve comprometida com soluções políticas inimigas da liberdade. Os intelectuais que se mantiveram fiéis a um espírito de liberdade foram, não poucas vezes, objecto de desprezo.

A crença salvífica na educação deve assim ser mitigada. Contudo, é plausível pensar que um povo mais instruído terá mais capacidade para descodificar os perigos que se escondem nos discursos radicais. As Humanidades – a Literatura, a História e a Filosofia – poderão ter um importante papel na formação de cidadãos menos permeáveis ao radicalismo político. Veja-se o papel da Literatura, nomeadamente do romance. Muitas vezes, na educação escolar, os textos literários são entendidos pelos alunos como uma matéria entre outras, cuja finalidade é fornecer informação para a sua avaliação. Ora, a Literatura e, em particular, o Romance é muito mais do que isso. Se as novas gerações aprenderem a ler romances, se descobrirem o prazer de seguir uma trama narrativa com as suas peripécias, estão a submeter-se a uma educação que os leva a descobrir e a conviver com mundos diferentes, que as obras trazem em si para o prazer e a descoberta dos leitores.

Ainda mais importante é a possibilidade que o romance fornece ao leitor para se tornar outro, ao seguir as peripécias das personagens romanescas. As personagens de um romance são modelos existenciais que nos fazem pensar e permitem descobrir a pluralidade dos modos de vida, a pluralidade das crenças e a pluralidade de pontos de vista moral. Uma boa educação literária é um caminho para entender os limites dos seres humanos, para compreender a insensatez que é querer submeter todas as pessoas a uma única crença política, para discernir a diferença entre os seres humanos e, assim, valorizar a pluralidade existencial. A educação literária não é uma educação política, mas deve ser um importante, embora não decisivo, modo para educar as novas gerações para a pluralidade, a qual está na base do pluralismo político e de regimes políticos democráticos.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Beatitudes (73) Memória e imaginação

Júlio Resende, sem título, 1948

A neblina dos dias passado cristaliza-se em imagens difusas, onde o que se viu renasce em memórias carregadas de uma estranha beatitude, aquela que nasce do que se recorda em suave conúbio com o que se inventa e contempla como se tivesse acontecido.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Defender a democracia


O tempo que se vive tem um enorme poder para lançar um véu sobre a realidade de tal modo que os homens ficam incapazes de a descortinar. Nos finais do século XX, havia uma convicção generalizada, pelo menos no Ocidente, de que a questão do melhor regime político estava resolvida. O melhor regime estaria fundado na soberania popular, estruturado em Estado de Direito, onde todos se submetem de igual modo à mesma lei, e teria a forma de uma democracia liberal. Esta democracia era o futuro de qualquer povo, embora a velocidades diferentes, devido à diversidade dos graus de desenvolvimento económico. Este seria um passaporte para a transição de regimes autoritários para regimes liberais.

Havia sinais de que esta crença poderia ser ilusória. A revolução iraniana de 1979 derrubou uma monarquia autocrática e substituiu-a por um regime teocrático, muito longe daquilo que os ocidentais consideravam o melhor regime. Outro exemplo é o da modernização, por Deng Xiao Ping, da China pós-maoista. Teve um resultado espantoso, mas não aproximou a China um milímetro que fosse de um regime político que os ocidentais considerassem como o bom regime político. Estes dois exemplos, de uma luz cintilante, não foram lidos devidamente neste lado do planeta, onde se vivia ainda a grande bebedeira gerada pela queda do comunismo e a transição da generalidade dos países sob tutela soviética para democracias liberais. Hoje, quando se olha para o que se passa na Ucrânia, pode-se pensar que os ocidentais tinham entrado em coma alcoólico.

