Hans Winkelmann, Einsame Strasse, 1903 |
Kyrie Eleison
domingo, 8 de dezembro de 2024
Beatitudes (75) O caminho solitário
sexta-feira, 6 de dezembro de 2024
Um militar, outra vez?
A segunda observação prende-se com o actual regime político. A transição à democracia, em Abril de 1974, deve-se a parte das forças armadas, mas o regime só se tornou plenamente democrático quando os militares recolheram aos quartéis e o Conselho da Revolução foi extinto, pondo-se fim a uma tutela inaceitável sobre as instituições políticas. O primeiro Presidente eleito ainda foi um militar, mas a sua eleição está ligada aos acontecimentos da época e não deixou de ser problemática. Normalizada a vida em democracia, nunca mais um militar desempenhou um cargo de relevo na vida política. Uma eventual eleição de Gouveia e Melo – e, tendo em conta o país que somos, tem francas possibilidades de vencer – representará um retrocesso de quase 50 anos.
O que me
atormenta pode-se traduzir nas seguintes questões: Que pretende um homem de
acção, sem experiência política, ao aspirar a um cargo onde as questões
fundamentais estão fora do seu alcance? Que pretende um homem habituado a
comandar e a ser obedecido ao assumir um cargo onde o seu poder de imposição se
limita ao que a lei prescreve? Como não será de crer que o Almirante pense
fazer da Presidência da República o lugar para gozar a reforma de militar,
estas questões são cruciais. Corremos o risco de instalar em Belém um factor de
perturbação das instituições democráticas. É preciso recordar que o General
Ramalho Eanes, com um projecto de poder pessoal, foi, a partir de certa altura,
causa de grande perturbação político-institucional. De tal maneira que tanto
Mário Soares como Sá Carneiro e Freitas do Amaral retiraram-lhe o apoio. Ora se
Gouveia e Melo não tem um projecto de poder pessoal, por que razão se candidatará?
quarta-feira, 4 de dezembro de 2024
Simulacros e simulações (69)
Fernando Calhau, sem título #630, 1980 (Gulbenkian) |
segunda-feira, 2 de dezembro de 2024
Admirável mundo novo
O poder de contaminação da primeira potência mundial é tal que todos devemos temer pelos regimes democráticos europeus. A equipa que vai chegar em 2025 à Casa Branca não é a mesma que Donald Trump levou em 2016 e ele também não é o mesmo. Ele e os que o rodeiam não vão apenas querer exportar mercadorias, mas também ideologia. Vão querer influenciar os países europeus e se possível livrarem-se das elites políticas democráticas. O que aconteceu nos EUA é um poderoso propulsor para a extrema-direita europeia, a qual governa já a Itália, a Hungria, integra o governo dos Países Baixos e, apesar de estar fora do governo, o FPO, partido austríaco de extrema-direita, foi, nas últimas eleições, o partido mais votado. Os principais partidos de extrema-direita em França e na Alemanha estão consolidados e poderão em breve tornar-se decisivos.
Qual é o
principal bem que uma democracia fornece a cada cidadão? O principal bem é a
sua individualidade, o respeito pela pessoa, pelo seu direito a ter opinião,
seguir os seus projectos pessoais, deslocar-se por onde entender. A democracia
dá-lhe o maior dos bens: o direito à singularidade. Exige-lhe, em
contrapartida, que respeite igual bem de todos os outros. Ora, o que os regimes
tirânicos, sejam eles mais ou menos ferozes, roubam, em primeiro lugar, a cada
um é essa singularidade. A destruição do indivíduo é o seu objectivo. Tornar a
pessoa numa mera célula de um tecido social manipulado e orquestrado por
aqueles que têm o poder. Querem dizer-nos como devemos pensar, o que devemos
dizer e o que temos de calar, o que devemos fazer e como devemos agir. Ora, com
a evolução tecnológica a que assistimos, um poder tirânico facilmente
controlará cada passo da nossa vida e terá capacidade ilimitada para nos
destruir enquanto indivíduos. Temo pelos meus netos nesse admirável mundo novo.
sábado, 30 de novembro de 2024
Invocação ao Sol (1)
José Dominguez Alvarez, sem título (Rua ao Sol), 1930 (Gulbenkian) |
Treme
um homem glabro
na
luz violácea da doença,
uma
agonia irreparável,
a
ânfora solar no lento sorver
do
suor pelo lenço.
