segunda-feira, 25 de março de 2013

Jean Giono, O Homem que Plantava Árvores




A novela O Homem que Plantava Árvores, de Jean Giono, foi escrita em 1953. É um pequeno texto que se tornou uma espécie de bíblia dos movimentos ecologistas. O próprio Giono disse que a tinha escrito “para que as pessoas gostem de plantar árvores”. Independentemente dos propósitos naturalistas do autor ou das leituras ambientalistas que foram feitas da novela, esta tem o particular condão de colocar o homem, na figura da personagem Elzéard Bouffier, na encruzilhada entre história e natureza.

Em linhas gerais, o narrador, numa das suas viagens a pé pela Haute Provence, acaba por conhecer Elzéard Bouffier, um pastor solitário e de poucas palavras. A região que habita é praticamente desértica, onde, com a excepção da alfazema, nada parece crescer. A vida humana ter-se-ia retirado para longe daqueles lugares inóspitos. O narrador vai descobrir e acompanhar, com os interlúdios impostos pela história humana, a tarefa desmesurada a que o solitário se entregava, a saber, a reflorestação da zona, utilizando apenas uma vontade determinada e instrumentos rudimentares. Vontade e ausência de recurso aos meios técnico-científicos são os traços fundamentais de Elzéard.

A personagem é monolítica. Não há nela uma metamorfose ao longo da narrativa. É encontrada já completamente formada, solitária, empenhada no seu destino. O que a conduz ali não sabemos. Conhecemos apenas a sua vontade e os resultados dessa vontade, as transformações regeneradoras que a natureza sofre – transformações que ele produz entre 1913 e 1947 e que, quando se tornam visíveis, as autoridades julgam dever-se a uma resposta espontânea da natureza – e que vão permitir o retorno da vida humana àqueles locais.

Quem é o solitário Elzéard Bouffier? Qual a sua verdadeira identidade? Voltemos à velha definição dada por Aristóteles na sua Política (1253a 3-5): o homem é, por natureza, um ser vivo político. Aquele que, por natureza e não por acaso, não tiver cidade, será um ser decaído ou sobre-humano, tal como o homem condenado por Homero como “sem família, nem lei, nem lar”. Bouffier não tem cidade, não se inscreve no âmbito da cidadania e os acontecimentos históricos – e que acontecimentos históricos – passam-lhe completamente ao lado. Giono desenha assim uma personagem que, sendo humana, não é um homem, não é um ser vivo político.

Como nada sabemos da motivação de Elzéard nem do que o conduziu à solidão, não há uma história das peripécias e dos acasos que o conduziram aquela situação e o instituíram naquela missão, podemos suspeitar que é a sua própria natureza, e não os acidentes da vida, que o colocam ali. Portanto, Elzéard Bouffier só pode ser ou um ser decaído ou um ser sobre-humano, um deus. Apesar de não ter família nem lei, e de o lar ser absolutamente rudimentar, embora completamente ordenado, descobre-se que o pastor, pelos resultados da sua acção, só pode ser um deus.

Ele encarna a essência do Deus de Espinosa. É uma natureza naturante cuja produtividade se manifesta na chamada natureza naturada. Elzéard Bouffier, com a sua vontade determinada, é um deus criador que produz e conserva, no silêncio e desconhecimento dos homens, a obra da sua criação. Um deus é idêntico a si mesmo, a sua biografia não resulta dos acasos e acidentes do mundo, a sua identidade não nasce de um processo de construção mas está dada a priori. Ele constrói ou reconstrói a natureza.

Só um deus, em plena França da primeira metade do século XX, pode passar incólume pelos acontecimentos históricos. As guerras de 1914-1918 e de 1939-1945 passam ao lado de Elzéard Bouffier e da sua obra. Os homens matam-se, mas o deus prossegue sereno e determinado a sua missão de reconstrução da natureza, de produção das condições de possibilidade da vida humana, plantando mais e mais árvores. É fora da história que ele age. Não age contra ela, mas ignorando-a. A anistoricidade da personagem de Giono coloca problemas bem mais pregnantes do que a leitura ecológica da sua acção. Será possível a vida humana sem que alguns homens se coloquem fora da cidade e da história?

