sábado, 30 de março de 2019

Contributo

Mordecai Ardon, Clown, 1958

Portugal tem resistido até ao momento ao aparecimento em força de grupos políticos ditos populistas. No entanto, parece que no bloco central – PS e PSD – se sente uma grande dor pela inexistência de organizações como o Vox espanhol, o partido da senhora Le Pen, em França, e os múltiplos congéneres que há por essa Europa fora. Doridos e desejosos do aparecimento da extrema-direita em Portugal, PS e PSD vão dando os passos necessários para que, mais dia menos dia, ela apareça. Veja-se esta história dos deputados-advogados. Aquilo que era um projecto para tornar a vida do parlamento mais transparente, criando incompatibilidades entre a função de deputado – fazedor de lei – e advogado ao serviço de interesses privados, acabou sem honra nem vergonha com a sujeição do parlamento aos interesses dos negócios. Isto não cria o lugar para a extrema-direita aparecer em Portugal, mas é mais um pequeno contributo do estimável bloco central. Depois, admirem-se que os descamisados se revoltem contra as elites.

sexta-feira, 29 de março de 2019

Villa Cardillio 16. Anunciação

Vila Cardílio (Torres Novas)

16. Anunciação

Os bagos de uva deslizam-te nos dedos.
Sorves o suco da terra e escutas o rosnar
da matilha a crescer para dentro das horas.

Olha para ti, Cardílio, olha-te no espelho
deste dia aberto na branca paixão das águas,
na estrela da tarde que te anuncia o silêncio.

O teu nome é um traço fremente de areia,
a sombra desfolhada dos plátanos,
o rumor dos salgueiros na margem do rio.

1979

terça-feira, 26 de março de 2019

A família socialista, a democracia comunista, a transferência centrista e o terrorismo


A FAMÍLIA SOCIALISTA. O governo parece um lugar de convívio de famílias amigas. Não bastava já haver um casal de ministros e um ministro pai e uma ministra filha desse pai, agora a mulher de um outro ministro foi nomeada chefe de gabinete do Secretário de Estado Adjunto e dos Assuntos Parlamentares, cargo ocupado anteriormente pelo marido. É evidente que nada disto é ilegal nem sequer configura, como já por aí vi escrito, um exemplo de patrimonialismo weberiano. Trata-se apenas de falta de sensatez e de um exercício de arrogância política de quem acha que as aparências não são importantes. Os socialistas não têm emenda.

A DEMOCRACIA SEGUNDO JERÓNIMO DE SOUSA. A entrevista de Jerónimo de Sousa ao Polígrafo chega a ser confrangedora. Não apenas se refere a Maduro desvalorizando as acusações de fraude eleitoral, como, quando lhe perguntam “Porque é que tem tanta dificuldade em admitir que não há uma democracia na Coreia do Norte?”, responde: “O problema não é esse. O que é a democracia? Primeiro tínhamos de discutir o que é a democracia”. Será preciso discutir o que é a democracia para descobrir que a Coreia do Norte é uma ditadura? Também os comunistas não têm emenda.

A TRANSFERÊNCIA DE MESQUITA NUNES. Adolfo Mesquita Nunes era visto como uma das principais promessas políticas não apenas do CDS como do arco da direita e centro-direita e mesmo do país. Poderia vir a ser, quando o CDS se cansasse de Assunção Cristas, um sucessor desta na liderança do partido. Inteligente, sensato e de espírito liberal consolidado. A sua transferência para o mundo empresarial aniquila-o, na prática, para encabeçar no futuro um projecto político em Portugal. Não há no acto, claro, qualquer ilegalidade. Mesquita Nunes fez o que a generalidade dos portugueses fazem. Foi tratar da vida.

TERRORISMO. Escrevo poucas horas depois do ataque a um eléctrico na Holanda e ainda não há confirmação oficial de que tenha sido um ataque terrorista, mas tudo leva a crer que sim. Depois do ataque em duas mesquitas na Nova Zelândia, agora parece ser a vez da retaliação contra eventuais cristãos. Uma coisa une supremacistas brancos e fundamentalistas religiosos (sejam muçulmanos, cristãos ou hindus): o prazer no terror e o ódio à convivência política pacífica entre pessoas com crenças diferentes. Une-os também as respectivas utopias e a crença de que podem chegar ao poder através do exercício da violência e do medo. Não vão parar por aqui.


