terça-feira, 31 de março de 2020

Ensaio sobre a luz (79)

Robert Frank, Mallorca, 1950
A vida sóbria, despida de excessos, talvez do necessário, reverbera quando incansável a luz do sol se encontra com a brancura desmedida da cal.

domingo, 29 de março de 2020

A Casa Esquecida 8

Manuel Gil Pérez, Formas dinámicas espaciales, 1957

Oiço uma música de água no algeroz,
o som arcaico nos sulcos da memória,
dor doendo na placenta do coração.
É uma casa de cantaria sobre o sul,
a esmeralda enterrando-se na carne,
o fremir das planícies ao moverem-se
de incêndio em incêndio, esse amor
soletrado no sulco do meu sangue.

(1981)

sexta-feira, 27 de março de 2020

Desejo de pastor

Loomis Dean, The grand strip of Las Vegas lighting up, 1952
No Público de hoje, António Guerreiro dedica um artigo, A epidemia do tédio, à situação de isolamento em que se encontra parte da população. O que me interessa no artigo não é tanto o tédio que nasce do confinamento ou deste ser um confinamento no tempo, mas uma passagem sobre a vocação pastoril dos media naquilo que diz respeito à cultura. É verdade que a comunicação social tem abundado em sugestões e indicações sobre coisas a ler, ver e ouvir para matar o tempo. O que me interessa é a oposição que o autor faz entre essa vocação de pastores, assumida pelos órgãos de comunicação social, e o ousa saber! kantiano, imagem do espírito crítico e do Iluminismo.

Talvez tenha existido um momento em que alguém possa ter pensado numa humanidade constituída por indivíduos que, ao ousar saber, desenvolveriam o seu espírito crítico e com as luzes da sua razão haveriam de gerir, firmes na singularidade conquistada e livres do rebanho, a sua vida, sem que alguém os pastoreasse, dizendo-lhes o que fazer e como viver. O que talvez tenha acontecido, porém, é que a generalidade dos que fecharam os ouvidos ao pastor e abandonaram o rebanho se tresmalhou e voga agora na mais pura errância. A singularização do ser humano terá produzido muito menos espíritos críticos do que espíritos errantes, verdadeiramente alienados, mais alienados, aliás, do que quando, na sua menoridade inquestionada, se entregavam nas mãos dos pastores.

O facto dos media assumirem a função do pastorado é apenas um sinal sobre o desejo que há, na generalidade daqueles que andam perdidos, em encontrar pastores que os protejam de si mesmos. No campo político, o desejo do pastor elegeu, em países como os EUA ou o Brasil, gente que nenhum espírito crítico formado na escola das Luzes pode aceitar ou consegue compreender. São pastores loucos? São, mas são pastores e, por isso, preferíveis aos políticos formados na escola crítica do Iluminismo. Mesmo na Europa o anseio por pastores cresce paulatinamente, enquanto a confiança nos espíritos críticos vai diminuindo. Depois, os exemplos vindos dos estados autoritários, onde pastores de mão firme regulam o rebanho, começam a ser olhados com benevolência. Há muito que a discussão sobre a emancipação entre liberais e socialistas terá perdido sentido. A questão é se a ideia de emancipação nascida nas luzes se adapta à humanidade, se esta pela sua natureza não estará, enquanto for humanidade, confinada a ser um rebanho, cuja sorte depende dos pastores que lhe calha.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Sonhos numa noite de Verão 20

Charles Clifford, Cathedral, Torre del Oro and Guadalquivir River, Seville, Spain, 1862
Ouvia o rumorejar das águas ao serem sulcadas pelo casco, um barulho ao longe, uma promessa de irrealidade que a consciência não conseguia fixar. O calor da noite não desmentia o Verão feroz que assola aquelas paragens. Como uma memória muito antiga, assaltava-me o nome do rio. Guadalquivir, Guadalquivir. Sentia o peso da história e as vezes que ali naveguei. Depois, as águas incendiaram-se e em pleno rio as embarcações combatiam-se, com um zelo inesperado e um poder de fogo improvável para barcos daquela dimensão. O meu foi atingido e vi-me a nadar num leito em chamas. Acordei ao chegar à margem, um raio de sol entrava no quarto e da janela do hotel via as águas serenas do Guadalquivir a deslizarem na paz da manhã.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Uma nova semântica

