Edvard Munch - Evening on Karl Johan (1892)
Enfatuar-se com bens e fama por si já dana.
Concluída a obra abster-se,
eis o curso do céu.
Lao
Tse, Tao Te King, IX
O mundo está fora dos eixos, e não há
quem o ponha no lugar, sussurrava-se. Os homens tinham perdido o seu lugar e
ninguém sabia já onde era a pátria, o nome da terra em que nascera, a luz que
se desprendia, no terror da noite, do olhar materno. As cidades eram
incendiadas por bandos de vagabundos e os escombros cresciam dia e noite. O
lixo tomara conta dos passeios e os parques relvados eram agora terra árida e
seca. Havia cadáveres pelas ruas, animais que morriam de fome e sede, um cheiro
pestilento nos ares, e por todos os lados se ouviam as carpideiras. Por vezes,
passavam longas procissões. Não havia imagens de santos nem estandartes, apenas
homens, mulheres e crianças em silêncio, olhos dilatados, exaustos. Caminhavam
juntos e apavorados, mas ninguém em lugar algum os esperava.
Não se sabe
de onde veio, nem se tinha nome de família ou casa onde dormisse. Olharam-no
mas não o viram, por isso ninguém se preocupou em nomeá-lo. O corpo era forte,
quase tão forte quanto o olhar. Começou lentamente a varrer as ruas, a recolher
os escombros, a empilhar os cadáveres abandonados à luz. Juntaram-se-lhe alguns
homens e mulheres, mas ele nunca abriu a boca. Olhava, e isso bastava. Todos
percebiam o objectivo. Alguém que precisava de ajuda, uma rua a ser liberta das
árvores caídas, casas a ser reparadas. Passados alguns meses, os jardins floriram
pela primeira vez em muitos anos e as árvores pareciam ter seiva nova.
Subitamente, ouviu-se uma campainha e gritos despreocupados de crianças ecoaram
no recreio de uma escola.
O estranho
parecia agora repousar mais demoradamente. Sentava-se e olhava quem passava, as
casas que retornavam às suas antigas funções, o trânsito da esperança sobre as
avenidas. Tinham desaparecido os bandos de vagabundos e havia ordem. Nas
antigas lojas, surgiam novos comerciantes e as gentes entravam e saíam,
trocavam palavras e riam. O estranho sem nome aparecia cada vez mais raramente,
perscrutava o horizonte, por vezes entrava num café e servia-se de um copo de
água e saía silencioso. Um dia, ao lembrarem-se do seu olhar, decidiram
fazer-lhe uma grande homenagem. Procuraram-no, mas ninguém sabia onde vivia,
nem o seu nome, nem o sítio de onde tinha vindo. Havia apenas a luz daquele
olhar e o mundo que retornara ao seu lugar.
Se pelo sonho nos vamos, o caminho -do bem- é possível. O mal está na realidade...
ResponderEliminarBoa semana para si.
Um abraço
Esta ideia de abstenção do homem político, exposta no Tao Te King (na verdade, uma grande meditação política), parece-me central para os dias de hoje.
EliminarBoa semana.
Abraço