[A minha crónica no Jornal Torrejano]

domingo, 17 de março de 2019

Ensaio sobre a luz (56)

Julián Momoitio Larrinaga, Ballet

Elevam-se lentamente da terra atraídas pela luz que sobre elas cai. E o tempo de ascender é um instante de dura hesitação. Que seres são, perguntam-se. Mulheres? Aves? Anjos que, sustendo a queda, se abrem para a salvação? Logo, o corpo, cintilando, responde ao deslizar para o chão.

sábado, 16 de março de 2019

Um território sombrio

Mari Puri Herrero, El miedo, 1985

Os movimentos supremacistas brancos, com a sua retórica de suposta salvação do Ocidente e do homem branco, são tão repugnantes quanto o fundamentalismo islâmico. O crime perpetrado ontem na Nova Zelândia contra muçulmanos na hora da oração é tão grave quanto os crimes que têm ocorrido na Europa e de iniciativa de radicais islâmicos. Se nos deve preocupar o radicalismo islâmico, talvez ainda nos deva preocupar mais a crescente influência na política ocidental de ideias que raiam perigosamente a defesa da supremacia branca, seja lá isso o que for. Mesmo os brancos ocidentais precisam de comportamentos políticos racionais, defesa da liberdade e do Estado de direito. Neste momento, não há maior causa política do que a defesa do Estado de direito, da democracia liberal e de comportamentos políticos fundados na razão. Fora disso, apenas há um território sombrio onde impera o medo perante o crescimento do terror.

sexta-feira, 15 de março de 2019

Villa Cardillio 15. Cavalgada

Paulo Juntas, Vila Cardílio (Torres Novas)

15. Cavalgada

Uma casa no cansaço da terra.
O torso do cavaleiro ergue-se
sobre o brilho fremente do cavalo.

Vergado ao êxtase do galope,
urde um rasto de silêncio
na palidez vacilante dos campos.

O tempo sopra-lhe o óxido da ruína
e tece em seu corpo de cal gestos
de sombra sob o âmbar da aurora.

1979

quinta-feira, 14 de março de 2019

Michel Houellebecq, Submissão


Li o livro de Houellebecq mal saiu em França, pois a temática, pelo menos em aparência, o crescimento da influência islâmica na Europa, interessava-me. No entanto, não escrevi de imediato sobre ele, pois havia ali qualquer coisa que me levou a suspender a escrita. Estava muito próximo de certos acontecimentos – o massacre no Charlie Hebdo – e havia, e há nele, demasiado clara, a afirmação de uma tese com repercussões políticas. Queria afastamento para falar do livro a partir de uma perspectiva menos politizada. Talvez não seja de todo possível, pois a trama gira em torno de umas futuras eleições presidenciais francesas, no ano de 2022, em que uma coligação republicana, para derrotar Marinne Le Pen, faz eleger um candidato muçulmano, Mohammed Ben Abbes, de uma hipotética Fraternidade Muçulmana.

Mais que a questão política, porém, a obra de Houellebecq trata da relação entre tradição e modernidade e, inerente a esta relação, a questão da identidade, da construção de uma subjectividade e o seu estilhaçar na ausência dos mecanismos sociais inerentes às sociedades tradicionais. A narrativa gira em torno de um universitário francês, François, especialista em Joris-Karl Huysmans, um escritor decadentista do século XIX. Esta conexão entre François e o decadentismo é central. O pessimismo de Huysmans é retomado por François e as características de Jean des Esseintes, o herói do romance À Rebours, de Huysmans, marcado pela atitude decadentista, pelos modos e caprichos de um esteta e, fundamentalmente, pela repulsa sentida perante a modernidade são elementos caracterizadores do próprio herói de Houellebecq.