George Platt Lynes, Crossed Arms, 1941
Nunca foi tão importante para aqueles que estão, de algum modo, no teatro de operações do combate à pandemia que os outros se mantenham em casa. Para estes, estar de braços cruzados é uma forma de acção, a mais importante das acções. Cruzar os braços e lavar as mãos tornaram-se sinais com sentidos opostos aos que estávamos habituados. Os tempos são tão extraordinárias que a própria semântica está a ser abalada e invertida. Cruzam-se os braços e lavam-se as mãos não se porque se seja indiferente, mas porque não se é. Ao cruzarem-se os braços não se desiste, mas persiste-se, à espera que a velha semântica recupere os seus direitos e restabeleça os sinais na antiga ordem de significação. 

sábado, 21 de março de 2020

Três efeitos virais


POLÍTICA E ECONOMIA. De um momento para o outro todo um modo de compreender a política se alterou. Por influência das duas principais constelações ideológicas nascidas do Iluminismo – o liberalismo e o marxismo – a política tinha, paulatinamente, sucumbido aos imperativos da economia. Sem ameaças no horizonte, os homens pensam nos seus interesses, nos negócios que promovem ou na escassez de que se sentem vítimas na distribuição do bolo produtivo. Na verdade, as eleições ganhavam-se ou perdiam-se devido às conjunturas económicas e a qualidade das políticas tinha como núcleo central a economia. Agora, ninguém pensa na economia, na distribuição de rendimentos, seja no que for. Toda a gente reza para que a gestão política seja eficaz na oposição à ameaça viral. Primeiro vem a política, depois a economia, como deveria acontecer sempre. Quanto tempo vamos levar para esquecer esta dura lição?

HOBBES E LOCKE. Duas narrativas modernas alimentam as explicações do laço político que une as pessoas em comunidades dotados de Estado. Por um lado, a de Thomas Hobbes. Os homens associam-se num Estado, fundamentalmente, para poderem viver em segurança, sacrificando a esta tudo. Por outro, a de John Locke. O Estado existe para defender os nossos direitos naturais e assegurar uma arbitragem justa nos conflitos. Enquanto a vida corre sem problemas, a explicação de Locke parece imbatível. O que o coronavírus mostra, porém, é outra coisa. A segurança hobbesiana em primeiro lugar. Não que, neste momento, estejamos à beira da guerra de todos contra todos, mas estamos em guerra com uma ameaça em que todos podem ser os seus portadores. Todos somos suspeitos e, de certa maneira, lobos uns dos outros, apesar da solidariedade inegável que tem percorrido o país.

DEMOCRACIA E AUTORITARISMO. O que se está a passar é um teste de stress para todos os regimes políticos que têm de lidar com a situação. As democracias, pela sua própria natureza, são mais atreitas a problemas se este combate à insegurança sanitária correr mal. A Itália parece perdida, muitos dos países europeus apresentam sintomas de confusão e as duas mais sólidas democracias liberais não têm à sua frente nem um Churchill nem um Roosevelt. É possível que os regimes democráticos estejam num combate decisivo pela sua própria vida, eles que estão já infectadas pelo vírus do autoritarismo. Para além da tragédia humana, haveria uma outra tragédia civilizacional se a política voltasse ao primeiro lugar, mas assente na herança de Hobbes e no despedimento da democracia política por maus serviços.

quinta-feira, 19 de março de 2020

A Casa Esquecida 7

Fernando Lerín, Sin título, 1984

As batalhas vêm na orfandade da hora,
ornadas a vento e terra, os exércitos
cobertos de suor, o bruaá do combate,
o sangue a cerzir o contorno das faces.

Trincheiras de urze na lavanda da noite,
o vendaval dos dias, o amor hidráulico
a cambalear por campos de sargaço,
arqueado ao peso plúmbeo das paredes.

