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terça-feira, 2 de setembro de 2025

Ciência e democratização da opinião


Uma notícia do Público informava sobre as razões que levam a geração Z, mas não só, a rejeitar o protector solar. O movimento antiprotecção solar é idêntico ao movimento antivacinas ou ao terraplanismo. Para além da contestação da ciência – isto é, do conhecimento rigorosamente testado e avaliado –, estes movimentos partilham o meio de propagação: as redes sociais. Estas são uma forma de democratização. Qualquer um pode emitir a sua opinião sobre qualquer coisa, sem que tenha de provar o que afirma. Antigamente, também existiam opiniões estapafúrdias e idiotas. Contudo, a sua propagação era muito limitada. As redes sociais mudaram tudo. Elas são o lugar em que qualquer opinião pode competir para arregimentar seguidores.

Este democratismo das redes sociais, ao dar força a movimentos como os acima referidos, veio revelar o carácter aristocrático do conhecimento científico. Este é produzido e compreendido por uma elite, um clube seleccionado que, para entrar nele, exige longos anos de preparação e um conjunto não pequeno de provas ao longo do caminho. Isto significa que a maior parte de nós – quase todos – não está habilitado para trabalhar em ciência, e mesmo aqueles que estão, estão apenas num ramo muito específico. O que acontecia, antes das redes sociais invadirem o panorama da intercomunicação humana, era que havia um respeito tácito, veiculado pela comunicação social e pelos valores da sociedade, pelos esforços desses homens e mulheres que dedicavam uma vida ao conhecimento. Presumia-se – e com razão – que sendo especialistas, tinham uma autoridade real para falar sobre a sua área, fossem vacinas, cancro de pele, ou física nuclear.

O que se assiste é uma revolta da plebe – ou dos sans-culottes, caso se prefira a França da Revolução ao Império Romano – contra o patriciado ou a aristocracia do conhecimento científico. A revolta tem uma característica específica. Não apenas pretende ter voz sobre assuntos de natureza científica, como quer ter o poder da autoridade: as suas crenças, sem qualquer validação, são a verdade e a ciência, com o seu laborioso e controlado processo de produção de conhecimento, não passa de uma mistificação. Estamos a assistir a um teste terrível dos efeitos da liberdade de expressão. Até que ponto a ciência e o conhecimento racional podem sobreviver a estes ataques irracionais? Não é apenas ao nível político, com a erosão das democracias, que as redes sociais geram problemas. Também são um factor de turbulência para a ciência e para os benefícios que os seres humanos podem tirar dela. Já não é impossível pensar que uma nova Idade das Trevas esteja no horizonte.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Ciência e pensamento crítico


Foi para a Ciência que se viraram as esperanças quando se precisou, desesperadamente, de uma vacina para a COVID-19. Ao mesmo tempo que as expectativas se voltavam para ela, crescia no mundo uma contestação – mais ou menos dissimulada, mais ou menos violenta – dessa mesma Ciência, dos seus resultados e das teorias que ela disponibiliza para melhorar o conhecimento humano sobre a realidade e, a partir desse conhecimento, encontrar soluções para os problemas com que nos defrontamos.

Uma das formas mais insidiosas de superstição é aquela que se baseia num suposto pensamento crítico ou no direito de pensar por si mesmo, numa espécie de afirmação à outrance do lema kantiano ‘Pensar sempre por si mesmo’. A estratégia é colocar em pé de igualdade uma forma de conhecimento altamente estruturada, obedecendo a rigorosos protocolos de controlo, testagem e avaliação, isto é, a Ciência, com opiniões e conjecturas que não têm qualquer controlo. Aliás, nem se trata de colocar em pé de igualdade Ciência e estas opiniões. Pretende-se mesmo julgar a Ciência com base nessas opiniões, como se isso fosse uma atitude crítica altamente inteligente.

Não temos o dever de pensar por nós próprios? Temos, mas pensar por si próprio, de modo responsável, é avaliar, com base num método rigoroso, aquilo que nos é proposto. Isso, dir-se-á, levanta um enorme problema. Por exemplo, como posso avaliar se devo ou não ser vacinado contra a COVID-19? Não tenho conhecimento para fazer uma avaliação crítica da vacinação. Como eu está mais de 99% da humanidade. A única coisa que podemos fazer, para pensar criticamente, é confiar na autoridade científica dos cientistas. Não se trata, porém, de uma aceitação cega de uma autoridade. Há regras para aceitar argumentos de autoridade. São essas regras que permitem adoptar uma atitude crítica sobre certo assunto que não dominamos.

Só devemos aceitar um argumento de autoridade se aqueles que o propõem são efectivamente autoridades no assunto, se não existirem contra-exemplos credíveis que ponham em causa o que a autoridade afirma e se existir um forte consenso científico sobre esse assunto, por exemplo, sobre o benefício da vacinação. Ora, quando as pessoas, em nome de um suposto pensamento crítico e de um direito a pensar por si, rejeitam os resultados da Ciência, não estão a pensar criticamente. Estão a submeter-se à autoridade de pessoas que não dominam os assuntos, que emitem opiniões que ninguém controla nem avalia. Estão a trocar o conselho de autoridades competentes por crenças sem qualquer fundamento. Escolhem a superstição e não o pensamento crítico.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Saber e poder


Um velho lugar-comum diz que saber é poder. O conjunto de facécias, a propósito da pandemia do COVID-9, vindas de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, torna evidente uma outra coisa, poder é saber. O saber científico torna-se irrelevante, quando não motivo de chacota, e a enunciação feita a partir do poder, por mais perigosa e contraditória que seja, torna-se saber. O presidente é que sabe, sublinha a claque. A claque, note-se, é composta por largas fatias do eleitorado. Esta experiência em dois grandes países pertencentes ao mundo ocidental atinge tanto o poder como o saber.