Para se compreender plenamente o que está em jogo é preciso retornar ao processo iniciado no princípio da modernidade, no qual os homens, lentamente, se vão libertando das massas – clero, nobreza e povo – que lhes dão sentido e uma direcção existencial e vão afirmando, ao longo dos séculos posteriores, a pretensão à individualidade, escorada na subjectividade e numa existência livre. François é o resultado deste processo. Ao entrar na meia idade, tendo uma vida fundada no mais exacerbado hedonismo, confronta-se com um vazio existencial, uma vida sem sentido, um exemplo do niilismo que se apoderou das elites intelectuais de França e, por extensão, do Ocidente. Perante este panorama e algumas peripécias da vida privada, chega a tomar em consideração o suicídio.

Este quadro torna patente uma certa visão da modernidade. Apesar das conquistas no campo tecnológico, o homem moderno chegou a um impasse, perante a dissolução da própria modernidade e das suas instituições. O seu corte com a tradição proveniente da Idade Média, ao dar-lhe a possibilidade de assumir uma individualidade em ruptura com um destino determinado pelo nascimento, retirou-lhe a substância, esvaziou-o e fê-lo entrar na mais crua das errâncias. François entretém-se a seduzir alunas, embora aquela a que se sentia ligado, sendo judia e perante o novo quadro político, acaba por o abandonar e refugiar-se em Israel. A modernidade, vista no século XXI, tornou-se um absurdo. Este absurdo, que culmina no niilismo, corrói a consciência das elites e também das camadas populares.

A salvação do homem ocidental – no caso, francês – revela-se então, no romance Houellebecq, num retorno e submissão à tradição. Não à tradição cristã, que deu forma à cultura europeia, mas ao Islão. A vitória do candidato islâmico contra as pretensões de Marinne Le Pen tem o condão de pôr fim à guerra civil larvar entre grupos de radicais islâmicos e grupo identitários. Ben Abbes tem o talento suficiente para uma governação ao centro, não rompendo assim com os hábitos franceses, e toma um conjunto de medidas que vão consolidar o seu poder e o triunfo do Islão em França.

Este triunfo, contrariamente ao medo que assola os europeus, não é feito pela violência, mas por um vulgar jogo político, uma aliança legitimada pela ameaça da vitória da extrema-direita. A vida torna-se pacífica, o desemprego desaparece, pois as mulheres deixam de poder trabalhar, a aparência das pessoas nas ruas torna-se um pouco mais recatada. Para além de remeter as mulheres para o lar, apenas duas medidas são tomadas que indiciam que alguma coisa mudou. A islamização da universidade, acompanhada por um generoso aumento das remunerações, e a permissão da poligamia. Para se poder ensinar na universidade é necessário converter-se ao Islão. François, independentemente das motivações egoístas, encontra aí um sentido para a sua existência e converte-se como muitos dos intelectuais franceses. Um belo salário e a regularização dos impulsos hedonistas no âmbito de uma nova legalidade religiosa através da poligamia.

O Islão surge, deste modo, como a substância que dá consistência aos indivíduos. Inscreve-os numa tradição, regula-lhes as pulsões eróticas e estabelece um ordenamento natural entre homem e mulher. Esta nova ordem penetra pacificamente na sociedade pois, subentende-se, vai ao encontro do desejo profundo dos homens. Aquilo que Houllebecq torna então patente na submissão de François, e da sociedade francesa, ao Islão é a indisposição surda dos homens com a evolução das relações entre géneros. Não há um protesto contra a remissão das mulheres para fora do mundo do trabalho, nem contra a assimetria e falta de reciprocidade implicadas na poligamia. E é este quadro que leva François a abandonar a ideia de suicídio, isto é, o niilismo.

Em resumo, a Europa, presa à sua pusilanimidade, à beira de suicidar-se, tem na tradição islâmica o instrumento para se reinventar e reassumir um papel no mundo. O romance apresenta assim um dupla face. Mostra como é possível um triunfo pacífico do Islão na Europa e, ao mesmo tempo, torna patente a cobardia e a venalidade das elites ocidentais, fundadas no niilismo produzido pela modernidade, agora em fase de decomposição. Como corolário, implícitas na trama romanesca, encontram-se duas teses. Uma de ordem política, a alternativa à islamização da França é a extrema-direita. Outra de ordem civilizacional, aliás presente num francês, René Guénon, da primeira metade do século XX convertido ao o Islão. A religião corânica é a saída para a decomposição do mundo moderno.

