quarta-feira, 19 de junho de 2013

Meditações dialécticas (11) O tempo da revolta

Käthe Kollwitz - Aufruhr (Revolt)

A importância das chamadas primaveras árabes, fundamentalmente as da Tunísia e do Egipto, não estará tanto naquilo que elas originaram, mas no facto de elas terem dado início a um novo tempo. Este tempo não é um tempo de revoluções, um tempo onde exista um programa político que dirija os revoltados (melhor do que revoltosos), mas um tempo em que o desespero leva as pessoas para a rua e para o protesto, leva-os sem traço de ideologia. Este tempo da revolta espalhou-se pela Europa (Grécia, Turquia, Europa do sul), esteve presente nos EUA e deflagrou há dias nas grandes cidades do Brasil. Que as revoltas árabes tenham substituído regimes ditatoriais por outros regimes pouco democráticos diz-nos muito da fragilidade destas revoltas. 

No entanto, elas são o sintoma de duas coisas. Por um lado, a pressão das elites sobre as massas está a tornar-se insuportável. Por outro, começa a desenhar-se uma nova experiência de revolta que se alimenta pela visibilidade que os acontecimentos têm hoje em dia. O tempo da revolta ainda é um tempo de happenings, um tempo de coreografias desenhadas nas redes sociais e gravadas nas televisões, um tempo em que a revolta toma uma dimensão estética. Seria, porém, um equívoco pensar que estes happenings, pela sua dimensão estética, são destituídos de qualquer poder transformador. Pelo contrário, eles contêm um potencial que ao mesmo tempo provoca admiração e causa pavor. Trazem em si o sublime. Ora o sublime não é uma categoria social nem política, mas uma categoria de apreciação estética da arte e da natureza. Quem se revolta nas revoltas que assistimos? Podemos dizer que é a própria natureza que se ergue revoltada, que começa a quebrar os diques que têm sido impostos e parece querer anunciar um maremoto. O tempo da revolta é um tempo que anuncia a substituição da política pela física.

10 comentários:

  1. Há alturas em que os filósofos fazem a diferença. Este seu pensamento está bem 'pensado', bem articulado, aponta para uma direcção para a qual não olhamos sem uma ajuda destas. Gostei muito de ler. E se non è vero, è ben trovato.

    Se um dia publicar um livro com os seus melhores textos, guarde um lugar de destaque para este.

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    1. Nunca tinha pensado em publicar um livro com textos do blogue. Uma educação filosófica tem esse "defeito" de nos obrigar a olhar para os lugares que não se vêem. Talvez o essencial da filosofia seja esse olhar para o "invisível", e este reside em toda a parte.

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  2. Da filosofia e da poesia. Reconheço isso de forma muito clara e objectiva (eu que sou uma pessoa de formação e profissão todas elas viradas para os números, para os cálculos).

    Acho que deveria, muito seriamente, pensar num livro. Ou melhor, em dois: um de textos e outro de poemas - isto se ainda não tem nenhum de poemas.

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    1. Talvez um dia destes pense nesse assunto, mais facilmente pensarei no de poesia, claro. Logo se vê. Muito obrigado pelo incentivo, UJM.

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  3. Mais um texto excelente. Concordo que um livro seu faz todo o sentido. É um prazer ler o que escreve porque está imbuído de uma qualidade superior, de uma análise para além do óbvio, das emoções, do previsível, do politizado. Reflexivo, sábio. orgulho-me de o ter como colega de profissão. Para que se saiba. :)

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    1. Benevolência sua, Faty Laouini. Muito brigado pelas suas palavras.

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  4. Porque a minha ignorância em matéria de filosofia, me reduz a capacidade de comentar alguns textos, apenas me atrevo a "acrescentar" que uma revolta não é uma revolução (são necessárias muitas) e, muitas vezes, as revoltas são neutralizadas, quando não subvertidas pelo Sistema.
    E depois, como temos constatado, quem faz meia-revolução cava a sua própria sepultura.

    Junto a minha voz ao coro das Leitoras que me precederam: Para quando um ou mais livros?

    Um abraço

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    1. Estas revoltas, mais ou menos inorgânicas, podem ser uma válvula de escape do sistema. A energia excessiva do tecido social rompe os equilíbrios e manifesta-se como grande espectáculo, abrindo caminho para um novo equilíbrio que mantém o status anterior. Podem, porém, ser o início de uma bola de neve. Veremos como vão evoluir as coisas.

      Quanto aos livros, devemos ter o cuidado de ponderar se vale a pena sacrificar as árvores pela glória vã de ver as palavras impressas. Por enquanto, não acho sensato tal sacrifício.

      Abraço

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    2. Pode sempre publicar um livro online para utilizadores de, por exemplo, kindle. Já não há o sacrifício de boas amigas árvores e sempre dá para matar o tédio de alguns momentos a algumas pessoas.

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