É
um homem nocturno,
dizimado
pela fuligem,
carcomido
pelo caruncho,
esventrado
pela navalha romba
roubada
ao vício da noite.
Quis
amputar da vida a morte.
O
sol semeou-lhe palha
no
éter do caminho,
um
feno rasteiro sobre a pele,
o
cardume de silvas nas mãos.
Arranca
do peito o vazio
sem
fundo, mobiliza em palavras
redemoinhos
de erva.
A
ânfora solar derrama a dor,
o
pesado bastão na vagem da vida.
(1993)
[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]
quinta-feira, 28 de novembro de 2024
Ensaio sobre a luz (124)
Henry Ravell, Church at Churubusco, 1908 |
Retirada da sombra, uma Igreja vinda do passado, ancorada no porto da memória, abre-se ao olhar. Ilumina-a uma luz difusa, coada pelas nuvens, levedada pelo adiantado da estação. O dia abre-se para que a música do vento leve o toque dos sinos ao silêncio das almas.
terça-feira, 26 de novembro de 2024
Nocturnos 124
Jorge Molder, Face laveé d'oubli..., 1984 (Gulbenkian) |
domingo, 24 de novembro de 2024
O progresso moral da humanidade (19)
David Turnley, Elderly Bosnian Refugee Crying. Tuzla, Bosnia - Herzegovina, 1995 |
sexta-feira, 22 de novembro de 2024
Máximas (23)
João Paulo Serafim, #0033, 2005 (Gulbenkian) |
quarta-feira, 20 de novembro de 2024
Hinos marítimos (iii)
Hein Semke, Meerlandschaft-Lofoten, 1980 (Gulbenkian) |
Uma
pedra casta no centro do mar.
O
frágil barco do coração
navega
sob a inclemência marítima da luz.
Impérios
de areia e algas,
dunas,
vento trespassado pelo láudano
rasga
a terra debruçada sobre as marés.
A
baía vinda da infância,
o
mar lento e sem ondas, o pórtico
por
onde entra o fogo do sonho,
sai
o incêndio do desejo.
Um
caderno cor de cinza marítima,
o
nome escrito, página a página,
nome
vindo das águas, dedilhado nas ondas,
rasurado
pela luz das glicínias,
o
voo das gaivotas.
Escrito,
o nome é uma bússola,
a
salvação dos navegantes perdidos
na
vertigem do mar, na fímbria do destino,
a
água fremente do mar vinhoso.
O
cais debrua a baía,
traineiras,
alarido de vozes,
a
luz na sonolência da tarde.
A
rebentação salpica de sal a língua,
o
caminho de farol a farol,
a
água inquieta na púrpura dos dias:
o
silêncio da serpente na sombra do mar,
a
pedra na castidade do coração.
(1993)
[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]
segunda-feira, 18 de novembro de 2024
Os avisos da Suécia, Noruega e Finlândia
Marc Chagall, War, 1964-66 |
sábado, 16 de novembro de 2024
Comentários (24)
Darío de Regoyos y Valdés, Nocturno, 1899 |
quinta-feira, 14 de novembro de 2024
Mérito e inveja
Kamala Harris sempre me pareceu uma má candidata. Porque era mulher e porque não era branca? Também por isso, mas essa não é a questão central. De facto, Kamala Harris é tudo aquilo que o eleitor de Trump odeia. Sabemos que ele não odeia a incompetência; odeia a virtude, a vida conseguida, a capacidade de afirmação. Kamala Harris é uma mulher que não veio das elites norte-americanas, mas é refinada e transpira superioridade, apesar da simpatia. Kamala Harris foi um espelho em que milhões de eleitores norte-americanos viram a sua própria derrota existencial. Ela conseguiu aquilo que muitos desejavam e não foram capazes. Não se trata de dinheiro, mas de classe. Os eleitores norte-americanos caíram uma vez com Obama; não caíram segunda com Harris. Uma parte da derrota da candidata democrata deve-se à pura inveja e ao ressentimento que a sua presença gera.