O romance, do ponto de vista literário, não é dos mais interessantes do autor. No entanto, está longe de ser um mero panfleto provocatório como pretendem alguns detractores. Também, apesar de situar a acção no futuro, não estamos perante uma obra a que se possa chamar uma distopia e inscrevê-la ao lado de romances como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, ou 1984, de George Orwell. Trata-se, na verdade, de um romance filosófico, uma meditação sobre o destino do Ocidente nos tempos em que vivemos.

quarta-feira, 13 de março de 2019

Ensaio sobre a luz (55)

Francis Picabia, Amanecer en la bruma, Montiguy, 1905

A manhã fugiu da noite e entregou-se, perdido o pudor, nos braços esquivos e melancólicos da névoa. Logo a luz, com as suas roldanas de aço, do abismo das trevas, ergueu o mundo para o depositar perante o olhar atónito de quem vigia.

terça-feira, 12 de março de 2019

Beatitudes 2. Início

Francisco Soto Mesa, 5.01.1, 2001

A tarde rasteja na luz oscilante que vem do porão vazio dos céus. Um pombo desenha um círculo e poisa num ramo de oliveira. O mundo compõe-se lentamente. Uma árvore, outra, o fio de uma rua, aqui e ali, as primeiras casas. É árduo o trabalho, mas os homens persistem e avista-se já um jardim. Os juncos reverberam com o cheiro da Primavera que se aproxima, ainda presa ao silêncio do futuro, mas já prenhe de palavras que hão-de ser cântico na boca das mulheres. Sobre as ervas, ignoradas, jazem as primeiras promessas. Em breve serão feitas perante o altar da aurora.

segunda-feira, 11 de março de 2019

Descrições fenomenológicas 39. O Beijo

Ana Peters, Homenaje C.D.F., 1995-98

A noite tinha descido há muito. O veludo negro, pontilhado por pequenos diamantes, cobria a praça, a que a luz eléctrica emprestava uma tonalidade desconcertante, como se ali, naquele exacto ponto, houvesse uma fronteira, fácil de transpor, entre o mundo humano e um outro habitado por fantasmas etéreos, feitos de matéria das sombras e de sobejos dos ecos perdidos na montanha. Quem não se distraísse facilmente veria cruzarem-se sob a luz dos faróis seres de ambos os mundos, sem que se cumprimentassem ou sequer dessem mostras de mútua consideração. Um casal aproxima-se da velha ponte de pedra. Vestem-se ambos com fatos de noite, como se estivessem em trânsito para uma festa, ou talvez dela tivessem fugido impelidos pela melancolia do Outono ou a novidade de uma paixão prestes a desencadear-se. Olham demoradamente o rio, ouvem o seu rumorejo, e absortos no fluxo turbulento das águas nem dão pelo passar dos automóveis ou do jornadear dos incautos fantasmas. Depois, ele vira-se, encostado ao gradeado, e ela coloca-se em frente dele. Nos olhos do outro vêem os borbotões com que o rio abre caminho em direcção à foz. Até que ela se inclina sobre ele, que, não fora a protecção da ponte, quase se desequilibra. Beijam-se, enquanto o grande prédio que ordena o espaço se mantém rígido, imóvel, tomado pelo cansaço dos séculos, que lhe retira todo o interesse pelos negócios humanos, mesmo por aqueles em que o calor da paixão torna a noite mais abrasiva. Os fantasmas, talvez assustados, desaparecem no seu mundo, escondem-se para que aquele par possa preservar, na inclinação dos seus corpos, o pudor da paixão. Um carro passa lesto, buzina e desaparece a caminho de uma outra praça, onde por certo, vestidos para uma festa, um homem e uma mulher se beijam perante a indiferença de algum monumento e o trémulo temor dos fantasmas que aí habitam.

domingo, 10 de março de 2019

Villa Cardillio 14. Outono

Anónimo romano, Frescos de Villa Albani. Roma

14. Outono

O Outono veio resguardado
de parras acobreadas.
De sol saciou-se o verde
e às vinhas levou vento e luz,
um aroma de água ao jardim.