As crenças ocidentais sobre o melhor regime estão a ser desafiadas uma a uma. As democracias liberais enfraquecem, tornando-se iliberais ou mesmo estados autoritários. O Estado de Direito está a ser posto em causa mesmo em alguns países da União Europeia (UE). Nessa mesma UE, os eleitorados abraçam cada vez mais soluções antiliberais e actores políticos desdenhosos do Estado de Direito. Por fim, a própria noção de soberania popular, herdada das teorias contratualistas modernas e da vontade geral de Rousseau, fundamento último dos nossos regimes, está a ser desafiada do ponto de vista intelectual por teóricos ligados à direita radical e à extrema-direita. Aquilo que considerámos o bom regime político, cuja fundamentação não precisaria de defesa, deixou de ser claro para muitos eleitores. Vivemos num tempo em que se tornou essencial tornar a mostrar por que razão “a democracia é o pior dos regimes, exceptuando todos os outros”, para citar uma frase atribuída a Churchill e que talvez ele nunca tenha proferido.

domingo, 29 de setembro de 2024

A planície sinuosa (ii)

Salvador Tuset, Alquería del Pí, 1937

Urge quebrar a planície

pela linha cintilante,

pelo remo amarelo

mergulhado na volúpia,

o esplêndido fulgor

da seda branca, cerzida

no ciciar leve das ervas,

o destino de Março.

 

Um campo, um coração

de frutos azedos, sábio

como as raparigas sós,

presas nas tardes antigas,

no cansaço repartido

entre serões indolentes,

o suor frio entre pernas,

o esmalte do silêncio.

 

Conquistava um mar

de figueiras, erva rala

pulsando no coração,

na viagem esperada

ao litoral esquecido,

à embarcação moldada

no pó desfeito, nas pedras

vermelhas da amargura.

 

Uma doença, o lamento

na labareda da noite,

na crueldade cinzenta,

no muro incendiado

pelo nome do restolho.

A letra verde na face,

a chuva de Julho,

o sol e a sombra da voz.

 

A planície de palavras

é uma janela de água,

aberta, vagarosa,

debruçada no relâmpago

exausto pela lavoura

escassa do sentimento.

Exaltado, o fruto declina

no sumo o fragor da vida.


1993

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]




sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Yukio Mishima, O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar

Publicado, no Japão, em 1963, o romance O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar, insere-se na cruzada do autor, Yukio Mishima, contra o Japão moderno nascido da derrota na segunda Guerra Mundial e da ocupação do país pelas tropas aliadas, encabeçadas pelas dos Estados Unidos, ocupação que durou entre a rendição dos japoneses em 1945 e 1952. Essa rendição e essa ocupação militar foram, para o Japão, muito mais do que um acontecimento político e militar. Representaram a transição do país de um mundo tradicional, estruturado em torno do Imperador e dos valores da aristocracia guerreira, para o mundo moderno, onde esses valores aristocráticos do heroísmo e da honra são substituídos pelos valores burgueses do mundo dos negócios e do conformismo social. É este novo mundo – o qual, aos olhos dos ocidentais, mas também de grande parte dos japoneses, teve um êxito assinalável, transformando o Japão numa potência económica de primeira grandeza – que Mishima descreve e julga cruamente, apesar de uma linguagem poética de grande riqueza, no romance de 1963.

O enredo gira em torno de três personagens. Noboru, um adolescente de 13 anos, Fusako, uma jovem viúva e mãe de Noboru, e Ryuji, um marinheiro mercante com quem Fusako estabelece uma relação amorosa. Estas personagens não são meras representações singulares, mas funcionam, na economia do romance de Mishima, como autênticos arquétipos de atitudes sociais presentes na sociedade japonesa da época. Ryuji representa o homem com valores tradicionais que, até certa altura, aspira a um grande feito heróico, no qual encontraria o sentido da sua existência de homem solitário que atravessa os mares. Fusako, dona de uma boutique de luxo, herdada do marido, representa a mulher moderna, forte e independente, um modelo do espírito burguês triunfante, ao mesmo tempo competente nos negócios e tocada pela sentimentalidade afectiva, também ela marcadamente burguesa. Em Noboru, por seu turno, simboliza-se uma nova geração brilhante e cruel, destituída da vulnerabilidade do sentimento e cultora de uma visão distorcida da realidade. Assume os valores tradicionais do heroísmo, mas já sem o suporte da sociedade tradicional que lhes dava sentido, o que a conduz a uma visão niilista do mundo.