Harris, como
Obama, são casos claros de uma cultura meritocrática, fundada em concepções
liberais da sociedade. O filósofo norte-americano Michael J. Sandel escreveu,
em 2020, um livro com o curioso título A Tirania do Mérito. Ele
argumenta que esta tirania está a corroer as nossas sociedades e a empurrá-las
para o populismo. As elites meritocráticas estão a afastar-se do homem comum, e
esse afastamento, juntamente com a quebra do elevador social, gera um enorme
ressentimento que se manifesta nas cabines de voto. Kamala Harris era uma má
candidata – isso não significa que seria uma má presidente; são coisas
diferentes – porque, quisesse ou não, ela era a face dessa elite que atormenta
as entranhas do homem comum. Ela perde porque foi virtuosa na sua vida, perde
porque é um caso de mérito. Ora, os democratas deviam ter lido com muita
atenção o livro de Sandel. O resultado é o que se viu e o que se verá no
futuro.
terça-feira, 12 de novembro de 2024
Trump e os trabalhadores
Álvaro Lapa, Conversa (quadro geral e exemplo), 1980 (Gulbenkian) |
domingo, 10 de novembro de 2024
Beatitudes (74) A disciplina da dança
George C. Bell, Interpretive dancing study, 1924 |
sexta-feira, 8 de novembro de 2024
Hinos marítimos (ii)
Ana Hatherly, O Mar, 1971 (Gulbenkian) |
Balança-se
o líquido viscoso
entre
as carumas brandas do vento,
um
insecto ígneo a cintilar na noite,
preso
na areia, uma dor sem nome,
a
página pura rasurada pelo tempo.
Vieram,
na maresia da aurora, marinheiros.
De
uma língua rasa fizeram barcos,
enfrentaram
o ondular das ondas,
o
uivo da memória,
a
vida quebrada na gramática do naufrágio.
Mareantes
perdidos no visco marítimo,
algas
fétidas da proa ao convés.
As
palavras ecoam na fragilidade do coração,
sombras
suspensas na face.
Cansados
das águas, plantaram palmeiras,
árvores
raquíticas suspensas nas marés.
Mastros
altivos chegam na aurora,
o
silêncio arcaico coberto pela névoa.
Sobre
a voz do cais cantam sirenes,
mulheres
de preto pingam pelas ruas,
o
turbilhão de peixes arfa nas redes,
a
noite como um pássaro pelo chão.
Choram
sobre o mar as mulheres.
Os
marinheiros, cantando, zarparam,
espera-os
a voz ébria dos portos longínquos,
a
seda esquiva de outras mulheres,
escorraçadas
na agrura do sul,
tisnadas
pelo tumulto do cansaço.
(1993)
quarta-feira, 6 de novembro de 2024
O problema
Lisa Santos Silva, sem título, 1972 (Gulbenkian) |
segunda-feira, 4 de novembro de 2024
Simulacros e simulações (68)
Júlio Resende, Apanha da Azeitona, 1951 (Gulbenkian)
Simulando uma dança arcaica, homens e mulheres inclinam-se para o chão, onde o fruto derrubado da árvore espera o afago silencioso das mãos. Depois, erguem-se, olham o horizonte e esperam que a luz solar deixe cair os seus raios sobre o dia, como se fosse a música que os ilumina nessa dança dolorosa vinda de mundos que o tempo apagou.