Foi demorada a estiagem,
mas o vinho novo chegará
com obstinação no sangue
e o prenúncio de uma voz
presa à leveza da lentidão.

1979

sábado, 9 de março de 2019

Brasil, China, Entre-os-Rios e Novo Banco


1. A doença do Brasil. Apesar de sermos latinos e de permitirmos coisas inaceitáveis nos países do centro e do norte da Europa, ainda é difícil para os portugueses compreender a doença que ataca com virulência inusitada o Brasil. Essa doença tonou-se, mais uma vez, visível com a morte do neto do ex-presidente Lula da Silva, uma criança de sete. O ódio e a falta de humanidade que perpassou pelas redes sociais ultrapassa aquilo que é compreensível na Europa. E, sejamos claros, nada disso tem a ver com Lula da Silva ter sido, eventualmente, corrupto. Esses mesmos brasileiros convivem muito bem com políticos mais claramente corruptos e sobre os quais não recai o ódio que é endossado a Lula da Silva. Uma doença.

2. António Costa e a China. O primeiro-ministro português está preocupado com uma eventual onda europeia proteccionista relativamente à China. Argumenta que Portugal tem tido uma boa experiência com o investimento chinês. Ora é o investimento chinês que preocupa alguns governos europeus. O assunto é particularmente sensível. Trata-se de conjugar dois tipos de intencionalidades. Por um lado, a União Europeia tem advogado o comércio livre. Por outro, os líderes europeus começam a preocupar-se com a desnacionalização da economia e a perda de controlo nacional de sectores chaves. Afinal, parece haver um limite, até na União Europeia, para a sobreposição da economia à política. Até porque isso não existe na China, onde o investimento no estrangeiro é um acto geopolítico do Estado chinês e do Partido Comunista, mesmo que António Costa, como aconteceu com Passos Coelho, finja não perceber.

3. Os dezoito anos da queda da ponte de Entre-os-Rios. Passados dezoito anos da tragédia de Entre-os-Rios, onde morreram 59 pessoas, terá o país aprendido alguma coisa? Certamente que houve incremento nas vistorias. Também é verdade que nenhum país é capaz de garantir uma vida absolutamente segura aos seus cidadãos. Dito isto, os casos dos incêndios do ano de 2017 e a derrocada de uma pedreira na estrada de Borba – Vila Viçosa, em 2018, parecem indiciar que a atitude que conduziu ao acidente de Entre-os-Rios continua disseminada país fora. Não é apenas uma questão política, mas também o é.

4. Novo Banco. Começa a ser cansativo. Depois da Caixa, é agora o Novo Banco a pedir dinheiro ao Estado. O desenvolvimento do país foi sequestrado pela banca nacional. Esta que deveria fornecer recursos financeiros ao desenvolvimento da economia, e com isso ganhar dinheiro, parece ter por finalidade viver à conta de contribuintes generosos e pacíficos.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

sexta-feira, 8 de março de 2019

Beatitudes 1. Perfeição

Albert Bloch, Old Graveyard, 1940-41

Retiram ao dia o sudário de luz que o envolve, logo as chagas enegrecem tocadas pelo hálito da noite. Março caminha decidido pela estrada das estações, desenvencilha-se do lençol do Inverno e deixa entrever já os grandes navios que trarão a Primavera. Outrora, não há muito, passavam por aqui rebanhos conduzidos por cães e pastores. Hoje desfilam carros que largam baforadas de um fumo negro, coberto de acinte. Não tarda, surgirão, entre as escassas nuvens, as primeiras constelações e por elas se saberá do destino daqueles que caminham absortos nos negócios do coração. A perfeição de tudo está em não esperar perfeição alguma, aguardar a hesitação que leva do dia à noite e crer, sem sombra de dúvida, que das cinzas a fénix há-de renascer.