(1981)

terça-feira, 17 de março de 2020

Beatitudes (23) Trivialidades

Artur Pastor, Cais das Colunas, Lisboa, 1950-69
De súbito, descobre-se a maior das beatitudes no que há de mais trivial. Ir à rua, apanhar sol, olhar as águas, sentir a brisa a deslizar na pele, falar com amigos e estranhos, como se nada estivesse em suspenso e a realidade não se tivesse tornado num espaço doméstico de concentração. 

domingo, 15 de março de 2020

O homem do saco

Francesc Català-Roca, El hombre del saco, 1950
Nos países ibéricos e nos seus prolongamentos sul-americanos desenvolveu-se uma mitologia em torno do homem do saco ou do velho do saco. Este teria a missão de apanhar crianças mal educadas e desobedientes e levá-las com os mais indizíveis propósitos. Hoje precisávamos dessa figura tenebrosa e solitária, não para recolher meninos mal educados e desobedientes, já nos habituámos a eles, mas para apanhar aquilo que nos atormenta. Se ele com o seu saco pudesse recolher o que Pandora deixou fugir da sua caixa, todos ficaríamos gratos e ele poderia mesmo transformar a sua imagem infernal numa de querubim celeste.

sexta-feira, 13 de março de 2020

Nocturnos 9

André Kertész, Melancholic Tulip, 1939
Tomada pelo pavor da noite, dobrada pelo medo das trevas, a túlipa inclina-se melancólica sobre a sua própria morte, esperando a luz da madrugada que, ao vencer os terrores da escuridão, lhe devolverá a vida.

quarta-feira, 11 de março de 2020

Descrições fenomenológicas 50. A oblata

Modesto Llamas Rojamaril, ¿Hacia dónde?, 1998
Atravessado por longas rachas, o estuque luta ainda por se manter pegado à parede. Nele, manchas de humidade desenham mapas de países extravagantes, terras lendárias levadas para os confins dos oceanos, continentes inteiros engolidos pelo sopro do esquecimento, atlântidas suspensas na imaginação de filósofos ainda tocados por êxtases e delírios. O rodapé alto, talvez de uns vinte centímetros, apresenta o rebordo superior desbastado pelo caruncho e a ruína desce, cavando pequenos vales e lagos minúsculos, em direcção ao soalho, também ele tomado por um destino irremediável. Aqui florestas de folhas secas agitam-se se o vento entra pela janela desconjuntada. Vêem-se já pequenos montes de caliça, restos do estuque caído tecto, onde ainda se percebem os traços das figuras que o decoravam. Encostada à parede, uma mulher inclina o corpo para a frente. Os cabelos caem-lhe, a blusa abre-se e os seios brancos saltam e ficam suspensos do peito. Ela fica em posição instável, mas não se endireita. Parece olhar fixamente para o ventre oculto sob uma roupa que contrasta com o ambiente. Os braços abrem-se em arco e toda aquela figuração parece ser uma performance, um happening infeliz de uma artista tomada pela vertigem que se escondo dentro do corpo. Oblíquo, um feixe de luz desenha uma barra cintilante que une a mão direita à perna esquerda, ateando a saia. Os pés nus, de unhas pintadas num vermelho vívido, assentam sobre as folhas mortas e parecem fazer um esforça desmedido para evitar a queda do corpo para a frente. Passados longos minutos, a mulher ergue lentamente o tronco, enquanto une os braço ao corpo e encosta a cabeça à parede. Tem os olhos fechados, respira sem sofreguidão e os mamilos parecem querer perfurar a roupa. O rosto é agora plenamente visível e há nele pequenos reflexos de luz, um brilho trazido pela beleza, uma vontade imperiosa de reinar sobre o mundo. Toda ela estremece, abre os olhos e, pisando as folhas mortas no soalho, dirige-se para a porta, também em ruína, para sair do palco onde imaginou o altar em que se entregava em oblação aos olhos de quem a quisesse ver.

segunda-feira, 9 de março de 2020

A Casa Esquecida 6

Gerardo Rueda, Verde, 1961

São dias de maré. As planícies a arder na loucura,
o veredicto trazido pela cambraia das estações.
Inútil a cara sobre o lençol, os músculos abertos
para a praia juncada pelas algas do esquecimento.
Como será a luz das tuas mãos na luz de Setembro?

O coração estará longe, perdido na poalha do dia,
entre aniversários, amigos de copo na mão, gente
sem a urgência de chegar ou partir, sem a ânsia
de uma carta ou das canções que te ouvia
se cantavas debaixo de um céu de cinza e gaivotas.

Esqueço-me da verdade no desvario da sombra
que há nos cabelos ao caírem-te pelos ombros.
Esqueço-me do vinho a transbordar no copo vazio
de um corpo ferido pela harmonia de outro.
Esqueço-me do mar no sonho dos teus segredos.

