Tonio Kröger, de Thomas Mann, é uma novela publicada em 1903, dois
anos depois da publicação de Buddenbrooks – Verfall einer Familie (1901). Faz-se
notar, muitas vezes, o paralelo com a novela Morte em Veneza (1912), pois em
ambas se tem por centro da reflexão narrativa a vida do artista e a questão da
arte. No entanto, poder-se-á alargar a rede de inter-referências dentro da obra
de Thomas Mann. Como em Buddenbrooks, encontramos uma família, os Kröger,
burguesa decaída. Como em Doutor Fausto (1946), encontramos uma reflexão sobre
a arte. Também o tema da atracção homossexual durante a puberdade ou a
pós-puberdade, presente em Tonio Kröger, será retomado em A Montanha Mágica
(1924), na personagem de Hans Castorp. Em Tonio Kröger encontra-se, assim,
concentrado um conjunto de temáticas que irradiam por toda a obra de Mann.
A temática da ambiguidade da orientação sexual desempenha, em Tonio
Kröger, um papel não apenas introdutório – a novela começa a atracção
homoerótica do jovem Kröger, então com catorze anos, pelo seu colega Hans
Helsen, um jovem desportista, de famílias burguesas como os Kröger, centro das
atenções da escola, segue com a paixão, aos dezasseis anos, pela bela Ingeborg
Holm; ambas as paixões estão votadas ao fracasso – mas estrutural. A
ambiguidade da orientação sexual constitui-se como símbolo de uma realidade
ambivalente e conflitual, como se o sujeito fosse incapaz de a unificar e
dar-lhe um sentido enquadrado no modo de vida em que foi educado, pela parte do
pai, e no meio social a que pertence. Toda a novela é a busca desta
reconciliação consigo ou da reconciliação em si destas ambiguidades.
A ambiguidade está já presente na origem étnica do próprio Tonio Kröger.
Se o pai é um comerciante do norte da Alemanha, pertencente a uma tradicional
família burguesa, já a mãe é uma meridional de tendências artísticas. Tonio
está assim entre duas forças que são sentidas como contraditórias. O mundo
severo – dir-se-ia, puritano –, rigoroso e disciplinado do pai e o universo
fluido e encantado da mãe. Devido a esta origem, ele apresenta traços físicos
diferentes dos seus colegas e daqueles que vivem na cidade. Esta diferença
étnica tem um duplo impacto em Tonio Kröger. Por um lado, sente-a como causa da
sua diferença e da rejeição, mais ou menos subtil, a que se sente sujeito. Por
outro, condu-lo à idealização do aspecto germânico – cabelos louros, olhos
azuis, etc. – que Hans Hansen e Ingeborg Holm tão bem representam.
Um dos elementos fundamentais desta novela – e que a liga ao romance Buddenbrooks
– é o da queda (Verfall) da família burguesa. A morte inopinado do pai arrastou
o fim do estabelecimento comercial e o desaparecimento da estirpe. Não se
trata, como nas famílias aristocráticas, da ausência de um herdeiro, mas do
surgimento de alguém que já não suporta os estreitos limites que a vida
comercial exige para evitar a desagregação. Isto permite-nos pensar em algo que
nunca é afirmado. Apesar das aparências (as famílias tradicionais de
comerciante, as velhas casas na posse da família durante gerações), o modo de
vida trazido pela burguesia exclui, na verdade, a linhagem. Nem os genes nem a
lei, agora que uma sociedade dividida em castas desapareceu, são suficientes
para manter a casa comercial. Tanto em Buddenbrooks como em Tonio Kröger esta desagregação
da linhagem é simbolizada pela venda da casa de família. O que permite a
continuidade da estirpe é a aquisição e a educação de uma certa atitude perante
a vida e o mundo. É uma certa forma de estar e agir no mundo que estrutura a
continuidade de uma família burguesa e a possibilidade de ela permanecer no
negócio.
O principal inimigo da atitude burguesa é a atitude estética e a
tentação artística. De novo, estamos perante uma duplicidade que dilacera a
alma de Tonio Kröger. A novela é uma viagem de reconciliação entre as duas
atitudes, entre a arte e a razão, entre a arte e a vida exuberante. Ele, a quem
uma amiga pintora, Lisaweta Iwanowna, tinha chamado burguês extraviado, vai
reconhecer a sua vocação de artista, de poeta, fundada no seu ser burguês: Pois,
se há alguma coisa capaz de fazer de um homem de letras um poeta é este amor
burguês que eu sinto por aquilo que é humano, vivo e habitual. Esta amor pela
humanidade, todavia, não deixa de ser profundamente ambíguo e relacionar-se com
as paixões iniciais: Mas o meu amor mais profundo e o mais secreto pertence
aqueles que têm os cabelos loiros e os olhos azuis, aos seres claros e vivos,
aos felizes, aos amáveis, aos habituais. Os cabelos loiros e os olhos azuis
referem-se, claro, ao mundo simples e ordenado do seu pai, mas, ao mesmo tempo,
referem-se a Hans Hansen e a Ingeborg Holm, à ambiguidade que eles introduziram
na direcção do seu amor. Parece que a novela acaba no mesmo ponto que começou,
mas isso não é verdade. Estamos perante uma narrativa hegeliana, aquilo que era
apenas um conceito vazio – a ambiguidade do amor adolescente – torna-se agora,
depois do devir narrativo – conceito concreto e pleno de vida, amor pela
humanidade, mas por uma humanidade concreta, aquela que é simbolizada pelos
seus primeiros objectos eróticos.
Thomas Mann (2003). Tonio Kröger. Lisboa: D. Quixote. Tradução de Cláudia Gonçalves.
Um retrato perfeito de uma época em que as duplicidades das pulsões eróticas e estéticas ainda se viviam por debaixo dos panos.
ResponderEliminarOs retratos de época de Thomas Mann são sempre perfeitos, quase dá vontade de dizer que são exactos.
EliminarAbraço