quinta-feira, 7 de março de 2019

Ensaio sobre a luz (54)

Francis Wu, Woman in Nature

À luz deserta do dia, uma mulher caminha sobre a terra nua. Da sua sombra nasce uma melancolia silvestre. Invade o campo e, rente ao chão, lembra a figura vacilante de alguém que espera um amor perdido ou a cor furtiva de uma rosa.

quarta-feira, 6 de março de 2019

Sonhos numa noite de Verão 15

Roger Fenton, Reclining Odalisque, 1858

Estava ali, como se me esperasse há muito. Despreocupada, o seio visível sob a blusa e um olhar que me queimava as vísceras. Desejei que percutisse o tambor que, lânguida, segurava, mas permaneceu imóvel. A sua imobilidade ateava-me o desejo e impelia-me para ela. Forcei-me à lentidão e aproximei-me devagar. Ela olhava-me como se os seus olhos quisessem entrar dentro de mim. Era o seu senhor, sabia-o bem. Estava ali para o meu prazer. Não resisti e, com inusitada brusquidão, rasguei-lhe a roupa. Magnífico, pensei, ao ver-lhe o corpo nu. Deixei então os dedos correr-lhe a pele. Era fria e a sua carne de mármore. Acordei ao som do meu próprio grito de terror. Só a solidão me rodeava.

terça-feira, 5 de março de 2019

Villa Cardillio 13. Ceres

Adam Elsheimer, Ceres en casa de Hécuba

13. CERES

Ardem nas páginas deste rio
as tardes ténues da infância,
a terra ávida de sementes,
a ruína do cavalo luminoso.

Quando chegam as chuvas,
Setembro declina e na poeira
escuta-se de Ceres o sussurro
envenenado de vento e erva.

1979

segunda-feira, 4 de março de 2019

Alma Pátria - 45: Fausto, África



Uma visita ao primeiro LP (Long-Play, um disco de vinil de 33 rotações) de Fausto com o título de Fausto. Foi editado em 1970, na Holanda, e parece estar muito mais perto da música que era feita por José Cid e o 1111 do que daquela feita por aqueles que, hoje em dia, são reconhecidos com companheiros de viagem musical de Fausto. Refiro-me a Sérgio Godinho, José Mário Branco ou a José Afonso. A sonoridade é moderna, mais próxima do pop-rock do que da música de intervenção, embora se note alguma preocupação de descrição e comentário ao ambiente social de então, o que se combinava com uma espécie de náusea existencialista. Em 1970, o país era completamente fechado, mas na música popular havia já claros movimentos de ruptura e de procura de novos ambientes, que a própria Primavera marcelista, em fase de esvaziamento, não tinha conseguido trazer. Faixa seleccionada, África, é uma súmula das preocupações existenciais e, porventura, políticas do autor.

domingo, 3 de março de 2019

Descrições fenomenológicas 38. Estrada de Montanha

Pier Luigi Lavagnino, Grande Albero, 1969

Refulgem os traços brancos e contínuos que previnem a aproximação às bermas, refulge o tracejado separador das vias. Da brancura imaculada daquelas linhas, ergue-se uma aura ou uma alma em direcção aos céus. Um carro passa lentamente, como se o seu condutor quisesse com os olhos beber a paisagem, fixá-la no fundo de si para, mais tarde, a poder desenhar ou transformá-la no lugar onde há-de ocorrer um crime, daqueles que só um detective de romances policiais pode desvendar. Logo passa outro carro, mas o homem mais do que para a estrada tem olhos para a mulher que, ao volante, o acompanha com um sorriso nos lábios e um halo de esperança no rosto. O abandono e a solidão voltam e envolvem a floresta que rodeia o alcatrão, uma mata de ciprestes, presos à terra e ao verde que lhes envolve os ramos. Sobre as árvores, a névoa translúcida deixa-se penetrar pelos raios de luz que o sol, tímido, infeliz, quase agoirento, permite escaparem, transformando o horizonte no esquisso de um velho castelo assombrado. Um ciclista passa rápido, entregue à vertigem sibilante da descida, envolto num equipamento garrido, que o há-de roubar à invisibilidade e dar-lhe a segurança que precisa para chegar à sua meta, num final feliz e obscuro. A névoa adensa-se, cerra o horizonte numa treva de pez, e os ciprestes escurecem em pleno dia. Ouve-se o uivo de um lobo e o ribombar de um trovão ou o eco de um tiro. A montanha logo se silencia e a estrada abre-se num convite ao viajante apressado e sem destino.