(1981)

sábado, 7 de março de 2020

Um vírus abre uma fresta


Nos acontecimentos ligados à emergência do coronavírus, podemos dizer que há duas realidades ligadas acidentalmente. A primeira diz respeito à eventual pandemia, à facilidade do contágio que proporciona um mundo aberto e no qual toda gente viaja para todo o lado. Ligam-se a ela todas as preocupações profilácticas, as medidas de tratamento, a procura de vacinas, etc. No entanto, com a propagação do vírus e o combate à epidemia, uma outra realidade emergiu. Já diversas vezes sublinhado, um dos efeitos colaterais mais interessantes da emergência da doença é a drástica diminuição da poluição na China. O modo habitual de vida foi suspenso e as medidas para evitar o contágio vieram mostrar alguma coisa de que estávamos esquecidos.

A questão central nem será a da qualidade ambiental, mas a do próprio modo de vida em que o mundo se precipitou, marcado pela intensa mobilidade das pessoas e a sua contínua mobilização produtiva e consumidora. O fenómeno do novo nomadismo, estudado há muito na Sociologia, recebe um constante incremento pelo aumento da velocidade dos transportes e pela diminuição contínua do seu custo. Seja por turismo ou por trabalho, demasiada gente move-se todos os dias entre as diversas partes do mundo. Esta mobilidade de grandes massas está escorada na mobilização cada vez mais intensa das pessoas para a produção, onde produzem cada vez mais e a ritmos sempre mais frenéticos, e no consumo, o qual acompanha em crescimento e ritmo a produção. A vida dos seres humanos, na época em que vivemos, parece então circunscrita por uma santíssima trindade. Produção, consumo e viagem, que faz de espírito santo.

O coronavírus abriu uma fresta – na China, em Itália, por exemplo – que permite olhar para um outro mundo onde a produção e o consumo se tornaram mais lentos e a viagem foi colocada em suspenso. A fresta aberta permite que se veja o que há de insensato no modo vida para o qual nos arrastamos e deixamos arrastar. Poluição que desaparece dos céus, cidades que se tornam humanas pela ausência da massa de turistas, consumos que diminuem, produções que se descobrem supérfluas. É evidente que a fresta não vai durar para sempre e mal ela se feche, voltaremos ao mesmo. Produziremos mais, consumiremos mais e viajaremos sem descanso, até ao próximo acidente. Há muito que os homens deixaram de ter mão na máquina infernal que montaram. Talvez a fresta acidental seja um aviso e um convite à mudança de vida, mas é muito duvidoso que oiçamos o aviso e aceitemos o convite.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Ensaio sobre a luz (78)

Philippe Halsman, Jean Cocteau. “Dream of a Poet”. USA, New York City, 1949
Sempre que uma dada luz mostra certas coisas, esconde outras. Então é preciso tornar-se cego para que outra luz desça e ilumine aquilo que a primeira esconde. Logo é imperioso cegar a própria cegueira, para que uma nova luz mostre o que as anteriores ocultaram. Não há fim para aquilo que espera ser visto.

terça-feira, 3 de março de 2020

Ladj Ly, Os Miseráveis


Se há imagem que relacionamos com o nacionalismo é a da bandeira nacional a ondular, de preferência multiplicada e transportada pelas multidões. O início do filme de Ladj Ly, um francês de origem maliana, é um intenso manifesto nacionalista. Crianças e adultos transportam a bandeira de França, concentram-se em fervor patriótico, cantam em exaltação a Marselhesa e, posteriormente como se fossem um tsunami, dirigem-se para o Arco do Triunfo, onde a glória de França, acabada de se sagrar campeã do mundo de futebol, é motivo de uma grande jornada patriótica.

Que pessoas, porém, são aquelas que vemos exaltadas? Descendentes das velhas estirpes francas e galo-romanas? Não, aqueles nacionalistas franceses são negros e árabes, haverá outros, claro, mas o que a câmara mostra são aqueles. Os minutos iniciais do filme são uma reivindicação de pertença à nação por parte de pessoas que são francesas de direito mas cuja relação de facto com os franceses de origem europeia é, no mínimo, problemática.

Depois da exaltação nacionalista a trama narrativa mergulha directamente no centro de um mundo problemático, um dos subúrbios de Paris, Montfermeil. É nele que habitam muitos dos negros e árabes que comemoraram a vitória de França no campeonato mundial. Da exaltação patriótica passa-se agora à dura realidade e à difícil relação da polícia com aquela comunidade. O tema central é o da violência da polícia, violência que o próprio realizador, quando jovem, terá filmado em alturas de grande conflito.