O estatuto de Ryuji é marcado por uma equivocidade inicial que será o fundamento do desenvolvimento da personagem ao longo do romance. Ryuji, ele que é um homem do mar, habituado à solidão das viagens marítimas, aspira a um grande gesto, a um acto heróico que dê sentido à sua existência. Contudo, a oportunidade desse gesto decisivo nunca lhe aparece disponível no horizonte existencial. Na verdade, ele não é um marinheiro militar em tempo de guerra, onde poderia haver lugar para a coragem e a heroicidade, mas um marinheiro mercante, um agente do mundo burguês cuja função é o prosaico transporte de mercadorias e não a realização de qualquer acto que o sublinhe como homem de honra e o nobilite aos seus próprios olhos. O encontro com Fusako funciona como um revelador da inadequação do seu projecto existencial. Nasce em si o desejo de trocar a vida no mar pela vida mais segura em terra, a integração numa família burguesa. Esta transição de um espírito heróico para um espírito conformista e burguês não deve ser lido apenas como uma metamorfose subjectiva de Ryuji, mas como o sintoma de que esse mundo da honra e da glória fundada na heroicidade já não existia. A frustração de Ryuji com o seu destino e a desistência da heroicidade é o resultado de uma transformação na ordem social, marcada pela decadência e morte dos valores aristocráticos e a vitória, dinamizada pela presença americana, dos valores burgueses, que são também, aos olhos de Yukio Mishima, valores femininos.

Fusako, a bela viúva, é aquela que vai dinamizar no marinheiro a tomada de consciência da real situação em que vive. A atracção que ela sobre ele exerce é também o apelo que a terra, enquanto símbolo de uma vida tranquila e sólida, lhe começa a dirigir. Ela é o símbolo de uma nova sociedade. Independente e cheia de sucesso profissional, mas também uma mulher em busca da dimensão afectiva, onde os sentimentos são reconhecidos e precisam de espaço existencial para se manifestarem. Esta dupla vertente de Fusako – a competência empresarial e a sentimentalidade feminina ou uma certa vulnerabilidade emocional – são também um retrato, na perspectiva tradicionalista de Mishima, do mundo burguês vitorioso no Japão. Fusako, também ela, não é apenas o retrato de uma mulher singular, mas a radiografia da sociedade burguesa do pós-guerra. Ela é a manifestação plena dos novos valores, os quais, depreende-se da leitura do romance, representam uma queda. Do Japão heróico, da sociedade onde o risco de vida e o sentido da honra dão uma orientação pelo menos à elite aristocrática, passa-se a uma sociedade que procura a estabilidade sempre necessária ao mundo dos negócios.

A personagem central do romance é, contudo, Noboru, o filho de Fusako. Ele, juntamente com os seus amigos, representa a nova geração que não se reconhece no mundo burguês e sentimental de Fusako e já não possui o respaldo de uma tradição heróica que lhe dê uma orientação. Noboru e os seus amigos são retratados, do ponto de vista intelectual, com extremamente precoces, mas emocionalmente frios, destituídos de qualquer tipo de sentimentalidade convencional, capazes da mais pura crueldade. Noboru e os amigos representam os velhos valores, mas sem o espaço onde estes poderiam ser exercidos, o que os torna violentos, com uma enorme vontade de poder e controlo dos outros. A princípio Noboru entusiasma-se com a presença do marinheiro, vê nele o homem autêntico que vive no mar, o símbolo de uma liberdade absoluta e dos grandes perigos. No entanto, a relação afectiva de Ryuji com a sua mãe, assim como a equação de deixar a vida no mar e trocá-la por uma vida estável e de conforto, invertem a visão de Noboru sobre o marinheiro. É visto, tanto por ele como pelos seus amigos, como um traidor que deve ser punido com a pena que espera todos os traidores.

Yukio Mishima serve-se de uma prosa poética com grande poder evocativo para tomar posição sobre o mundo em que vive. Um mundo onde se dá uma desprezível vitória do feminino – e é assim que Norobu vê a mãe, como alguém desprezível por ceder à dimensão sentimental – sobre um outro mundo fundado nos valores aristocráticos da honra e do heroísmo. O pior e o mais digno de punição é aquele que pertencendo à velha ordem cede à nova e se acomoda nela, como é o caso do marinheiro. Aqueles que conhecem os valores tradicionais e que um dia aspiraram à honra dos grandes feitos e agora se acomodam são traidores. Mishima, apesar desta visão crítica do novo Japão, não alimenta, no romance, qualquer expectativa de um retorno. A nova geração, mesmo que tocada pelo desprezo da moral convencional e do estilo de vida burguês, centra-se numa visão distorcida da realidade e da própria tradição. Almeja uma liberdade absoluta, assente na pura crueldade e na ausência de quaisquer outros valores, que não conduzirá a mais nada do que a uma violência sem sentido.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Lobos e homens