sábado, 2 de março de 2019

O fastio à esquerda


Os parceiros da maioria parlamentar parecem enfastiados uns dos outros. Poder-se-ia pensar que esse fastio mútuo que os partidos de esquerda nutrem entre si se deve ao clima político em que vivemos, à necessidade que cada um sente em marcar terreno e ocupar o maior espaço eleitoral possível. É verdade, mas não é a verdade toda nem tão pouco a mais importante. O que se passa é que a esquerda não teve o talento nem o interesse para produzir uma política partilhada pelas três forças partidárias que a constituem. O que marcou estes tempos de acordo parlamentar de esquerda foi, por um lado, uma coligação negativa contra a direita e, por outro, um cálculo constante de como ganhar votos à conta da distribuição do orçamento de Estado, jogo que as partes têm denominado como reposição de rendimentos. Como política, o único adjectivo que me ocorre é miserável.

Com o descalabro a que experiência socrática conduziu o país, este teve duas oportunidades para olhar a realidade em que vive, repensar-se e tomar decisões que permitissem enfrentar um mundo instável e ameaçador. Passos Coelho, enredado num devaneio ideológico liberalizante, optou, com a ajuda de Paulo Portas, por uma agenda política de perseguição às classes médias e aos trabalhadores, sem que se percebesse a utilidade, tanto política como económica, do exercício. António Costa, menos ideológico, viveu sempre na expectativa de fazer do actual governo a rampa de lançamento de uma futura maioria absoluta. À sua esquerda a motivação, para além do sarro ideológico, foi evitar essa hipotética futura maioria dos socialistas. Com tudo isto, o país perdeu oito anos. Resolveu, temporariamente, o défice, mas fora isso degradou-se.

Para os eleitores de esquerda esta experiência, se olhada com frieza racional, tem um sabor meio amargo. Podem ficar agradados por se terem libertado das idiossincrasias de Passos Coelho, dos seus devaneios ideológicos e da perseguição às classes médias e populares, mas fizeram a prova da impotência dos partidos de esquerda para abandonarem as suas crenças mais dogmáticos e disporem-se a um programa comum que enfrentasse os problemas do país (e não apenas desta ou daquela classe social) no âmbito dos compromisso em que nos movemos. Esta é a causa do fastio que tomou conta da esquerda portuguesa, o que é reforçado pela sensação de que uma repetição desta solução política não apenas é difícil como é inútil. A esquerda teve uma oportunidade que se apresta, por falta talento político e de respeito pelos seus eleitores, para deitar para o lixo.

[A minha crónica em A Barca]

sexta-feira, 1 de março de 2019

O país biface

Pablo Picasso, Minotauro y caballo, 1935

Por vezes, ainda há alguma esperança para este país. É reconfortante ver que um empresário português, Gonçalo Quadros da Critical Software, afirmar que o salário mínimo de 635 € - e este é apenas na função pública – é uma indignidade, tão miserável ele é. E não é apenas esta afirmação que dá esperança, é a sua visão do mundo e da vida empresarial. Essa esperança, contudo, diminui de imediato perante mais uma história bancária. O Novo Banco precisa de uma injecção de 1,15 mil milhões de euros. O mundo empresarial e financeiro que desde os tempos de Cavaco Silva foi incensado, agraciado e condecorado deixou o país à porta da miséria e os efeitos estão longe de serem coisas do passado. O conflito mais importante que se trava neste momento em Portugal não é entre a direita e a esquerda, entre patrões e trabalhadores. É entre empresário como Gonçalo Quadros e aqueles que representam tudo o que está por detrás das agruras por que passa a banca portuguesa.