sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Ensaio sobre a luz (35)

Ed van der Elsken, Tokyo, 1984

Há mulheres que trazem nelas o mistério da luz. Se cerram as pálpebras, tudo à sua volta escurece até que a noite se apodera do mundo. Se os olhos se abrem, o dia nasce e uma luz venturosa desce sobre a terra.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

O passado e a tradição


Graças a um artigo de António Guerreiro, no Público, descobri dois versos extraordinários do realizador e poeta italiano Pier Paolo Pasolini. Deste, conheço alguns filmes, mas nunca li a sua poesia. Pasolini sempre me pareceu ligado ao que, noutros tempos, se chamava, não sem acrimónia política e social, forças progressistas. Os versos, talvez por eu não conhecer a poesia do autor, vejo-os como surpreendentes: Io sono una forza del passato, /Solo nella tradizione è il mio amore (Eu sou uma força do passado, /Só na tradição reside o meu amor).

Os versos não nos dizem que o passado é uma força, tão pouco indicam que a verdade está na tradição. Sublinham apenas que o sujeito poético é uma força do passado, cujo amor – não o conhecimento ou a acção – reside na tradição. Mais que uma declaração sobre o poder do passado e da tradição, Pasolini revela a fragilidade desse passado – cuja força reside agora num indivíduo, talvez solitário – e a impotência da tradição, convertida em objecto de culto sentimental. Interpretemos estes versos à luz da vida que vivemos. Peguemos em duas instituições com passado e tradição. A Presidência norte-americana e o Papado católico.

Se há instituição que, na época moderna, pode reivindicar um passado de liberdade e democracia é a Presidência dos EUA. Esse facto, no entanto, não impede que um presidente tente, com não pouco apoio popular, fazer tábua rasa desse passado. Alguém pode dizer: eu sou uma força do passado, eu acredito na liberdade e na democracia. A declaração, todavia, não é suficiente para travar a demolição do edifício democrático a que se assiste. Outra pessoa pode proclamar: só na tradição católica do Papado reside o meu sentimento. Este, contudo, é impotente perante o triste espectáculo da pedofilia na Igreja e a guerra sem quartel entre o Papa Francisco e os seus inimigos.

Quando o passado e a tradição se manifestam apenas no sentimento de uma subjectividade, e não na força plena e objectiva das instituições, estão ambos aniquilados, transformados em poeira, sublimados no suspiro poético de um coração saudoso. E é isso que marca, nos dias de hoje, as instituições que herdámos. O seu passado e a tradição que dele vivia, os fundamentos em que assentava a sua vida, estão a transformar-se em pó. As consequências não são difíceis de perceber. A queda das velhas instituições não é apenas a morte do passado e da tradição, mas a derrocada do presente. Somos nós – o nosso modo de vida e as nossas crenças – que desabamos perante o nosso  próprio olhar de espectadores incrédulos.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

terça-feira, 21 de agosto de 2018

No Limiar da Porta 6. O sossego sopra

Hermen Anglada-Camarasa, La higuera, 1916-18

6. O sossego sopra

O sossego sopra
a folha da figueira.

A luz levita
no rumor dos ramos.

Chegou Setembro:
Silêncio e céu.

Então o corpo silva
e sangra e sonha.

1978

domingo, 19 de agosto de 2018

Alma Pátria - 44: Carlos do Carmo - Por morrer uma andorinha





Talvez em 1973, ano em que foi editado o álbum Por Morrer uma Andorinha, as mágoas de amor já não bastavam para alimentar o fado. Na alma da pátria, nesses tempos, alguma coisa estava em acelerada mutação. A fixação no passado é substituída por uma abertura ao presente e ao futuro. Não sem abuso, poder-se-ia ver neste fado uma alegoria à situação política. O desengano amoroso como metáfora do marcelismo e da sua invernosa primavera. Em 1973, o país não o sabia claramente, mas já toda a gente estava cansada do passado, amoroso (uma metáfora dos costumes) ou político, e tudo se encaminhava, em passo apressado, para um novo rumo. Por morrer uma andorinha não acaba a Primavera.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Protectorado


A minha crónica no Jornal Torrejano.

O Verão teve, até agora, dois acontecimentos políticos maiores. O caso Robles e o fogo de Monchique. Maiores para os mass media e para uma certa direita social. Por direita social não me refiro aos partidos políticos de direita, os quais não estiveram particularmente mal em ambos os casos, mas àqueles que se manifestam nas redes sociais, nas caixas de comentários dos jornais online, que surgem como espontâneos nos directos das televisões, isto é, a uma militância informe, mas muito activa, que vive despeitada pelos seus não estarem no governo.