A história é o produto da vida em sociedade, mas é também o lugar do conflito e da destruição. Deixada a si mesma a história, bem como a vida social, arrasta a destruição, pois a sua essência é o devir e a destruição do dado, a substituição interminável dos factos por novos factos. Elzéard Bouffier simboliza aqueles que, abdicando de uma biografia social e histórica, se recolhem num além da cidade e da política para assegurar que a natureza e a própria cidade sejam ainda possíveis, apesar da história, da cidade e da política. Aristóteles, talvez devido à metodologia de investigação que usou, não compreendeu que a existência da cidade depende daqueles homens e mulheres que estão para lá dela. Descobriu que eles são sobre-humanos, mas não compreendeu que essa sobre-humanidade é a condição de possibilidade do próprio homem e das suas instituições. A novela de Jean Giono, na sua singularidade singela, deixa-o perceber.

Jean Giono (2012). O Homem que Plantava Árvores. Barcarena: Marcador. Tradução de Manuel Oliveira.

10 comentários:

  1. Pela maneira como os Homens estão a "construir" a história e a "destruir" a Cidade, podemos antever que a vida humana só será possível "fora" de ambas.

    Abraço

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    1. Talvez a construção da história implique sempre a destruição da cidade. Numa leitura hegeliana (e também marxiana), o motor da história é o negativo. O que acontece é que tanto Hegel como Marx acreditavam que a história iria ter um final feliz, apesar das destruições que ela implica. Hoje ninguém acredita nisso (bem os liberais acreditam).

      Abraço

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  2. Ao que parece, o Universo tem um ritmo próprio, em franca evolução, do qual o Homem (ser humano) se destaca, para o bem e para o mal de si próprio. No início, ainda um animal reflexivo, entrega-se aos novos instintos e enfia os pés-pelas-mãos em um ignorado jogo de causa-e-efeito. Aos poucos vai-se educando pela dor e pelo sofrimento alternado com alegrias efêmeras e percebe que uma Ordem Superior rege a manifestação. Até alinhar-se a essa Ordem e tronar-se verdadeiramente um Homem (ser humano), ou, um "plantador de árvores", esse protótipo de ser sobre-humano deixa atrás de si muitas cidades destruídas, inclusive cidades arbóreas!

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    1. Talvez deixar cidades destruídas seja o destino desse ser humano. A destruição de umas torna possível a construção de outras. Seja como for, é preciso sempre alguém que esteja fora deste circuito, que sirva como modelo, para que a renovação e a reconstrução tenha sentido.

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  3. Parece correta a fórmula "geração, degeneração e regeneração", afinal!

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  4. Li este livro numa Bertrand, no intervalo de um curso de escrita (e comprei-o mais tarde porque também queria tê-lo). Gostei da esperança que havia nele, do muito que um único homem tinha conseguido ao longo da sua vida.

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    1. É um livro, pelo número de visitas a este post, que tem muitos leitores. Talvez seja a questão da esperança que há nele que atrai tantos leitores.

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  5. personagem de uma grandeza assustadora. É como se o autor, se referindo a um ser nem deus nem homem, que realiza o inacreditável, delicadamente excluísse qualquer possibilidade de redenção.
    Talvez o que atraia nesta história seja isto: já que a vida é o que é, e já que somos tão submissos e cruéis, que a leitura represente um momento de fantasia, de trégua.

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    1. Talvez seja isso, talvez seja a possibilidade de respirar por um momento, que atraia tanta gente a este livro.

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  6. não podemos deixar de perceber o contraste entre o extremo egoísmo que permeia as relações de grande parte dos indivíduos humanos (que leva à decreptude) e o altruístico trabalho abnegado de alguns, que firma os alicerces de algo mais perene do que a luta do dia-a-dia. O símbolo evocado pela simplicidade do plantador em comunhão com as potências da natureza traduz-se em riqueza, paz e felicidade, em que pese o isolamento e o trabalho árduo. No plano das disputas, o cenáriuo de desolação prepara o coração daquelas pessoas que finalmente encontrarão a vida renovada para o próximo ciclo. Aqui no hemisfério sul começou ontem a estação da primavera. Que o exemplo (o espírito) do plantador de árvores nos inspire.

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