sábado, 2 de novembro de 2024
Interregno
Sendo assim, tomará medidas que não afrontem o eleitorado do centro e o eleitorado que, pela idade, se está a aproximar da reforma. Sabe-se que há, na direita, um grande desejo de tornar as condições de reforma mais penalizadoras dos reformados. Será que isso ocorrerá na presente legislatura? Não. Vale a pena citar o programa do governo sobre as pensões de reforma: “É necessária, porém, a existência de condições de debate e discussão racional, pelo que o Governo assume que a legislatura iniciada em 2024 deve ser dedicada ao estudo (sic), com uma análise e discussão dos desafios e respostas para a Segurança Social.” Isto significa apenas que o governo não tem maioria política que lhe permita realizar aquilo que deseja. Outro caso é o da abertura das escolas não superiores à iniciativa privada (com apoio do Estado). Um desígnio do governo de Passos Coelho e de parte importante da direita ligada à educação. Sobre isso, não há uma palavra nem no programa eleitoral da AD, nem no do actual governo. Porquê? Porque afastaria muitos votos dos professores e respectivas famílias.
Com a aprovação
do orçamento, entrámos na segunda fase do interregno. A primeira era fazer
aprovar o orçamento e assegurar mais dois anos de governação. A segunda vai
estar concentrada em alcançar uma maioria absoluta daqui a dois anos. Os
portugueses só perceberão o efectivo programa da Aliança Democrática nessa
ocasião. Nenhuma das reformas que os analistas e comentadores de direita exigem
– e que agradariam ao actual governo – será levada para a frente antes de novas
eleições. Porquê? Porque elas são a continuação das políticas de Passos Coelho
e atingirão duramente parte substancial das classes médias. Ora, a Aliança
Democrática precisa dos votos dessas classes médias e só as afrontará quando
tiver uma maioria absoluta na mão. Até lá vivemos num interregno.
quinta-feira, 31 de outubro de 2024
A Europa e o 5 de Novembro
Desde 2016, o resultado das eleições
norte-americanas passou a ser decisivo para os europeus. Até aí, uma vitória republicana
ou uma vitória democrata não alterava substancialmente a política externa e de alianças
militares. Com a vinda de Donald Trump e a captura do Partido Republicano por uma
coligação de elementos extremistas, adeptos das teorias da conspiração, alucinados
anticientíficos, sectores cristãos fundamentalistas, tudo se alterou. Os EUA eram
vistos como um dos pilares da democracia liberal no mundo, o lugar onde, juntamente
com a Inglaterra, o regime democrático seria o mais sólido e inabalável. Hoje, percebemos
que podemos, em breve, ter na Casa Branca alguém mais próximo do conjunto de tiranos
que governam parte substancial do mundo do que alguém preocupado com a saúde da
democracia.
Isto é dramático para a Europa, em
especial para a União Europeia. Podemos ter no comando da maior potência mundial
um inimigo da União Europeia e alguém apostado em destruir a Aliança Atlântica.
Isto explica o pânico existente em muitas capitais europeias. Revela também outra
coisa mais dolorosa para os europeus: a sua continuada irresponsabilidade. Irresponsabilidade
perante os deveres de protecção militar das suas populações. Era mais barato e cómodo
entregar a defesa da Europa aos americanos, sem considerar a possibilidade de que
eles podiam mudar de estratégia e abandonar-nos à nossa sorte. Irresponsabilidade
também na leitura política das potências que se movem no xadrez mundial, olhando
para elas de um ponto de vista económico e ocultando que se poderiam, como está
a acontecer, tornar poderosos inimigos políticos.
Mesmo que no dia 5 de Novembro haja um milagre e Kamala Harris seja eleita, o problema continua a colocar-se. A Europa não pode continuar a depender, para a sua defesa e a sua presença no mundo, dos humores do eleitorado norte-americano ou de um inverosímil retorno da sensatez ao Partido Republicano. Com ou sem milagre no dia 5 de Novembro, os europeus – fundamentalmente, a União Europeia e os países amigos – têm de alterar radicalmente o modo como têm olhado – e continuam a olhar, apesar das alterações impostas pela invasão da Ucrânia – a sua defesa e a forma como pensam a política externa. Se há uma coisa que os últimos tempos abalaram foi a velha crença liberal de que o comércio entre os povos porá fim às guerras. Isso não é verdade. A ordem mundial funda-se no choque entre potências que perseguem os seus interesses e não num jogo de bolsa ou na concorrência nos mercados internacionais. As coisas são o que são.