A importância dada ao vereador Robles é extraordinária. Nem no Bloco de Esquerda era personagem de primeiro plano. E cometeu ele um crime? Parece que a única coisa que fez foi tirar partido legal de decisões provenientes do anterior governo e, ao fazê-lo, entrou em contradição com o que andou a apregoar para se eleger. O que é espantoso não é que um vereador do BE tenha um comportamento político venal e entre em contradição. Espantosa é a importância que os mass media e a direita social deram a uma personagem de quinta categoria no panorama da política nacional, que nem sequer cometeu um crime ou prejudicou o Estado.

O caso do incêndio de Monchique chegou ao caricato de se perceber uma ânsia mal disfarçada para que houvesse uma grande tragédia. A partir do que aconteceu no ano passado, há sectores que vêem em cada incêndio que se descontrola uma ocasião para disparar sobre o governo. Quanto mais trágico for um incêndio, melhor. Os governantes vivem numa espécie de terror. Se estão em silêncio, é porque estão em silêncio. Se falam, é porque falam. Digam o que disserem, será sempre montada uma campanha contra eles a partir de palavras descontextualizadas. O problema disto não reside nos ataques a Robles ou ao governo. Está no que esses ataques ocultam.

Há umas semanas escrevi que as esquerdas não tinham um programa para o país. A virulência do ataque a Robles e ao governo, no caso de Monchique, mostra que também a direita não tem uma ideia para Portugal. Os partidos políticos de direita não têm nada para oferecer aos seus eleitores. Parte destes, perante o vazio, vive de casos e de ressentimento. A importância dada a Robles e a Monchique são sinais de que na direita faltam causas substanciais. Na verdade, nem à esquerda nem à direita existe qualquer ideia sólida e mobilizadora. Os que governam tentam não fazer muitos erros, as oposições – actuais ou anteriores – vivem de casos, enquanto as instituições internacionais tomam conta de nós. Foi a isto que Paulo Portas chamou protectorado.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Ensaio sobre a luz (34)


Uma auréola de luz envolve os pés da modelo como se a santidade deste tempo se tivesse deslocado do alto para o baixo e a única ascese possível fosse a de deslizar sob a luz dos holofotes.

Fotografia: Frank Horvat, Haute Couture Collections, Paris, 1951

terça-feira, 14 de agosto de 2018

No Limiar da Porta 5. No silêncio da tarde

Vincent Van Gogh, Campo de grano con cuervos, 1890

5. No silêncio da tarde

No silêncio da tarde,
poeira de palha.

Um odor de luz
no restolho das ruas.

Cânticos, se o corvo
voa no vendaval.

1978

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

O dia da aposentação

A minha crónica em A Barca.

Há uns anos descobri que para um professor do ensino não superior todos os problemas da educação possuem uma data inexorável de resolução. O dia da aposentação. Aquilo que parece irresolúvel torna-se resolúvel. Voltar as costas à escola e esquecer que ela existe. Este cinismo não nasceu do acaso, nem se deve à índole malévola de quem tem por missão ensinar os outros. Como muito dos cinismos, nasce de uma impotência perante a realidade. E que realidade é essa? Ela é multifacetada, mas há duas características que interferem de sobremaneira na relação dos professores com a escola.

Por um lado, existe na sociedade portuguesa uma cultura inimiga da aprendizagem e daquilo que esta exige. Aprender exige atenção, dedicação, esforço e superação de obstáculos. Aprender exige que se seja capaz de sacrificar os prazeres e desejos imediatos a um prazer maior que nascerá do esforço e da auto-superação. Este tipo de atitude, contudo, é rara na sociedade portuguesa e a maioria dos alunos, quando chega às escolas, já vem vacinada contra o esforço. Esta cultura ferozmente inimiga da aprendizagem é uma realidade que qualquer professor conhece, mas é completamente desconhecida pelo Ministério da Educação.

Aqui surge uma segunda característica que distorce a relação do professorado português com a escola. Os governantes educativos vivem em completa e contínua negação da realidade. Para eles não existe qualquer cultura adversa à aprendizagem em Portugal. Se os alunos não aprendem, o problema não está na cultura que trazem consigo, mas nas estratégias de ensino que são adoptadas. Então, os governos entregam-se à prática delirante de promover reformas sobre reformas educativas (há mais uma em curso) com o desígnio de obrigar os professores a usar as estratégias que farão o milagre de multiplicar a sabedoria dos alunos, como Cristo, em Betsaida, multiplicou pães e peixes.

O problema é que ninguém sabe, a começar pelos governantes reformadores, que estratégias são essas que hão-de dar de comer a quem não tem fome. Como as ideias delirantes dos governantes são inaplicáveis, pois negam a realidade existente, aqueles criam nas escolas um inferno com a finalidade de obrigar os professores a justificar por que razão ideias tão brilhantes não têm qualquer efeito na realidade. Isto tornou as escolas universos kafkianos, cheias de regras e práticas burocráticas, problemas imaginários e soluções absurdas. Durante anos, impotentes, os professores tentam perceber o porquê de tudo isto, até que um dia descobrem que tudo se resolverá quando chegar o dia da aposentação.