Charles M. Russell, Roping a Wolf, 1904

O estatuto de conservação do lobo vai sofrer, na União Europeia, uma diminuição de grau. Vai passar de espécie estritamente protegida para espécie protegida. Cai o estritamente. Isto acontece, segundo notícia do Público, por influência do lobby agrícola. No comunicado da associação que representa os agricultores de diversos países, incluindo Portugal, lê-se: Chegou a altura de introduzir as alterações correctas para garantir que esta população (a dos lobos) seja gerida. A afirmação, com outras, faz parte da retórica usada no conflito com as associações ambientalistas. Contudo, é mais do que isso, pois esse conflito entre agricultores e ambientalistas assenta numa visão também ela conflitual da Terra. 

Tendencialmente, os ambientalistas, ou parte deles, vêem as espécies num jogo de equilíbrios e de harmonização na ocupação da Terra, onde a humana não terá qualquer prerrogativa. O animal racional é um animal entre outros e deve cingir-se a esse estatuto. Ora, A ideia de gestão introduzida no comunicado do lobby agrícola diz-nos uma outra coisa. O homem é o gestor da Terra. Deve geri-la segundo os interesses do accionista - isto é, do próprio homem - e todas as espécies devem estar sob estrita gestão do homem. É a própria razão que impele o homem ao domínio gestionário da Terra, numa racionalização de recursos, segundo os seus interesses. Imaginar que a espécie humana, em algum momento, vai abdicar desta sua vantagem competitiva em relação às outras espécies é enganar-se acerca de quem é o homem.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Ensaio sobre a luz (122)

Fernando Calhau, sem título #634, 1965 (Gulbenkian)

A combustão interior das trevas torna-se em incêndio luminoso, uma luz que se propaga pela vastidão do mundo, descobrindo montanhas e florestas, o perigo dos oceanos, a brancura das neves, a planura das campinas e, como uma memória dilatada pelo exercício, o júbilo ocioso das cidades.

sábado, 21 de setembro de 2024

A dimensão intelectual da extrema-direita

Quando se avalia o crescimento da extrema-direita, raramente se dá atenção à dimensão cultural. Esta é rasurada de imediato pois considera-se que quem apoia o populismo radical é, por natureza, inculto, crente em teorias da conspiração e se, por um acaso improvável, consegue distinguir o verdadeiro do falso, é para escolher o falso e escarnecer o verdadeiro. Tudo isso se sintetiza nas palavras de Hilary Clinton, na corrida presidencial de 2016, quando afirmou que metade dos apoiantes de Donald Trump eram deploráveis. Esta visão das forças de extrema-direita, mesmo que muitos dos seus apoiantes tenham crenças deploráveis e níveis culturais baixíssimos, esconde uma outra realidade que tanto liberais como socialistas ignoram ou não sabem lidar com ela.

Nas últimas décadas, emergiu com alguma força, a vários níveis institucionais, um grupo significativo de intelectuais de extrema-direita, que desenvolvem um trabalho sistemático no âmbito das artes, da História, das ciências sociais e da Filosofia, trabalho que alimenta as guerras culturais que a militância leva a efeito, muitas vezes pela boca de agentes políticos ignorantes, contra a cultura influenciada pela esquerda e pelas elites liberais. Existe uma recuperação intelectual dos pensadores da contra-revolução francesa como Joseph de Maistre e Louis de Bonald, do ultraconservador Donoso Cortés, assim como do importante filósofo político alemão Carl Schmitt, um autor pelo menos tão comprometido com o nazismo quanto Martin Heidegger, assim como de Oswald Spengler, do romancista Ernst Jünger ou do poeta Stephan George.

