sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Questões difíceis


O Presidente francês, François Hollande, está a alterar a orientação política com que foi eleito. Embora não utilize palavas como austeridade, as políticas que agora advoga aproximam-no das soluções da direita liberal. Não é a primeira vez que alguém eleito pela esquerda, quando confrontado com os resultados da sua governação, reorienta as suas políticas para a direita. Pode-se sempre evocar a ideia de traição aos ideais. Parece-me, porém, pouco proveitoso resolver a questão com um juízo de carácter. Devemos fazer perguntas e perguntas difíceis. Por exemplo, por que motivo os partidos de cariz social-democrata (isto é, os socialistas) não conseguem aplicar os seus programas e, se o fazem, por que razão a economia declina de imediato?

Esta questão é incómoda e é evitada pela esquerda, pois torna patente que, nas actuais circunstâncias de globalização da economia, ela não possui um efectivo programa de governo. Não me refiro apenas à esquerda social-democrata. Refiro-me também à outra esquerda fora da área da governação, cujos programas correspondem, hoje em dia, a soluções sociais-democratas idênticas às que vigoravam nos anos oitenta do século passado. Uma coisa é ter uma política de resistência e de oposição à situação actual, outra é possuir um programa de governação exequível nas actuais circunstâncias do mundo e dos países.

Estamos confrontados, na verdade, com um dilema. Ou reconhecemos que já não são possíveis governações à esquerda, ou reconhecemos que a esquerda ainda não conseguiu romper com os quadros intelectuais e políticos anteriores à queda do muro de Berlim. Se a verdade residir no primeiro caso, o problema está resolvido. Seja qual for o governo, a governação será sempre idêntica. Se for o segundo, tudo se torna mais interessante. Nesse caso, porém, a esquerda precisará de repensar drasticamente não as suas convicções morais, mas as suas convicções políticas, fundamentalmente as que repousam no papel do Estado Providência.

Isto coloca problemas que as pessoas de esquerda evitam a todo o custo: será possível uma esquerda para além do Estado? Será possível dinamizar e institucionalizar as práticas de solidariedade, de entreajuda, de protecção social, de dinamização da igualdade de oportunidades, a partir da sociedade civil e da iniciativa das pessoas e não do Estado? Será possível aproveitar o espaço político e social criado pelo liberalismo para realizar os valores morais que a esquerda encarna? Estas são questões difíceis, mas não serão elas que poderão rasgar um futuro para a esquerda e para aqueles a quem ela representa?

14 comentários:

  1. Os partidos "socialistas" * são uma das faces que o sistema Capitalista assume para se perpetuar.
    Por outras palavras: se os partidos capitalistas são a favor da exploração do homem pelo homem, os partidos socialistas são a favor do contrário...

    * Excepções como o PS de Allende têm sido raras.

    Bom fim-de-semana

    Abraço

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    1. O problema, porém, é mais dramático devido às ligações globais que as economias entretêm entre si. Uma aplicação de um programa tradicionalmente socialista implicaria de imediato um declínio da economia. Aliás, a queda do socialismo real tem muito a ver com isso.

      Bom fim-de-semana,

      Abraço

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    2. Apenas para dizer que o socialismo real não caiu porque não existiu...

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    3. Foi aquele que existiu, a denominação que ele assumia. E não há experiência de outro.

      Abraço

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    4. Peço desculpa mas "ele" nada assumiu. "Alguém" assumiu por ele, porque "lhe" convinha...
      Abraço

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    5. Claro, alguém assumiu por ele, mas é sempre alguém que assume. Neste caso, eram os seus representantes. Julgo, tanto quanto a memória não me atraiçoa, que era assim que os países de bloco de leste designavam os seus regimes. Mas, admito, talvez fosse uma designação dada pelo Ocidente.

      Abraço

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    6. A Leste e a Ocidente interessava assumir o embuste, por razões diferentes, como é óbvio...
      (E já não o maço mais)

      Um abraço

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    7. Não maça nada, isto é só uma conversa.

      Abraço

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  2. Anda a escrever coisas polémicas com as quais, numa primeira leitura, não concordo. Já no outro dia escreveu uma coisa sobre a educação e hoje isto. Eu percebo o que quer dizer mas não concordo. Não é a social democracia pura que conduz a descalabros económicos. Aliás, há muitos casos bem sucedidos (e de forma sustentável e equilibrada) no norte da europa.

    A questão não tem a ver com o modelo económico ligado a estes modelos políticos mas sim com o facto de estarem sujeitos a influências e concorrências com sistemas desregulados, predadores.

    E depois a gente de esquerda é uma gente que tende a ser pura, ingénua, boa gente. Ou seja, que rapidamente se deixam comer.

    A esquerda, quando tem líderes capazes, e quando o povo é instruído politicamente, sabe levantar-se e defender os seus princípios, direitos, sonhos.

    Agora esta pseudo-esquerda, um autêntico refugo, feita de gente titubeante, armados em estadistas, uns pobre diabos, rodeados de gente ainda mais fraca, são gato-sapato nas mãos de grandes investidores, de assessores de alto coturno, de poderosos escritórios de advogados, de consultores internacionais, de banqueiros. a esquerda ajoelha como um animal ferido de morte apenas porque não sabe ser uma esquerda de peito feito.

    É o que eu acho.

    Bom fim de semana!

