A novela O Homem que Plantava
Árvores, de Jean Giono, foi escrita em 1953. É um pequeno texto que se
tornou uma espécie de bíblia dos movimentos ecologistas. O próprio Giono disse que
a tinha escrito “para que as pessoas gostem de plantar árvores”.
Independentemente dos propósitos naturalistas do autor ou das leituras
ambientalistas que foram feitas da novela, esta tem o particular condão de colocar
o homem, na figura da personagem Elzéard Bouffier, na encruzilhada entre
história e natureza.
Em linhas gerais, o narrador, numa das suas viagens a pé pela Haute
Provence, acaba por conhecer Elzéard Bouffier, um pastor solitário e de poucas
palavras. A região que habita é praticamente desértica, onde, com a excepção da
alfazema, nada parece crescer. A vida humana ter-se-ia retirado para longe
daqueles lugares inóspitos. O narrador vai descobrir e acompanhar, com os
interlúdios impostos pela história humana, a tarefa desmesurada a que o
solitário se entregava, a saber, a reflorestação da zona, utilizando apenas uma vontade
determinada e instrumentos rudimentares. Vontade e ausência de recurso aos meios
técnico-científicos são os traços fundamentais de Elzéard.
A personagem é monolítica. Não há nela uma metamorfose ao longo da
narrativa. É encontrada já completamente formada, solitária, empenhada no seu
destino. O que a conduz ali não sabemos. Conhecemos apenas a sua vontade e os
resultados dessa vontade, as transformações regeneradoras que a natureza sofre –
transformações que ele produz entre 1913 e 1947 e que, quando se tornam
visíveis, as autoridades julgam dever-se a uma resposta espontânea da natureza –
e que vão permitir o retorno da vida humana àqueles locais.
Quem é o solitário Elzéard Bouffier? Qual a sua verdadeira identidade?
Voltemos à velha definição dada por Aristóteles na sua Política (1253a 3-5): o homem
é, por natureza, um ser vivo político. Aquele que, por natureza e não por
acaso, não tiver cidade, será um ser decaído ou sobre-humano, tal como o homem
condenado por Homero como “sem família, nem lei, nem lar”. Bouffier não tem
cidade, não se inscreve no âmbito da cidadania e os acontecimentos históricos –
e que acontecimentos históricos – passam-lhe completamente ao lado. Giono
desenha assim uma personagem que, sendo humana, não é um homem, não é um ser
vivo político.
Como nada sabemos da motivação de Elzéard nem do que o conduziu à
solidão, não há uma história das peripécias e dos acasos que o conduziram
aquela situação e o instituíram naquela missão, podemos suspeitar que é a sua
própria natureza, e não os acidentes da vida, que o colocam ali. Portanto,
Elzéard Bouffier só pode ser ou um ser decaído ou um ser sobre-humano, um deus.
Apesar de não ter família nem lei, e de o lar ser absolutamente rudimentar,
embora completamente ordenado, descobre-se que o pastor, pelos resultados da
sua acção, só pode ser um deus.
Ele encarna a essência do Deus de Espinosa. É uma natureza naturante cuja produtividade se manifesta na chamada natureza naturada. Elzéard Bouffier, com
a sua vontade determinada, é um deus criador que produz e conserva, no silêncio
e desconhecimento dos homens, a obra da sua criação. Um deus é idêntico a si
mesmo, a sua biografia não resulta dos acasos e acidentes do mundo, a sua
identidade não nasce de um processo de construção mas está dada a priori. Ele constrói ou reconstrói a
natureza.
Só um deus, em plena França da primeira metade do século XX, pode
passar incólume pelos acontecimentos históricos. As guerras de 1914-1918 e de
1939-1945 passam ao lado de Elzéard Bouffier e da sua obra. Os homens matam-se,
mas o deus prossegue sereno e determinado a sua missão de reconstrução da natureza,
de produção das condições de possibilidade da vida humana, plantando mais e
mais árvores. É fora da história que ele age. Não age contra ela, mas
ignorando-a. A anistoricidade da personagem de Giono coloca problemas bem mais
pregnantes do que a leitura ecológica da sua acção. Será possível a vida humana
sem que alguns homens se coloquem fora da cidade e da história?