Quanto ao poder, as democracias funcionam muito bem se as suas normas informais são respeitadas pelas partes, se a sua natureza representativa e liberal é escrupulosamente observada. Fragilizam-se com facilidade, até se tornarem caricaturas perigosas, quando essas regras informais são implodidas por demagogos. As democracias enfrentam, neste momento, um desafio dos mais decisivos. Elas podem morrer nas mãos de tiranos e de elites obscenas, sob o aplauso de claques ululantes. Os regimes democráticos precisam de uma vacina que os imunize contra o poder contagiante do vírus da demagogia.

Também a ciência passa por um momento terrível. Refiro-me à intervenção do poder político, como nos casos já referidos, para desconsiderar as conclusões científicas e impor medidas ao arrepio do recomendado pelo conhecimento. Isto não é novidade, mas pensava-se que em democracia a autonomia da ciência seria respeitada, que o poder político evitaria entrar em choque com o saber científico. Havia precedentes. O decretar político do criacionismo como teoria científica ou a negação do impacto da acção humana na degradação ambiental do planeta. Agora, com a pandemia, podemos estar numa nova fase da escalada do poder para controlar a ciência e negá-la como lugar da verdade.

Durante muito tempo, o mundo ocidental ufanou-se de ser o lugar da civilização. Aliava a democracia política, a prosperidade, a relativa igualdade entre cidadãos e um saber científico livre e respeitado. O século XXI não lhe tem sido propício. Uma crescente desigualdade, ataques, cada vez mais fortes, à democracia dentro dos países democráticos e agora a própria ameaça à ciência e à sua autonomia. Imaginou-se que regressar a um tempo em que fanáticos controlavam aquilo que se podia saber era um delírio de mentes pessimistas, começamos a ter evidências de que não é assim e que a vida civilizada pode acabar. É muito perigoso quando o poder acha  que é nele que está o lugar do saber e da verdade.

[A minha crónica de Maio em A Barca]

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Reconhecimentos

Charles Émile Jacque - Sheep

Conforme a ciência vai produzindo conhecimento sobre animais não humanos, mais difícil é manter a atitude e a distância que a nossa espécie ostenta perante as outras. A ciência mais do que nos mostrar a existência de uma diferença absoluta, trata antes, sem qualquer objectivo ideológico, por nos mostrar a proximidade entre as espécies animais que partilham o planeta. Esses animais não são meras coisas que estão aí à nossa disposição, mas, surpreendentemente, são, também eles, o nosso próximo. Isso não significa que o homem tenha de deixar de ser omnívoro, mas implica um relação diferente da que existe numa cultura que olha para tudo do ponto de vista da mercadoria. O facto de elas reconheceram a face humana não deixa de suscitar alguma reciprocidade. Em certas culturas tradicionais - talvez na generalidade dessas culturas - não havia as fantasias do vegetarianismo, mas cultivava-se um grande respeito pelo animal. Esse respeito significava - e significa - comprometer o homem numa relação moral com os animais não humanos.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Poderes encantatórios

IOP – Institute of Physics, Reino Unido - Descrição geométrica das formas do fotão

Em pequena escala, a luz chega a uma superfície como se fosse um chuvisco de partículas.

Compreender como a luz pode ser tanto uma onda electromagnética quanto, ao mesmo tempo, um enxame de fotões exigirá a completa construção da mecânica quântica. (Carlo Rovelli, Reality Is Not What It Seems: The Journey to Quantum Gravity)

Deve-se a Max Weber a constatação de que no Ocidente se teria dado um processo de desencantamento do mundo. Isso significa, ao nível religioso, a mitologia e as práticas mágico-rituais teriam sido substituídas por práticas de carácter ético. Um factor central neste processo de desencantamento do mundo foi a emergência da ciência moderna a partir da revolução científica dos séculos XVI e XVII. A ciência teria substituído as interpretações míticas e metafísicas do mundo por um saber positivo, fundado na aliança entre a experiência e a razão.

Se se ler com atenção o texto, citado em epígrafe, do físico italiano Carlo Rovelli descobrimos que talvez a morte do mundo encantado tenha sido uma notícia precipitada. Observe-se a estratégia que ele segue para falar da luz. Num primeiro momento, utiliza o tropo da comparação. A luz é como um chuvisco de partículas. Dá a ver aquilo que é invisível aos nossos olhos, a luz, através da comparação com um fenómeno físico, o chuvisco, um pequeno aguaceiro. O mundo desencantado da ciência toma agora uma coloração que o reabre ao encantamento.

O processo, porém, está apenas no seu início. À comparação segue-se a metáfora. A luz é um enxame de fotões. Ao tentar tornar intuitiva a compreensão de um fenómeno que os nossos sentido são incapazes de perceber, Rovelli não tem outra solução que não a de retornar ao território encantado do mito. E esse retorno é intensificado pelo resultado do uso da metáfora. Dizer que a luz é um enxame de fotões implica arrastá-la para o território do animismo. Podemos agora imaginar a luz como sendo constituída por exércitos de abelhas – ou vespas – luminosas. Nada que o mito, nos tempos encantados pré-modernos, não tenha feito.

Tudo isto permite compreender a possibilidade de perceber o mito, a magia, o encantamento religioso e a própria especulação metafísica como tendo origem não num não saber, numa ignorância fundamental do real ou numa desatenção à experiência, mas na faculdade humana da linguagem e da sua constituição intrinsecamente tropológica. O encantamento do mundo é o resultado de nós, seres humanos, possuirmos linguagem, uma linguagem sempre equívoca, onde as ditas figuras de estilo, ou tropos, são o elemento central. Mal usamos a palavra, o mundo encanta-se. E não há positivismo, moralização da religião, desconstrução dos mitos ou definição conceptual que possa alguma coisa contra o poder encantatório da linguagem. Enquanto o homem for um ser de linguagem, o mundo nunca deixará de se encantar.

sábado, 16 de abril de 2016

Um exercício de purificação

John Everett Millais - Love, From Willmot's Poets

Esta notícia sobre as origem possíveis da monogamia trouxe-me à memória o recente sínodo da Igreja Católica sobre a família. Este foi assombrado pela visão do casamento monogâmico indissolúvel e pela dificuldade em lidar oficialmente com a homossexualidade. Que problema traz esta notícia para essa concepção? Um problema muito simples. O casamento monogâmico não resultou nem de uma opção moral nem de uma revelação divina, mas de uma necessidade da espécie para sobreviver, limitando as doenças sexualmente transmissíveis, em determinados ambientes sociais.

Não pretendo argumentar a favor de normas não monogâmicas de casamento ou de relação sexual. Quero apenas chamar a atenção para este tipo de informação. Ele vem relativizar aquilo que se apresenta, ao nível da religião, como um valor absoluto. A monogamia e a indissolubilidade do casamento são valores relativos, resultantes de uma necessidade específica posta pelo ambiente social. Esta relativização coloca, por outro lado, uma outra questão: que relação pode haver entre ciência e religião? Há uma visão, alimentada por certos círculos propensos ao ateísmo, de oposição absoluta entre este dois tipos de crenças. A esta visão, preconceituosa e ingénua, corresponde uma outra, não menos preconceituosa e ingénua, que pretende justificar a fé com a ciência.

As duas visões acima referidas ocultam uma terceira. A ciência pode ter um impacto purificador na religião e na vida espiritual. Como? Tornando evidente a relatividade daquilo que, na religião, pertence não à experiência espiritual mas ao domínio da vida social contingente, que, por isso, é relativo e mutável. A regulação da sexualidade e as opções matrimoniais não possuem um valor absoluto e, por isso mesmo, não são nem factor limitativo nem fomentador de uma vida espiritual plena e realizada. A ciência pode ter, deste modo, a virtude de ajudar as religiões a libertarem-se dos preconceitos e a concentrarem-se naquilo que é o seu núcleo essencial: a vida espiritual dos homens, a libertação das ilusões, a sua relação com o absoluto e a transcendência, com o mistério do ser.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

A duplicidade em que vivemos

Jackson Pollock - White Light (1954)

Hoje assisti a uma conferência do físico Carlos Fiolhais sobre a história da evolução das concepções acerca da luz. Há neste tipo de acontecimento qualquer coisa que não deixa de me espantar. O espanto é gerado, em parte, pela confiança manifestada pelo conferencista no progresso da ciência. Diria que estava perante um digno herdeiro do iluminismo, de alguém que manifesta uma confiança na razão e na capacidade do homem em pôr problemas e de, através do esforço da razão, os resolver. Esta conferência, se tivesse acontecido nos anos 80, não me teria provocado o espanto que provocou hoje. O que terá acontecido de lá para cá? Fundamentalmente, o papel primordial da razão tem sido posto em causa nas últimas décadas. A emergência, no palco mundial dos fundamentalismos religiosos, veio desafiar as narrativas alicerçadas na confiança na razão.

Estava a assistir - com grande prazer, saliente-se - à performance  de Carlos Fiolhais e pensava, ao mesmo tempo, que muitos dos problemas que se colocam hoje em dia nascem de crenças sem qualquer alicerce racional, as quais desabaram na Europa e são hoje parte da sua vida. A Europa que se esforçou desde o século XVII para expulsar o mito da vida social, tornando-o um assunto da esfera privada, essa Europa que construiu um conjunto de instituições desencantadas, como muito bem o percebeu Max Weber, chega ao século XXI confrontada com narrativas que trazem consigo o mundo encantado, sob a forma de pesadelo, que tinha expulso por um trabalho laborioso de cinco séculos. E é esta duplicidade - a da afirmação da autonomia da razão e a da negação dessa mesma autonomia da razão - que não deixa de me espantar, de me dar que pensar.

terça-feira, 9 de junho de 2015

A poesia quântica e a prosa determinista

Gustavo Torner - Átomos: Los Cuatro Elementos. Fuego (1986)

Não sei nada de Física. Nem da que explica a realidade macroscópica nem da quântica, aquela que trabalha sobre a realidade microscópica, a do átomo e das partículas subatómicas. A primeira, por complexa que seja, parece não ter o poder poético da segunda. Esta é um estranho e assombrado mundo, que para mim, pobre mortal, é incompreensível. Não é da minha ignorância, porém, que quero falar, mas da assombração desse mundo incompreensível. Veja-se por exemplo o que descobriram uns cientistas australianos: aquilo que acontece às partículas no passado é apenas decidido quando elas são observadas e medidas no futuro. Até lá a realidade é apenas uma abstracção.

Diz-nos a nossa experiência que os acontecimentos passados condicionam e determinam os futuros. No mundo microscópico que compõe toda a realidade, as coisas parecem passar-se de outra maneira. O Professor Truscott afirma literalmente “um acontecimento futuro induz o fotão a decidir o seu passado”. E aqui descubro o meu fascínio – o espanto de um ignorante – pela física quântica. Não pense o leitor que se isso se deve à sua natureza especulativa que a torna irmã da filosofia e, em certos casos, da própria teologia. Não.

Releia-se a frase do professor Truscott. Percebe-se imediatamente que estamos no domínio da mais pura poesia. A poesia é lugar onde o discurso suspende a ordem normal do mundo e mostra este de pernas para o ar. Agora estou tentado a dizer: a poesia mostra o mundo na sua faceta quântica. Este súbito cruzamento entre mecânica quântica e poesia não pretende dizer que os cientistas que se dedicam a esse mundo são uns poetas, isto é, uns lunáticos, que é assim que o senso comum considera os poetas.

Pretende mostrar outra coisa: a realidade, na sua dimensão quântica, a mais fundamental, tem uma natureza poética, como se aquela realidade fosse composta por metáforas, metonímias e oximoros. É o futuro que determina o passado. É o fotão que é ao mesmo tempo onda e partícula. É, imagine-se, o pobre do gato de Schrödinger que está, ao mesmo tempo, morto e vivo. Com tudo isto há, para um ignorante quântico como eu, um outro mistério: quando e como aquele mundo proteico e poético se transforma em prosa?

A linguagem prosaica, para certos pensadores, é apenas a degradação da linguagem poética original. As metáforas vivas tornam-se catacreses, metáforas mortas, e a linguagem banaliza-se na prosa. O que eu gostava de saber mesmo é como a realidade quântica se banaliza na realidade em que vivemos, e, em vez de haver viagens de ida e volta entre passado e futuro, há apenas uma viagem que não tem retorno? Gostava mesmo de saber qual é o momento em que nós, pobres gatos de Schrödinger, abandonamos o paraíso onde estamos vivos apesar de estamos mortos e caímos naquele mundo em que, quando morrermos, estamos definitivamente mortos. Não podemos substituir a prosa determinista da mecânica newtoniana pela poesia quântica?

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Ciência e Política (Léo Strauss)

Charles Clifford - The Armor of Philip III (1866)

Para detalhar um pouco mais, é verdade que o ensinamento de Platão a propósito da tirania é indispensável à compreensão do “totalitarismo” de hoje, mas desconhecer-se-ia este fenómeno contemporâneo se se o identificasse pura e simplesmente à tirania do passado. Basta notar que o “totalitarismo” de hoje é essencialmente fundado sobre as “ideologias”, e em última análise sobre uma ciência vulgarizada ou desviada, enquanto que o fenómeno antigo não repousava sobre tal fundamento (Léo Strauss, Sur une nouvelle interprétation de la philosophie politique de Platon).

Strauss escreve este texto em 1946, um tempo onde o fenómeno totalitário está especialmente vivo. Nas décadas seguintes desenvolveu-se todo um pensamento de oposição entre democracia e totalitarismo. O apogeu prático-político dessa reflexão teórica é a derrota do campo comunista, simbolizada na queda do Muro de Berlim. Mas, a partir daí, a democracia política parece definhar por falta de substância. Com isto quero dizer: deixou de haver alternativas verdadeiras, e com possibilidade de ascender ao poder, em confronto. Mais, os fenómenos que estavam ligados ao totalitarismo aparecem também ligados às chamadas práticas democráticas. Apesar da proclamação da morte das ideologias, da morte das grandes narrativas, a verdade é que as governações não dispensam as narrativas ideológicas, apresentem-se estas na forma mínima ou na forma de grande narrativa. Por outro lado, o papel da ciência vulgarizada e desviada tem, como aconteceu nos regimes totalitários, um papel estruturante da acção política. Não são apenas as ciências empírico-analíticas, as ciências da natureza, que são mobilizadas enquanto tecnociência para prover a dominação sobre a natureza, mas também as chamadas ciências histórico-hermenêuticas, as ciências sociais e humanas, que são cada vez mais utilizadas para um exercício refinado de dominação sobre a comunidade e os cidadãos. Desde a ciência política à sociologia, passando pela psicologia, a antropologia, a economia, o poder tem tido a capacidade de produzir narrativas ideológicas, por vezes narrativas mínimas, outras grandes narrativas, a partir dos conhecimentos que estas ciências vão produzindo.

Se podemos pensar que nos encontramos numa fase de perversão do ideal democrático, que a democracia apresenta cada vez mais sintomas inerentes aos regimes totalitários, podemos dizer que será importante conhecer o que os clássicos, Platão e Aristóteles, pensaram dos regimes políticos, nomeadamente da democracia e da tirania. Mas isso não bastará. Será necessário confrontar o ideal regulador moderno da democracia representativa com o actual exercício do poder nas democracias ocidentais. Será preciso observar o papel que nelas continua a ter a ciência vulgarizada e transformada em ideologia. Uma atenção muito importante merece o papel desempenhado pela ideologização das ciências sociais e humanas. O que implicará também, para além da reflexão política propriamente dita, uma investigação dos fundamentos destas ciências, para compreender como elas permitem com tanta facilidade a transformação do seu discurso no discurso de uma seita em luta pela manutenção ou conquista do poder. (averomundo, 2009/06/29)

terça-feira, 28 de abril de 2015

O acaso e a liberdade

Embrião humano numa fase muito precoce do seu desenvolvimento REUTERS - Público

Até aqui os seres humanos eram fruto do acaso e da necessidade. A necessidade que se manifestava nas pulsões sexuais e o acaso representado na lotaria genética que conduzia a que um determinado espermatozóide fecundasse um óvulo disponível. Lentamente foram introduzidas algumas variações técnicas deste jogo sem que os frutos da árvore do conhecimento e os da árvore da vida se hibridassem. Consta que agora o passo para a hibridação foi dado e que se trabalha activamente na área de modificação do ADN embrionário. A técnica usada ainda é pouco eficiente, mas torná-la eficiente será apenas uma questão de tempo. Abriu-se o caminho - talvez ainda longo - para que seja possível que os novos seres humanos sejam concebidos segundo estratégias de design e de acordo com um processo de decisão racional. Poderemos pensar que a sensatez e uma certa inclinação conservadora acabarão por introduzir limites políticos ao trabalho na área da modificação do ADN embrionário. Esta área de investigação tem, todavia, um potencial económico e político de tal ordem que julgo ser do domínio da mera ilusão pensar que seja possível impedir este tipo de investigação e a sua transformação em tecnologia disponível no mercado. Estamos num momento decisivo da história da humanidade, mais importante que a queda do Império Romano, o Renascimento ou Segunda Guerra Mundial. Estamos a abrir caminho para a possibilidade de obter seres humanos correspondentes a modelos desenhados a priori e segundo o gosto dos progenitores. Mais do que isso, estamos a abrir caminho para que, um dia, se possa conceber uma ou várias espécies pós-humanas, umas sub-humanas outras sobre-humanas. Qual a potência que aqui se manifesta? Não, não é tanto a inteligência, mas a mais enigmática das potências que habitam o homem: a liberdade. A liberdade de escolha assente no domínio técnico do mundo e da vida. Onde antes se viu o papel do acaso e da necessidade manifesta-se hoje o império da liberdade. A inteligência é o instrumento dessa liberdade. Qualquer meditação ética sobre estes problemas não pode deixar de se confrontar com o sentido desta obscura potência.

sábado, 19 de julho de 2014

O bombardeamento da ciência

Pablo Picasso - Guernica (1937)

A direita portuguesa, mesmo quando encarna em gente universitária ou vinda das áreas da cultura (há algumas excepções, claro) tem uma relação difícil, muito difícil, com áreas como a cultura ou o conhecimento. Se houve área em que as governações socialistas tiveram êxito, um êxito claro e do qual o país retirou amplos benefícios, foi a da ciência. Deve-se a Mariano Gago ter dotado o país de uma ampla rede de investigação científica, em diversas áreas. Digamos que houve uma democratização do acesso à prática científica e que essa democratização - que é sempre um alargamento social de uma elite cognitiva - trouxe reconhecimento para o país, deu-lhe áreas em que é possível transformar conhecimento em produtos para competir nos mercados globais e, nas áreas das humanidades, permitiu suprir graves carências nas áreas da edição e da tradução para português de autores fundamentais. Tudo isto é insuportável para uma direita que, no fundo e mesmo quando se traveste de liberal, nunca deixou de ser miguelista e ultramontana. Assistimos, com as avaliações dos centros de investigação encomendadas pela FCT, a um verdadeiro bombardeamento do emergente edifício da ciência portuguesa (Público). Parece que o objectivo é não ficar pedra sobre pedra da herança de Mariano Gago.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Sonhos lúcidos

Wassily Kandinsky - Small Dream in Red (1925)

Consta que, aplicando uma certa quantidade de energia eléctrica ao cérebro, o sonhador pode transformar um sonho - de preferência um pesadelo - num sonho lúcido (Público). Um sonho lúcido é aquele em que o sonhador sabe que está a sonhar e consegue controlar o próprio sonho, o que poderá levar a que evite, no sonho, certas situações dolorosas. A responsável pelo estudo alvitra a possibilidade de, no futuro, poder haver intervenções terapêuticas, nomeadamente nos sonhos pós-traumáticos. Certamente que as aplicações médicas serão interessantes e, eventualmente, beneficiarão os pacientes. 

No entanto, há neste conceito de sonho lúcido um desafio a crenças fundamentais do último século. A ideia de que o sonho pertence ao domínio do inconsciente, a esse domínio onde o eu não é já o eu, a esse lugar onde a luz da razão não penetra. A razão cartesiana - com a sua luz natural - volta-se agora, em busca de certeza e consolo, para dentro dos sonhos do homem. Alguém dado à ironia, e conhecedor de Descartes, diria que esta é mais uma tentativa para fornecer a Descartes um poder para discernir a realidade do sonho. A verdade, porém, é que este é mais um passo no controlo da realidade global do homem e um avanço na transformação da realidade humana. A aplicação da luz da razão ao homem acaba por lhe retirar o mistério que o envolve e torná-lo de tal maneira transparente que chegará a hora em que nada poderá esconder dos outros ou de si mesmo. Duvido que um estado de completa e total lucidez sobre nós e os outros seja uma coisa diferente da vida no inferno.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

O sentimento de liberdade

Maria Helena Vieira da Silva - Liberdade (1973)

De cada vez que leio estudos como este sinto-me ameaçado. Não é que tenha alguma coisa contra a ciência e a actividade de revelação que os cientistas fazem. Pelo contrário. De onde vem, então, a ameaça? Vejamos este exemplo. Os cientistas descobrem que há pessoas que não gostam mesmo de música, pois alguma coisa se passa com os seus neurónios. É certo que tudo o que fazemos e pensamos tem de estar em conexão com os nossos neurónios, mas sinto-me sempre como se eu fosse mais do que os meus neurónios, de que para além deles, ainda que ancorado neles, exista um qualquer coisa que se sobrepõe à base neuronal e, nessa sobreposição, afirma a sua liberdade. 

Que o meu gosto pela música seja apenas uma predisposição provocada por uma feliz combinação de neurónios deixa-me deprimido. E se a música é assim, todo o resto o será. A ameaça vem da irrisão que a ciência provoca na liberdade. Um dos problemas mais complexos que a ciência coloca ao homem não é a ameaça tecnológica, a criação de um mundo distópico devido às aplicações das ciências naturais. O grande desafio é o de não deixar morrer o instinto da liberdade perante o trabalho contínuo de revelação e de explicação com que a ciência desmonta o homem. Seja como for, a verdade é que as pequenas peças de Erik Satie que estou a escutar, enquanto escrevo isto, me dão grande prazer e, mais do que isso, me restituem o sentimento de liberdade que a ciência tanto gozo tem em me furtar.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

A terceira opção


A Alemanha é o primeiro país europeu a admitir uma terceira opção no registo do sexo dos recém-nascidos. Antes só a Austrália e a Nova Zelândia o faziam. Os bebés cujo sexo não esteja completamente definido poderão ser registados como de sexo indefinido. Para além da perturbação jurídica e social que a nova opção introduz, o que está em jogo é o reconhecimento de uma realidade que as categorias mentais se recusavam, apesar do desenvolvimento das ciências da vida e da natureza, a registar. Há uma outra coisa, todavia, mais marcante. Trata-se de criar uma categorização jurídica e social que dê conta da imperfeição da natureza, nomeadamente da natureza da vida humana. 

Estamos longe de uma natureza perfeita. Toda ela parece ser um imenso laboratório de tentativas e erros, de ensaios mais ou menos felizes. Isto significa, também, que a natureza como modelo ideal ordenador da vida e acção humanas (que ainda hoje se pode encontrar em certos discursos de natureza ecológica) desaparece, se por natureza - e também aqui se pode inscrever o denominado direito natural - se entende algo de perfeito e acabado (seja fruto da criação divina ou do desenvolvimento das suas próprias forças e potencialidades). No entanto, a natureza ainda poderá fornecer um modelo ao homem, se for entendida agora como esse imenso laboratório de tentativas conseguidas e/ou fracassadas, essa gesta feita de erros e incongruências, mas também de resultados felizes. 

Reconhecer uma terceira opção no registo do sexo é fazer inscrever na linguagem jurídica a imperfeição da natureza e, em particular, da natureza humana. E a religião, nomeadamente os monoteísmos, como poderão lidar com a ideia de uma criação imperfeita, e de uma natureza que tacteia e que se engana, com a ideia de um terceiro sexo? Não serão eles atingidos definitivamente por este reconhecimento jurídico de uma terceira possibilidade, nem masculina nem feminina? Talvez a resposta esteja no primeiro capítulo do Génesis. Em cada acto da criação, Deus reconhece que o resultado desse acto é bom, mas não que é perfeito, acabado. 

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Proprietários da vida

Reuters - Público

O cruzamento de duas notícias sobre o mundo da ciência e dos direitos de propriedade mostram o terreno nebuloso que, devido aos avanços da investigação científica, pisamos, sem um guia moral e jurídico seguro. Há dias, o Supremo Tribunal dos EUA, perante um conflito em torno da patente sobre os genes humanos BRCA1 e BRCA2, veio reconhecer, por unanimidade, que a separação destes genes do material genético que está à sua volta não é um acto de invenção. Sendo assim, os genes não podem ser patenteados. No entanto, os juízes consideraram que há uma diferença entre o ADN natural e o ADN sintético, criado em laboratório. Este pode ser alvo de patentes. 

Passemos para um extraordinário acontecimento científico ocorrido na Universidade de Aveiro. Uma equipa de investigadores conseguiu alterar o código genético de um ser vivo. O Público afirma mesmo que se quebrou uma das regras sagradas da biologia. "Até agora, acreditava-se que o código genético era imutável, ou seja, uma vez fixado, nos primórdios da evolução das espécies, já não poderia ser alterado sem consequências funestas para o organismo afectado". Tanto quanto um leigo pode perceber, e eu percebo pouco, o que se passou foi a criação de um novo ser - neste caso de um fungo - com um outro código genético. Um ser sintético, digamos assim.

Quebrada a tal regra sagrada da biologia, abre-se um novo caminho de criação de seres sintéticos, com os seus criadores, segundo o Supremo dos EUA, a poderem patentear estas suas invenções. Por longe que esteja a passagem, deste tipo de operações, dos fungos para seres mais complexos, o caminho está aberto, como está aberto o caminho para patentear o mecanismo central da vida de espécies sintéticas. 

Duas notas finais. Em primeiro lugar, não sei se a diferenciação jurídica entre ADN natural e ADN sintético é moralmente aceitável. Julgo, na minha ignorância, que ela contém em si potenciais problemas. Em segundo lugar e tendo em conta a dificuldade sentida em decifrar tudo isto, parece-me que a educação sobre questões científicas, nomeadamente ao nível da Biologia, precisa de um grande incremento. Não me refiro, claro, a uma educação que transforme todos em biólogos, mas que forneça os rudimentos para compreender estes fenómenos e ajude os cidadãos a tomar parte na discussão pública que este tipo de coisas, mais tarde ou mais cedo, vai levantar.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Cientistas condenados

Carmen Calvo - Ciencia (1999)

Seis cientistas foram condenados a seis anos de prisão por terem subestimado os riscos do terramoto de Áquila, em Itália (2009). Esta é uma notícia preocupante, que representa a revivescência de uma cultura sacrificial muito arcaica. Podemos perceber o desespero que a morte de 309 pessoas pode provocar. Contudo a condenação dos cientistas é completamente absurda. Ninguém, hoje em dia, tem a pretensão de que o conhecimento científico seja infalível. Pelo contrário, o século XX descobriu a natureza conjectural da ciência. Na condenação do tribunal italiano não há apenas o desconhecimento da natureza da actividade científica, há ainda uma crença implícita de que a ciência tem a capacidade mágica de prever o futuro e as linhas em que ele se pode desenvolver. O facto de os cientistas terem subestimado o perigo da actividade sísmica da zona não nos diz nada sobre uma conduta viciosa de natureza criminal. Indica-nos apenas que os modelos utilizados eram epistemologicamente desadequados à realidade. E esta desadequação dos modelos pode não se dever à incúria, mas ao próprio carácter revisível, controverso e conjectural da ciência. Deve-se ao facto de ela ser o produto do homem, um ser falível e imperfeito. Um cientista não é um profeta que vê o futuro. Confundir erro científico com conduta criminal é um terrível e absurdo equívoco. Mas não é o mais grave. O mais grave é a necessidade de encontrar um bode expiatório para sacrificar na ara da justiça e, assim, acalmar as potências infernais que desencadeiam acontecimentos que nos podem matar. Este julgamento, por outro lado, diz-nos muito do que é a vida larvar das comunidades, vida essa que se oculta sob o verniz de um racionalismo mal digerido. Diz-nos muito do carácter mitológico que subjaz nas próprias práticas de justiça.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Ciência e Política

Pedro Fernández Cuesta - El Árbol de la Ciencia

Do mesmo modo, as implicações científicas da Revolução Francesa são evidentes na hostilidade franca ou dissimulada que os políticos conservadores imprimiram ao que consideravam consequências naturais da subversão materialista e racionalista do século XVIII. A derrota de Napoleão levantou uma onda de obscurantismo. (Eric Hobsbawm, A Era das Revoluções, p.292)

Um dos fenómenos mais interessantes do mundo moderna é a íntima relação entre ciência e poder político. Por ciência, não me refiro aqui a coisas como a Economia ou Sociologia, mas às ciências duras, as chamadas ciências da natureza. Se escutarmos as vozes dos cientistas, ouviremos o conto de fadas da autonomia da ciência. O cientista, no seu projecto, faz apenas ciência pura, que nada tem a ver com questões políticas. Também o político afirmará a candura e inocência da actividade política. Como a constatação de Hobsbawm mostra, desde muito cedo, diria desde o início e já com Galileu, que a ciência da natureza e a política estão profundamente entrelaçadas. Não há uma ciência pura, completamente autónoma da política. Também não há política que não recorra, para se afirmar e persistir, ao trabalho científico e às consequências técnicas deste.

Por norma, o que acontece é que quem estuda um destes fenómeno não tem em consideração, a não ser de forma lateral, o outro. Politólogos, historiadores políticos e filósofos não pensam o fenómeno do poder na sua íntima conexão com a ciência natural. Por seu lado, Historiadores da ciência, epistemólogos e cientistas tendem a não compreender o acto científico - o trabalho laboratorial ou de campo - como fazendo parte do jogo do poder. Dirão que fazem parte de jogos de linguagem diferentes e, por isso, são autónomos. Esta autonomia, contudo, não é apenas falsa. Ela é uma máscara que não permite compreender, na sua efectiva realidade, nem a ciência nem o poder nas sociedades modernas. Mas a percepção de uma não autonomia das duas esfera é já muito antiga. Platão, por exemplo, percebia a sua íntima conexão. Será a ele que se deverá voltar para iluminar esta obscura e obscurecida relação entre poder e saber.

terça-feira, 31 de julho de 2012

A epistemologia do milagre

Simone Martini - Miracle of Fire (1312-1317)

No n.º 54 (Julho-Agosto, 2012) do Le Monde des Religions há um artigo sobre os bastidores dos milagres em Lurdes (só disponível para assinantes; a alternativa é comprar em papel). Há momentos, no artigo, que não podemos deixar de evocar a epistemologia de Karl Popper e a sua teoria falsificacionista. Para Popper, a actividade científica visa refutar as teorias científicas admitidas. Qualquer teoria, por mais bem estabelecida que se encontre, não passa de uma mera conjectura. A ciência progride pelas refutações das teorias estabelecidas, e a actividade científica visa falsificar (mostrar que são falsas) as teorias.

Segundo o artigo de Mikael Corre, Lourdes, les coulisses du miracle (Lurdes, os bastidores do milagre), o processo para declarar, actualmente, uma cura como milagrosa é extraordinariamente complexo e moroso. Começa com uma definição teórica, digamos assim, que estabelece os parâmetros empíricos do que pode ser considerado uma cura miraculosa: «a cura deve ser "súbita e obtida num instante", durável e não implicando convalescença». Valeria a pena uma cuidada análise do problema temporal colocado por esta definição, o jogo entre a instantaneidade e a durabilidade. Uma cura milagrosa é aquela que chega vinda fora do tempo. É súbita e instantânea, o que significa a ausência de uma causalidade física. Ela não resulta de um processo mas de uma irrupção salvífica de algo que está para além da temporalidade. Mais, essa irrupção no puro instante é completa e total, pois a ausência de convalescença é um elemento central do fenómeno. Esta implica a duração, um percurso na temporalidade, o que significaria um processo físico-biológico. Por fim, vem a durabilidade do efeito. Aquilo que é uma manifestação vinda do além-tempo só ganha sentido se, manifestando-se como cura no corpo doente, perdura no tempo.

O processo passa, em primeiro lugar, por um departamento médico cuja finalidade, utilizando a linguagem de Karl Popper, é de tentar falsificar (mostrar que é um falso milagre) o acontecimento, mostrando que a cura pode ser explicada por causas naturais. Este processo, do ponto de vista epistemológico é também muito interessante, pois "exclui todas as doenças psicológicas (pois são organicamente inverificáveis) e aquelas sob tratamento (pois este pode ser a causa da cura, mesmo que isso seja estatisticamente improvável)". Há todo um esforço de reduzir o fenómeno a uma explicação empírica e testável. Mas se a cura é  "inexplicável no estado actual dos conhecimentos médicos", o dossier passa  um segundo comité médico, de âmbito internacional. Apenas os casos que passam nesta segunda comissão de carácter médico-científico é que são remetidos para esfera religiosa, para o bispo do lugar da pessoa curada (e não para o bispo de Tarbes e Lourdes) que, ajudado por uma comissão canónica diocesana, determina se a cura pode ser declarada, segundo a fé, milagrosa ou não. A última declaração de uma cura milagrosa foi em 2005 e era referente a um processo que tinha 53 anos.

O que é pertinente observar é o extremo cuidado com que a Igreja Católica lida com este tipo de fenomenologia e a mobilização que faz de uma aparelhagem científica e filosófica para determinar a verosimilhança metafísica do fenómeno. Não é apenas o recurso à ciência médica que está em jogo, ou o recurso a uma certa concepção epistemológica que pode encontrar raízes ou semelhanças em/com o falsificacionismo popperiano. Há no processo, mesmo depois de declarada a natureza milagrosa da cura, um elemento que - embora eu não saiba se isso, no âmbito da Igreja, é praticável e praticado - permite reverter a declaração: "a cura é inexplicável no actual estado dos conhecimentos médicos". O que deixa em aberto o caminho para falsificar o milagre declarado (mostrar que é falso),  pois novas formas de compreensão das patologias poderão trazer uma nova compreensão da doença e da cura, mesmo que esta seja instantânea e tenha efeitos duradouros.

Esta racionalidade religiosa, esta busca de uma probidade intelectual em matéria de fé, por parte da Igreja Católica, pode ser uma das variáveis a ter em conta para explicar a razão do declínio dessa mesma fé. Esta, pelo menos ao nível popular, alimenta-se do prodígio, e o milagre é o prodígio mais democrático que pode existir. A Igreja ao restringir drasticamente e de forma tão racional a irrupção de milagres no quotidiano das pessoas acaba por fazer alinhar a própria instituição na grande corrente iluminista anti-católica, gerando, ao mesmo tempo, um afastamento de largas camadas populares que, educadas numa tradição do maravilhoso e da superstição muito anterior ao cristianismo, se cristianizaram pelo maravilhoso e prodigioso que sobressaía no cristianismo. Isto coloca um problema bastante interessante: como será possível uma religião que abandona a superstição, através de uma crítica racional, e que não se resuma, como o protestantismo, a uma mera moralidade racionalizante?

quarta-feira, 14 de março de 2012

Metáfora e ciência


Este artigo do Público sobre um momento da história do universo está repleto de metáforas. Galáxias canibais, galáxias adolescentes, berço efervescente de estrelas, fábricas de estrelas, galáxias que não se alimentam, agregados de estrelas que povoam o espaço. O artigo não tem carácter científico, trata-se apenas de divulgação genérica de resultados obtidos na investigação. A utilização desta metafórica, contudo, não deixa de ter interesse.

Paul Ricoeur, no conhecido estudo sobre a metáfora (A Metáfora Viva - MV) explora a conexão entre modelos e metáforas. Referindo-se a um artigo de Max Black, escrevia: "O argumento principal é o de que a metáfora está para a linguagem poética como o modelo está para a linguagem científica, quanto à relação com o real. Ora, na linguagem científica, o modelo é essencialmente um instrumento heurístico que visa, por intermédio da ficção, destruir uma interpretação inadequada e abrir caminho a uma nova interpretação, mais adequada." (MV. Porto: Res, p. 357)

Pela analogia instaurada, percebe-se que a metáfora, ao nível da poética, seria ainda um instrumento heurístico, um instrumento de descoberta, que, ao suspender e destruir a linguagem corrente, destruiria uma interpretação inadequada do real e instauraria uma nova e mais adequada. O que me interessa, porém, é uma outra coisa, a relação da metáfora com o próprio exercício da ciência. 

Na divulgação científica, a metáfora, como outros processos tropológicos ou retóricos, tem uma função de mediação entre a linguagem científica e a linguagem comum. Oferece uma intuição ao grande público que não está habilitado a compreender a linguagem esotérica da teoria científica. Esta intuição é feita, contrariamente à metáfora poética, pela construção de uma desadequação com a realidade. É a passagem de um linguagem mais adequada, a dos conceitos científicos, para a linguagem popular do senso comum, através do exercício da imaginação. A esta imaginação poder-se-ia dar o nome de imaginação redutora. Reduz o abstracto do conceito, embora com conteúdo empírico, à linguagem corrente, fornecendo um conteúdo imagético a esta linguagem vulgar. A função da metáfora, neste caso, é ambivalente. Ao reduzir o conceito científico, a metáfora usada na divulgação científica  amplia a linguagem popular. Mas esta ampliação, como se viu, não torna essa linguagem mais adequada. Muitas vezes acaba por reforço certo tipo de preconceitos conferindo-lhes uma espécie de autoridade pseudo-científica.

Por outro lado, que relação haverá entre a metáfora e a praxis científica? A polissemia inerente aos processos metafóricos parece ser tudo o que a linguagem científica recusa. No entanto, seria bom compreender como muitos conceitos, de conteúdo empírico bem definido, resultam de processos de redefinição de antigas metáforas. Esta compreensão não visa apenas fazer a história do conceito, mas de o interrogar de forma a compreender o que nele ainda persiste de imagético, de metafórico, de retórico, apesar de todo o esforço de neutralização do mitopoiético a que a ciência se entrega. Será possível constituir poéticas e retóricas da ciência? Eis um dos problemas que a investigação da relação entre metáfora e conceito científico poderia responder. 

Um segundo problema está ligado ao papel heurístico da metáfora (e não dos modelos, note-se) na ciência. Poderão certas metáforas abrir caminho para a produção de conhecimentos mais adequados? Se sim, como ocorrem esses processos? Como é que a poética e a retórica se ligam a processos de investigação, mesmo nas chamadas ciências duras? Também é pertinente a questão contrária. Como é que uma certa poética e uma certa retórica existente nas comunidades científicas, com o seu jargão onde haverá metáforas e outros tropos, constituem obstáculos à produção de conhecimento. Em resumo, a questão do papel heurístico da metáfora remete para o papel epistemológico desta. O que pode tornar evidente que a relação entre metáfora e ciência está muito para além da questão da divulgação científica.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Orlando Ribeiro, na Biblioteca Municipal


Até 31 de Março, na Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes (Torres Novas), a exposição Ponto de Partida, Lugar de Encontro tem por objecto dar a figura e acção do geógrafo Orlando Ribeiro, uma das mais destacadas figuras intelectuais do século XX português. Para quem se interessa não apenas pela Geografia mas pela vida do espírito em geral é uma oportunidade para descobrir Orlando Ribeiro. Do ponto de vista da História da Ciência em Portugal, a sua figura tem um interesse particular. É o pai da escola portuguesa de Geografia. Note-se, contudo, que a sua influência intelectual vai muito para além da sua área disciplinar.