Este movimento intelectual defende a importância tanto dos preconceitos como da discriminação e, acima de tudo, visa desconstruir duas ideias centrais provenientes do Iluminismo e da Revolução Francesa. Em primeiro lugar, a ideia de igualdade. Não se trata de um ataque a uma concepção ingénua de igualitarismo, mas de um ataque sofisticado à ideia de que todos somos iguais perante a lei, a igualdade básica nascida da laicização da ideia cristã de igualdade perante Deus. Esta desconstrução da importância da igualdade perante a lei, um assalto às crenças da esquerda e da direita liberal, é um passo para a desconstrução de uma outra ideia fundamental, a da liberdade. Se não somos todos iguais, como justificar que todos tenhamos as mesmas liberdades? Quando se observa o comportamento da militância raramente se compreende que por detrás existe um pensamento conceptualmente estruturado e que trabalha para implodir duas das nossas crenças sociais e políticas mais fundamentais.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

A planície sinuosa (i)

Jorge Martins, sem título, 1961 (Gulbenkian)

Insinua-se uma árvore no limiar da linguagem,

um esforço exacto na tremura do horizonte.

A casa sob as folhas é uma fonte de pontos

e linhas, uma arquitectura lábil,

o nascimento do silêncio na poeira da planície.

 

Da cruz dilacerada pelos ventos,

germinam pontos cardeais,

vozes no fundo da vinha,

luas prisioneiras do vento entre ramos.

 

Se o rosto se cerra na areia das mãos,

insectos crepitam na escuridão das órbitas,

no mundo proscrito, a seda póstuma da tarde.

 

A planície desfolha-se em navios,

nuvens de cinza sobre os lados do Ocidente.

A rapariga traz água pelo cântaro,

a distância insinuada na sombra das searas.

É uma rapariga aberta à luz, a túnica pelo chão.

 

Os homens sentam-se na madeira da memória,

pensam na rapariga perdida na espuma da paisagem,

um travo de cerveja tecido no lúpulo do olhar.


Nenhuma espiga oscila na pedra do desejo,

na praia coberta de veludo.

Nos olhos dos homens, nascem planícies

onde raparigas desaparecem na luz do dia.

 

1993

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]


terça-feira, 17 de setembro de 2024

Julien Green, Moïra


Julien Green (1900-1998) foi um escritor norte-americano de expressão francesa. Converteu-se em 1916, após a morte da mãe, de orientação protestante, ao catolicismo. A sua temática romanesca está ligada às grandes questões colocadas pela fé. O romance de 1950 Moïra não foge a esse interesse central do autor. O protagonista, Joseph Day, é um jovem recém-entrado na Universidade, vindo de um mundo rural, educado num estrito espírito protestante, onde o pecado, a culpa e a necessidade de redenção têm um papel central na existência do crente. A obra é dinamizada pelo conflito entre natureza e fé. Deslocado do ambiente protegido da ruralidade e da obediência quase cega à tradição, vê-se confrontado com um ambiente que está muito longe daquele onde se sente em casa, um ambiente em que os valores religiosos parecem ter pouco sentido. É neste universo estranho e adverso que o conflito entre a natureza, a sua natureza, e a fé, aquela que o move e dá sentido à sua existência, se desencadeia.

A estratégia narrativa de Green é marcada por uma deslocação da personagem central, Joseph Day, de um mundo para outro. É nesse outro mundo, muito diferente daquele onde viveu a infância e adolescência, no qual recebeu os valores que o orientam e formou as suas crenças religiosas e sociais, que aquilo que ele é vai ser posto à prova. Na economia romanesca, a universidade, a grande cidade e mesmo a casa onde se vai hospedar, e onde se hospedam outros estudantes, são espaços que representam, cada um à sua maneira, provações existenciais, partes de um universo onde ele se sente como um estranho, pois nesses lugares a cultura, os valores e as crenças são completamente diferentes dos seus. Há, na construção romanesca de Green, um exercício experimental que tem por finalidade descobrir como é que um jovem protestante, ancorado naquilo a que hoje se chamaria fundamentalismo religioso, se comporta num espaço completamente distinto daquele de onde veio e no qual adquiriu e consolidou a fé. Na verdade, é um exercício onde um Green maduro, na casa dos cinquenta anos, interroga o que poderia ter sido caso permanecesse protestante.