A tensão opõe a polícia a bandos de jovens. No entanto, Ladj Ly, morador daquele bairro, deixa ver a vida social que o anima. Os negócios escuros que proliferam, a presença forte do Islão – ele é muçulmano – com matizes diferenciadas, conflitos com outras etnias – aliás o que desencadeia a narrativa é o roubo de um leão bebé num circo propriedade de ciganos por um dos miúdos negros daquela comunidade – e todo um mundo miserável, de uma arquitectura horrível e onde cresce uma juventude desocupado e sem horizontes.

O filme tem uma forte componente de intervenção social e de tomada de posição. No entanto, nem os polícias nem os jovens, as duas partes do conflito, são tratados a preto e branco. E nenhuma das partes está numa situação fácil nem parece saber lidar com essa situação, com a excepção de um dos elementos da Brigada Anti-Crime, Stéphane Ruiz, vindo naquela altura da Normandia. Este mais do que o polícia bom encarna o olhar exterior, descomprometido com o conflito, embora comprometido com valores de respeito pela humanidade do outro e códigos de imparcialidade.

Ladj Ly não oferece ao espectador um panfleto, mas uma reflexão sobre a condição humana numa comunidade onde a miséria – uma miséria que desde o século XIX e o tempo de Victor Hugo sempre ali existiu – é o ambiente onde aqueles homens, pois estamos perante um filme em que só quase entram homens, manifestam a sua humanidade mutilada. Mutilação fruto de um reconhecimento que nunca chega por parte de uma nação que é a deles, que eles vitoriam, mas que os encerra naquilo que se poderia chamar um campo de concentração de portas abertas. Estão presos pelo poderoso íman da miséria.

domingo, 1 de março de 2020

Odioso futebol


Cresci num ambiente onde se gostava de futebol e também eu, seguindo a tradição da família do meu pai, cultivei um grande interesse pelo jogo. Não por praticá-lo, pois nunca tive qualquer habilidade para o desporto, futebol ou outro. Lia os jornais desportivos, acompanhava os relatos na rádio, via os jogos, vibrava com as vitórias do clube do coração. Lembro-me de uma vez, na faculdade, a professora de Ética ter ficado espantada quando lhe disse que tinha faltado à sua aula para ver um jogo do Benfica. Isso, porém, foi há muito. Este gosto não o transmiti aos meus filhos. Na verdade, não fiz nada para o deixar como herança.

Hoje em dia, as vitórias e as derrotas do meu clube deixam-me indiferente. Há em mim uma certa tristeza por isso. O futebol era uma fantasia vinda da infância, uma ilusão sobre heróis que se superavam para derrotarem outros heróis. Curiosamente, guardo na memória muitos nomes de heróis adversários que são tão grandes para mim como os do meu clube. São todos, porém, jogadores antigos, que começam a desaparecer e que talvez tenham também eles vergonha daquilo em que o futebol se tornou.

O caso do jogador Marega em Guimarães veio apenas reforçar as razões que me afastaram desse prazer que era o futebol. Dizia-se que o desporto era uma escola de virtudes. Talvez fosse, mas o futebol parece-me que há muito não é coisa virtuosa. Os insultos racistas são apenas um dos seus lados tenebrosos, talvez o mais inumano. No futebol profissional, e não sei se no outro contaminado por este, o fair-play não existe. Adversários e equipas de arbitragem são tratados como coisas, que devem ser constantemente insultados e vaiados se o jogo não corre de feição. As regras da cordialidade e da civilidade foram proscritas dos campos de futebol. Isso, porém, não é o pior.

A suspeição constante sobre os resultados, a ideia de que nenhum troféu é vencido pelo mérito desportivo, as palavras incendiárias dos dirigentes, os ataques dos treinadores, o rancor dos comentaristas afiliados nos clubes, tudo isso cria uma atmosfera tenebrosa, uma espécie de estado de natureza hobbesiano, onde impera a guerra de todos contra todos, uma guerra até contra os jogadores ou dirigentes do próprio clube. Um conflito onde há violência verbal e física, com mortos pelo caminho. Tudo isto envolvido em muito dinheiro, numa indústria que para ganhar cada vez mais não hesita em explorar o que há de mais baixo nos seres humanos. Uma escola de virtudes? Só se as virtudes forem confundidas com o vício. O racismo nos campos de futebol é cereja em cima do bolo.

[A minha crónica em A Barca]