Loomis Dean, The grand strip of Las Vegas lighting up, 1952 |
No Público de hoje, António Guerreiro dedica um artigo, A epidemia do tédio, à situação de isolamento em que se encontra parte da população. O que me interessa no artigo não é tanto o tédio que nasce do confinamento ou deste ser um confinamento no tempo, mas uma passagem sobre a vocação pastoril dos media naquilo que diz respeito à cultura. É verdade que a comunicação social tem abundado em sugestões e indicações sobre coisas a ler, ver e ouvir para matar o tempo. O que me interessa é a oposição que o autor faz entre essa vocação de pastores, assumida pelos órgãos de comunicação social, e o ousa saber! kantiano, imagem do espírito crítico e do Iluminismo.
Talvez tenha existido um momento em que alguém possa ter pensado numa humanidade constituída por indivíduos que, ao ousar saber, desenvolveriam o seu espírito crítico e com as luzes da sua razão haveriam de gerir, firmes na singularidade conquistada e livres do rebanho, a sua vida, sem que alguém os pastoreasse, dizendo-lhes o que fazer e como viver. O que talvez tenha acontecido, porém, é que a generalidade dos que fecharam os ouvidos ao pastor e abandonaram o rebanho se tresmalhou e voga agora na mais pura errância. A singularização do ser humano terá produzido muito menos espíritos críticos do que espíritos errantes, verdadeiramente alienados, mais alienados, aliás, do que quando, na sua menoridade inquestionada, se entregavam nas mãos dos pastores.
O facto dos media assumirem a função do pastorado é apenas um sinal sobre o desejo que há, na generalidade daqueles que andam perdidos, em encontrar pastores que os protejam de si mesmos. No campo político, o desejo do pastor elegeu, em países como os EUA ou o Brasil, gente que nenhum espírito crítico formado na escola das Luzes pode aceitar ou consegue compreender. São pastores loucos? São, mas são pastores e, por isso, preferíveis aos políticos formados na escola crítica do Iluminismo. Mesmo na Europa o anseio por pastores cresce paulatinamente, enquanto a confiança nos espíritos críticos vai diminuindo. Depois, os exemplos vindos dos estados autoritários, onde pastores de mão firme regulam o rebanho, começam a ser olhados com benevolência. Há muito que a discussão sobre a emancipação entre liberais e socialistas terá perdido sentido. A questão é se a ideia de emancipação nascida nas luzes se adapta à humanidade, se esta pela sua natureza não estará, enquanto for humanidade, confinada a ser um rebanho, cuja sorte depende dos pastores que lhe calha.
“A questão do poder está tão bem escondida, nas teorias sociológicas e culturais, que os peritos podem encher milhares de páginas sobre a comunicação ou os meios de comunicação de massas na sociedade moderna, sem nunca notarem que a comunicação de que falam se faz em sentido único, não tendo os consumidores de comunicação nada a responder. Há na pretensa comunicação uma rigorosa divisão de tarefas, que afinal faz coincidir a mais geral divisão entre organizadores e consumidores do tempo na sociedade industrial (tempo este que integra e dá forma ao conjunto constituído pelo trabalho e pelos ócios). Quem não se sinta, a este nível incomodado pela tirania exercida sobre a sua própria vida, nada entende na sociedade actual (…). Todos quantos se inquietam ou se maravilham ante esta cultura de massas que, através dos mass media unificados planetariamente, cultiva as massas e ao mesmo tempo «massifica» a «alta cultura», esquecem-se apenas de que a cultura, mesmo alta, está agora enterrada nos museus, incluindo as suas manifestações de revolta e de autodestruição. E que as massas ― de que afinal fazemos todos parte ― são mantidas fora da vida (da participação na vida), fora da acção livre: subsistentes, inseridas na moda do espetáculo.” Internacional Situacionista, n.º 7, Abril de 1962
ResponderEliminarO curioso é que quando as pessoas tiveram acesso a dar resposta e a tomar a palavra, com o advento das redes sociais, a situação parece ter piorado. Não se estabeleceu, na prática, uma relação de diálogo entre seres racionais, mas o que parece ouvir-se é uma imensa gritaria a chamar por um qualquer pastor. Nem me parece que as manipulações algorítmicas das redes sejam desculpa. Essa manipulação é eficaz porque alguma coisa nas pessoas ansiava por ela.
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