Como se irá comportar a natureza de Joseph Day quando deslocada do espaço onde a fé se gerou e que, pela própria estrutura social, a protegia? Esta natureza é, claro, o corpo e neste, para além e acima da força física, o sexo. É a sexualidade a mola dinamizadora da acção narrativa. Melhor é o conflito entre a libido, as pulsões sexuais, e um desejo de pureza sentido como caminho de redenção, de conquista do paraíso, de salvação da alma. O romance organiza-se através de um conflito entre dois desejos, o que impele o corpo para outro corpo e o que impele a alma para outra dimensão. O conflito nasce da incompatibilidade que as grandes religiões monoteístas determinam entre a consumação de ambos os desejos. O desejo de imortalidade impõe a repressão do desejo sexual. A consumação do desejo sexual arrasta a perdição da imortalidade.

O romance apresenta um conjunto de conflitos e alianças secundários, cuja finalidade é testar e preparar Joseph Day para o encontro com o destino. E o destino é Moïra, a filha adoptiva da senhoria, que se encontra, do ponto de vista religioso e moral, num lado completamente oposto ao de Day. Julien Green tece, com esta personagem, uma complexa trama de simbolizações que se sobrepõem e intensificam. Moïra é, como o autor referiu, um nome irlandês, o equivalente a Maria. Contudo, no romance, Moïra é uma Eva tentadora. Enquanto na tradição do cristianismo Maria é uma segunda Eva, mas uma Eva reparadora, a Maria (Moïra) do romance representa uma regressão a essa Eva primitiva que tentou Adão e com ele se perdeu. A ambiguidade da personagem é interessante, pois era possível que essa Moïra que tenta Joseph Day e o perde, perdendo-se com ele, fosse também ela reparadora, integrando-o num mundo estranho, cujas regras ele desconhecia e temia. Contudo, a ambiguidade de Moïra é mais ampla, pois, na mitologia grega, Moïra representava o destino, representava uma lei que nem os homens nem os deuses podiam transgredir e aos se deveriam submeter. E Moïra foi, de facto, o destino de Day.

No entanto, essa Moïra que o tenta, que lhe desperta a libido, que o ameaça arrastar para a perdição, não é mais do que uma projecção da sua própria natureza reprimida e recalcada na sexualidade. Nessa rapariga que o atrai condensa-se aquilo que ele é, um homem dotado de sexualidade e que, na verdade, não é capaz de compatibilizar a violência da libido desencadeada pelo objecto sexual e a violência repressiva trazida pela fé, pelos códigos de conduta que, segundo a instituição religiosa, asseguram o paraíso eterno. Como acontece numa guerra civil, também o resultado do conflito interior que se acendeu em Joseph Day, ao ser deslocado do seu espaço natural para um espaço adverso, é a destruição que, curiosamente, como também acontece após tremendas guerras civis, pode abrir ainda um caminho para uma redenção, uma outra redenção, um outro destino.

domingo, 15 de setembro de 2024

Nocturnos 122

Henry Moore, 14. Moonlight Fall, 1973 (Gulbenkian)

Quase cegos, os deuses da noite suplicam por luz. Então, a Lua derrama os raios que, como um Prometeu astral, roubou ao Sol e derrama-os por campos e cidades, para que essas divindades nocturnas não se deixem tomar pelo desespero e não enlouqueçam os sonhos dos homens.

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Um universo mental perturbante

Imagem daqui

Não é perturbante que um dos argumentos mais sonoros de Donald Trump seja a de os imigrantes andarem a comer animais de estimação. Cães, gatos e, agora, gansos (aqui). No fundo, isso está de acordo com o seu universo mental. Perturbante é que isso não leve a uma debandada radical dos seus apoiantes. Há um povo trumpiano disponível para crer seja no que for que venha do seu candidato. Mesmo quando há deserções do campo republicano, como a do Procurador-Geral Alberto Gonzales, conselheiro presidencial do republicano George W. Bush no primeiro mandato deste, essas situam-se nas elites do partido e em pessoas que percebem claramente que Trump é uma ameaça ao Estado de direito (aqui). O Estado de direito, uma das grandes conquistas civilizatórias do Ocidente, não é coisa que mobilize os eleitores republicanos para a sua defesa. O que os preocupa mesmo é que, para além de cães e gatos, também os gansos estejam na mira de imigrantes haitianos. Não tarda, ainda comerão vacas, porcos, galinhas e patos.