domingo, 10 de março de 2013

Meditações Taoistas (14)

Edvard Munch - Evening on Karl Johan (1892)
 
Enfatuar-se com bens e fama por si já dana.
Concluída a obra abster-se,
eis o curso do céu.
Lao Tse, Tao Te King, IX
 
O mundo está fora dos eixos, e não há quem o ponha no lugar, sussurrava-se. Os homens tinham perdido o seu lugar e ninguém sabia já onde era a pátria, o nome da terra em que nascera, a luz que se desprendia, no terror da noite, do olhar materno. As cidades eram incendiadas por bandos de vagabundos e os escombros cresciam dia e noite. O lixo tomara conta dos passeios e os parques relvados eram agora terra árida e seca. Havia cadáveres pelas ruas, animais que morriam de fome e sede, um cheiro pestilento nos ares, e por todos os lados se ouviam as carpideiras. Por vezes, passavam longas procissões. Não havia imagens de santos nem estandartes, apenas homens, mulheres e crianças em silêncio, olhos dilatados, exaustos. Caminhavam juntos e apavorados, mas ninguém em lugar algum os esperava.
 
Não se sabe de onde veio, nem se tinha nome de família ou casa onde dormisse. Olharam-no mas não o viram, por isso ninguém se preocupou em nomeá-lo. O corpo era forte, quase tão forte quanto o olhar. Começou lentamente a varrer as ruas, a recolher os escombros, a empilhar os cadáveres abandonados à luz. Juntaram-se-lhe alguns homens e mulheres, mas ele nunca abriu a boca. Olhava, e isso bastava. Todos percebiam o objectivo. Alguém que precisava de ajuda, uma rua a ser liberta das árvores caídas, casas a ser reparadas. Passados alguns meses, os jardins floriram pela primeira vez em muitos anos e as árvores pareciam ter seiva nova. Subitamente, ouviu-se uma campainha e gritos despreocupados de crianças ecoaram no recreio de uma escola.
 
O estranho parecia agora repousar mais demoradamente. Sentava-se e olhava quem passava, as casas que retornavam às suas antigas funções, o trânsito da esperança sobre as avenidas. Tinham desaparecido os bandos de vagabundos e havia ordem. Nas antigas lojas, surgiam novos comerciantes e as gentes entravam e saíam, trocavam palavras e riam. O estranho sem nome aparecia cada vez mais raramente, perscrutava o horizonte, por vezes entrava num café e servia-se de um copo de água e saía silencioso. Um dia, ao lembrarem-se do seu olhar, decidiram fazer-lhe uma grande homenagem. Procuraram-no, mas ninguém sabia onde vivia, nem o seu nome, nem o sítio de onde tinha vindo. Havia apenas a luz daquele olhar e o mundo que retornara ao seu lugar.

2 comentários:

  1. Se pelo sonho nos vamos, o caminho -do bem- é possível. O mal está na realidade...

    Boa semana para si.
    Um abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Esta ideia de abstenção do homem político, exposta no Tao Te King (na verdade, uma grande meditação política), parece-me central para os dias de hoje.

      Boa semana.

      Abraço

      Eliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.