terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Meditações dialécticas (23) - Da lógica das coisas

Maurits Cornelis Escher - Cubic space division (1952)

Um dos elementos estruturais da vida social moderna e contemporânea é a sempre crescente autonomização dos fenómenos sociais. Se olharmos para a Idade Média, observamos um cosmos social ordenado e orientado para Deus. Nessa ordem e nessa orientação, cada coisa fazia parte de um todo que lhe assinalava o lugar e lhe dava sentido. Era nessa ordem que, apesar de ser constituída por grupos sociais relativamente estanques, cada ser humano tinha um lugar e uma função atribuídos e, desse ponto de vista, não era descartável. A presente sensação da descartabilidade do homem nasce, muito curiosamente, numa sociedade que tem a sua génese na recusa da ordo medieval, na recusa de um cosmos teocêntrico, e que faz do homem o centro do mundo. 

O desfazer da ordem significou, de então para cá, a libertação das múltiplas estruturas e a sua autonomia perante a totalidade. Se olharmos para o mundo da economia, isso tornou-se uma evidência inquestionável. O mercado deve funcionar segundo regras próprias e autónomas, as próprias empresas têm as suas lógicas internas e só a estas devem obedecer. E é aqui que surge como natural, para os economistas e gestores, tudo o que se passa na esfera económica. Os seres humanos são irrelevantes para a lógica interna desses dispositivos sociais. Se são necessários, muito bem. Se não são, a natureza da empresa ou do mercado implica que sejam descartados. Não se trata - ou não se trata apenas - de uma maldade moral dos agentes. É a lógica das coisas, essa lógica que ganhou vida com a afirmação do humanismo renascentista, que implica que o homem, esse ser obsoleto, seja descartável. O que está em jogo e é questionável não é apenas a maldade moral dos homens, mas a própria natureza da modernidade.

4 comentários:

  1. A omnisciência e omnipotência de Deus duraram enquanto durou a Idade Média (ou das trevas).
    Dou por mim a interrogar-me como é que Deus permitiu que a "modernidade" fosse tão perversa.
    Os seres humanos -a maioria- continuaram a ser irrelevantes, só a irrelevância mudou...

    Um abraço

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    1. Hoje em dia, do ponto de vista histórico, já não se vê a Idade Média como uma idade das trevas. Essa visão foi criada na altura do Renascimento e visava legitimar os novos caminhos, denegrindo o que vinha dessa Idade Média, saltando para a antiguidade clássica. Por exemplo, a Universidade e uma mais eficaz ligação entre ciência e técnica são obras da Idade Média. Hoje em dia, nos estudos da História da Ciência, a revolução científica da modernidade encontra as suas raízes na Idade Média. Quanto à irrelevância dos seres humanos, houve de facto uma transformação estrutural. Na Idade Média não eram irrelevantes nem descartáveis (tendo em conta os padrões da época). