quinta-feira, 9 de maio de 2013

Ferdinand Ossendowski, Bestas, Homens e Deuses


Um acaso fez-me chegar a este livro. Li as primeiras linhas e decidi continuar. O texto original, publicado em inglês, data de 1924. Descobri que o livro nos anos trinta do século XX tinha tido uma certa repercussão. Isso deveu-se ao clima ideológico da época. Ferdinand Ossendowski, um geólogo e engenheiro de minas, fugira da Rússia, através da Sibéria e da Mongólia, na sequência da Revolução de Outubro de 1917. É essa fuga que é narrada. A este sucesso literário inicial, motivado pelo conflito ideológico,  segue-se o esquecimento. Apenas gente interessada em teorias esotéricas lhe prestaram atenção devido à questão do Rei do Mundo, uma lenda que faz lembrar, de certa meneira, a lenda do Prestes João, que animou as imaginações, ao que consta, na época dos Descobrimentos.

Quem estiver, contudo, pouco interessado em conflitos ideológicos e políticos do início século XX (para estes há uma imensa literatura histórica) e em especulações esotéricas (para estas há o livro de René Guénon, O Rei do Mundo) tem, ainda assim, bons motivos para ler a obra. Ela cruza a literatura de viagens, o romance de aventuras e, ainda que de forma muito limitada, a auto-biografia. Lê-se pelo prazer de acompanhar a personagem, que é também o narrador e o autor, na sua fuga ao Exército Vermelho, nas suas deambulações que o hão-de conduzir a território neutro e seguro.

O que está em jogo neste tipo de narrativa não é a identidade da personagem, a forma como ela se vai metamorfoseando ao longo da narrativa, num processo em que o tempo tem um papel central no reconhecimento de si. Poder-se-á dizer que a estrutura central deste tipo de narrativa não é o tempo mas o espaço. O espaço que vai da Sibéria, Krasnojarsk, até Urga, capital da Mongólia, hoje designada Ulan Bator. É a narrativa que estrutura o espaço e o abre para o leitor. Este descobre não as metamorfoses do herói mas os seus encontros com outros homens e com realidades muito diferentes daquelas que os ocidentais poderiam esperar.

Haverá um modelo sobre o qual se estrutura a viagem de Ossendowski? Esta viagem é a de retorno à pátria, uma viagem cheia de peripécias e ciladas, uma viagem que tem por arquétipo a de Ulisses para Ítaca. Como Ulisses também ele tem de defrontar perigos e armadilhas, como Ulisses - embora sem a cena dos pretendentes - ele escapa a um destino infeliz. O que a afasta do arquétipo, porém, tem a ver com a identidade das personagens. Ulisses é um guerreiro que vive num tempo dominado pelo mito. Ele encontra-se no seu próprio ambiente. Com Ossendowski passa-se uma outra coisa e bem diferente.

O protagonista e autor é um homem da razão, formado no ambiente da ciência e da técnica, tem uma visão racional do mundo. A viagem não é apenas o percurso pelos obstáculos e ciladas que surgem, mas também uma visita a um mundo mítico ainda vivo, um mundo encantado sobre o qual a racionalidade do Estado moderno ainda não tinha feito cair a burocracia e o desencantamento. O leitor descobre o fascínio que esse mundo encantado - fundamentalmente o da Mongólia budista e teocrática - exerce sobre um racionalista à procura de salvar a pele. As múltiplas histórias de encontros e desencontros são, por outro lado, belíssimas descrições etnográficas de um mundo que ainda estava vivo e que, por certo, é incompreensível para os homens do século XXI.

Entre lendas e mitos, compreendemos a natureza de uma sociedade teocrática, rodeada de mistérios e enigmas, mas onde os homens apresentam as mesmas paixões de outros lados. Confirmamos que a vida política, onde quer que seja, não deixa de apresentar aquelas características que fizeram a fortuna teórica de Maquiavel. Entre a sedução do mistério e o interesse racional, entre a descrição psicológica de personagens reais, como o Buda Vivo ou o herói anti-bolchevique barão Von Ungern Sternberg, e a presença da história figurada na memória de Gengis Khan, a narrativa de Ossendowski é sempre um prazer, aquele prazer que sentíamos, na infância e na adolescência, na leitura de histórias e romances de aventuras. Que o livro termine com o chamado enigma do Rei do Mundo é mais do que um tributo prestado pela razão ao mito. É um tributo ao segredo misterioso que é a essência de toda a literatura de aventuras.

Ferdinand Ossendowski. Bestas, Homens e Deuses. Hemus. Tradução de Agata M. Auersperg.

2 comentários:

  1. Lido com o interesse habitual.
    Apenas me permito uma ironia inofensiva: Um racionalista só poderia mesmo querer salvar a pele e nunca a alma, mesmo na Mongólia budista e teocrática.

    Bom fim-de-semana

    Abraço

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    1. E, segundo parece, a pele esteve várias vezes por um fio.

      Bom fim-de-semana.

      Abraço

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