segunda-feira, 11 de março de 2019

Descrições fenomenológicas 39. O Beijo

Ana Peters, Homenaje C.D.F., 1995-98

A noite tinha descido há muito. O veludo negro, pontilhado por pequenos diamantes, cobria a praça, a que a luz eléctrica emprestava uma tonalidade desconcertante, como se ali, naquele exacto ponto, houvesse uma fronteira, fácil de transpor, entre o mundo humano e um outro habitado por fantasmas etéreos, feitos de matéria das sombras e de sobejos dos ecos perdidos na montanha. Quem não se distraísse facilmente veria cruzarem-se sob a luz dos faróis seres de ambos os mundos, sem que se cumprimentassem ou sequer dessem mostras de mútua consideração. Um casal aproxima-se da velha ponte de pedra. Vestem-se ambos com fatos de noite, como se estivessem em trânsito para uma festa, ou talvez dela tivessem fugido impelidos pela melancolia do Outono ou a novidade de uma paixão prestes a desencadear-se. Olham demoradamente o rio, ouvem o seu rumorejo, e absortos no fluxo turbulento das águas nem dão pelo passar dos automóveis ou do jornadear dos incautos fantasmas. Depois, ele vira-se, encostado ao gradeado, e ela coloca-se em frente dele. Nos olhos do outro vêem os borbotões com que o rio abre caminho em direcção à foz. Até que ela se inclina sobre ele, que, não fora a protecção da ponte, quase se desequilibra. Beijam-se, enquanto o grande prédio que ordena o espaço se mantém rígido, imóvel, tomado pelo cansaço dos séculos, que lhe retira todo o interesse pelos negócios humanos, mesmo por aqueles em que o calor da paixão torna a noite mais abrasiva. Os fantasmas, talvez assustados, desaparecem no seu mundo, escondem-se para que aquele par possa preservar, na inclinação dos seus corpos, o pudor da paixão. Um carro passa lesto, buzina e desaparece a caminho de uma outra praça, onde por certo, vestidos para uma festa, um homem e uma mulher se beijam perante a indiferença de algum monumento e o trémulo temor dos fantasmas que aí habitam.

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