Ana Peters, Homenaje C.D.F., 1995-98
A noite tinha descido há muito. O veludo negro, pontilhado por
pequenos diamantes, cobria a praça, a que a luz eléctrica emprestava uma
tonalidade desconcertante, como se ali, naquele exacto ponto, houvesse uma
fronteira, fácil de transpor, entre o mundo humano e um outro habitado por
fantasmas etéreos, feitos de matéria das sombras e de sobejos dos ecos perdidos
na montanha. Quem não se distraísse facilmente veria cruzarem-se sob a luz dos
faróis seres de ambos os mundos, sem que se cumprimentassem ou sequer dessem
mostras de mútua consideração. Um casal aproxima-se da velha ponte de pedra.
Vestem-se ambos com fatos de noite, como se estivessem em trânsito para uma
festa, ou talvez dela tivessem fugido impelidos pela melancolia do Outono ou a
novidade de uma paixão prestes a desencadear-se. Olham demoradamente o rio,
ouvem o seu rumorejo, e absortos no fluxo turbulento das águas nem dão pelo
passar dos automóveis ou do jornadear dos incautos fantasmas. Depois, ele
vira-se, encostado ao gradeado, e ela coloca-se em frente dele. Nos olhos do
outro vêem os borbotões com que o rio abre caminho em direcção à foz. Até que
ela se inclina sobre ele, que, não fora a protecção da ponte, quase se
desequilibra. Beijam-se, enquanto o grande prédio que ordena o espaço se mantém
rígido, imóvel, tomado pelo cansaço dos séculos, que lhe retira todo o
interesse pelos negócios humanos, mesmo por aqueles em que o calor da paixão
torna a noite mais abrasiva. Os fantasmas, talvez assustados, desaparecem no
seu mundo, escondem-se para que aquele par possa preservar, na inclinação dos
seus corpos, o pudor da paixão. Um carro passa lesto, buzina e desaparece a
caminho de uma outra praça, onde por certo, vestidos para uma festa, um homem e
uma mulher se beijam perante a indiferença de algum monumento e o trémulo temor
dos fantasmas que aí habitam.
Muito bom.
ResponderEliminarUm abraço
Muito obrigado.
EliminarAbraço