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    1. Não tenho essa visão das coisas. Quanto às social-democracias do norte, as coisas já tiveram melhores dias. A Suécia já optou, há muito, pelo liberalismo. Julgo que, paulatinamente, acabarão todos por essa conversão. Mas o norte da Europa é um caso particular. Na Europa menos a norte, já quase não me lembro de social-democratas no governo. Miterrand converteu-se, isto é, fez o que fez Hollande. Schroder antecipou a senhor Merkel. Blair é um caso acabado de conversão ao liberalismo. Não me parece que seja um problema apenas de gente sem qualidade. Antes fosse. Julgo que é um problema mais sério e mais fundo, o qual não está suficientemente pensado. Ele parte da globalização e do comércio-livre e julgo que a esquerda não encontrou ainda, para além das práticas de resistência, um programa exequível nas novas circunstâncias mundiais. Quanto ao estar a escrever coisas polémicas, pode ser que sim, mas isso não será assim tão mau. É preciso pensar fora dos carris e isso não está a acontecer. Num dos próximos artigos para o jornal falarei sobre aquilo que entendo ser o centro do conflito social. E é provável que também seja polémico.

      Bom fim-de-semana.

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  3. Não é mau, claro que não. Aliás eu disse, se reparou, que são coisas com que não concordava "numa primeira leitura". É que começo a ler contrariada, arreliada consigo, e, quando chego ao fim, já estou a ficar preocupada comigo.

    O que me parece é que está a tomar como premissas coisas que o não são: não é certo que o modelo económico inerente ao modelo de esquerda ou centro/esquerda seja, a priori, um modelo falido.

    Acho que o mal não está aí. Está sim, acho eu, na não capacidade de blindagem face a uma desregulação mundial. as fronteiras estão todas abertas e a concorrência é feita com quem não segue as mesmas regras. Por cá há normas ambientais que têm custos, há direitos (laborais e humanos) que têm implicações, há controlos de qualidade que têm custos - mas a concorrência é feita com quem não tem nada disto.

    E não há fronteiras para nada, nem para o comércio, nem para as notícias nem para o dinheiro. tudo circula de forma desregulada. Veja a teoria da dívida e do crescimento que fez escola, que circulou, e teve (e tem) discípulos e que, afinal, estava errada.

    A esquerda feita de gente ou teórica, ou lírica ou presa ao passado ou deslumbrada (como o Blair, que referiu) não está formatada para combater esta avalanche desregulada, sem ética, sem moral, sem contornos, quase imaterial, quase omnipresente.


    PS: Acho que dá para perceber que eu fico arreliada consigo mas, enfim, é uma arrelia de esquerda, ou seja, inconsequente...

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    1. Eu estou de acordo consigo na descrição que faz e eu tenho-a como pressuposto. No entanto, o que vamos fazer? Fechar as fronteiras? Impor condições à China e à Índia, por exemplo? Ou aos EUA? Estas condições do mundo são alteráveis pelo voluntarismo de alguns povos (se houver alguns com vontade de o alterar)? O meu problema é muito simples: como poderão as pessoas sobreviver com alguma dignidade neste ambiente? Mas nem sequer tenho a certeza que haja essa possibilidade e a desregulação, essa continuará, porque as principais potências desejam-na, incluindo a União Europeia, com a Alemanha à cabeça, seguida da Inglaterra, dos nórdicos e, também, da França. Isto, para não falar da China, da Índia, etc. O problema da desregulação não é um problema moral (embora ela seja iníqua em muitos aspectos), é um problema porque existe e não há forças para a destruir enquanto ambiente onde a vida do mundo se desenrola. Se as há, eu não as vejo. Só isso.

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  4. Não, não é fechar as fronteiras. É inelutável isso.

    O que é preciso é saber negociar sem medos, de peito feito, com coluna direita, e sem venalidade. Um mundo desregulado não é bom para ninguém nem para os que são em maior número. Há que encontrar coragem pois a esquerda hoje é uma coisa de 'meninos', de fantasistas, de saudosistas, de arrependidos, de teóricos.

    Estou a falar e estou a pensar em gente que tenha um ideal progressista, fraterno, mas que tenha pragmatismo, energia, espírito de combate e de mobilização. Tem havido gente assim ao longo da história e estou a lembrar-me de alguns.

    (Claro que não é gente como Hollande, Seguro, o de Espanha agora nem me lembro do nome, gente apagada, timorata, que parece querer imitar os outros, que vai conseguir fazer alguma coisa).

    Tempos difíceis, estes.

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    1. Em Portugal, haveria questões que a esquerda, enquanto governo, poderia ter resolvido. Por exemplo, a separação entre negócios e política. Não o faz, antes pelo contrário. Os governos socialistas não se distinguem dos do PSD/CDS nesse aspecto. Depois, julgo que a questão não é apenas de carácter ou de falta de preparação. Pode ser, mas isso não é o essencial. É falta de espaço político e, fundamentalmente, falta de um programa exequível nas actuais circunstâncias. E as actuais circunstâncias contêm tudo aquilo que os governos (de esquerda e de direita fizeram, os compromisso que assumiram, etc., para além de uma situação geopolítica que nos é imposta e na qual praticamente não temos espaço de manobra). Enfim, é isto que precisa de ser reequacionado e respondido com um programa político que não seja mais do mesmo. Numa coisa estamos de acordo. os tempos são mesmo difíceis, muito difíceis.

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