A história é o produto da vida em sociedade, mas é também o lugar do
conflito e da destruição. Deixada a si mesma a história, bem como a vida social,
arrasta a destruição, pois a sua essência é o devir e a destruição do dado, a
substituição interminável dos factos por novos factos. Elzéard Bouffier
simboliza aqueles que, abdicando de uma biografia social e histórica, se recolhem
num além da cidade e da política para assegurar que a natureza e a própria
cidade sejam ainda possíveis, apesar da história, da cidade e da política.
Aristóteles, talvez devido à metodologia de investigação que usou, não
compreendeu que a existência da cidade depende daqueles homens e mulheres que
estão para lá dela. Descobriu que eles são sobre-humanos, mas não compreendeu
que essa sobre-humanidade é a condição de possibilidade do próprio homem e das
suas instituições. A novela de Jean Giono, na sua singularidade singela, deixa-o
perceber.
Jean Giono (2012). O Homem que
Plantava Árvores. Barcarena: Marcador. Tradução de Manuel Oliveira.
Pela maneira como os Homens estão a "construir" a história e a "destruir" a Cidade, podemos antever que a vida humana só será possível "fora" de ambas.
ResponderEliminarAbraço
Talvez a construção da história implique sempre a destruição da cidade. Numa leitura hegeliana (e também marxiana), o motor da história é o negativo. O que acontece é que tanto Hegel como Marx acreditavam que a história iria ter um final feliz, apesar das destruições que ela implica. Hoje ninguém acredita nisso (bem os liberais acreditam).
EliminarAbraço
Ao que parece, o Universo tem um ritmo próprio, em franca evolução, do qual o Homem (ser humano) se destaca, para o bem e para o mal de si próprio. No início, ainda um animal reflexivo, entrega-se aos novos instintos e enfia os pés-pelas-mãos em um ignorado jogo de causa-e-efeito. Aos poucos vai-se educando pela dor e pelo sofrimento alternado com alegrias efêmeras e percebe que uma Ordem Superior rege a manifestação. Até alinhar-se a essa Ordem e tronar-se verdadeiramente um Homem (ser humano), ou, um "plantador de árvores", esse protótipo de ser sobre-humano deixa atrás de si muitas cidades destruídas, inclusive cidades arbóreas!
ResponderEliminarTalvez deixar cidades destruídas seja o destino desse ser humano. A destruição de umas torna possível a construção de outras. Seja como for, é preciso sempre alguém que esteja fora deste circuito, que sirva como modelo, para que a renovação e a reconstrução tenha sentido.
EliminarParece correta a fórmula "geração, degeneração e regeneração", afinal!
ResponderEliminarLi este livro numa Bertrand, no intervalo de um curso de escrita (e comprei-o mais tarde porque também queria tê-lo). Gostei da esperança que havia nele, do muito que um único homem tinha conseguido ao longo da sua vida.
ResponderEliminarÉ um livro, pelo número de visitas a este post, que tem muitos leitores. Talvez seja a questão da esperança que há nele que atrai tantos leitores.
Eliminarpersonagem de uma grandeza assustadora. É como se o autor, se referindo a um ser nem deus nem homem, que realiza o inacreditável, delicadamente excluísse qualquer possibilidade de redenção.
ResponderEliminarTalvez o que atraia nesta história seja isto: já que a vida é o que é, e já que somos tão submissos e cruéis, que a leitura represente um momento de fantasia, de trégua.
Talvez seja isso, talvez seja a possibilidade de respirar por um momento, que atraia tanta gente a este livro.
Eliminarnão podemos deixar de perceber o contraste entre o extremo egoísmo que permeia as relações de grande parte dos indivíduos humanos (que leva à decreptude) e o altruístico trabalho abnegado de alguns, que firma os alicerces de algo mais perene do que a luta do dia-a-dia. O símbolo evocado pela simplicidade do plantador em comunhão com as potências da natureza traduz-se em riqueza, paz e felicidade, em que pese o isolamento e o trabalho árduo. No plano das disputas, o cenáriuo de desolação prepara o coração daquelas pessoas que finalmente encontrarão a vida renovada para o próximo ciclo. Aqui no hemisfério sul começou ontem a estação da primavera. Que o exemplo (o espírito) do plantador de árvores nos inspire.
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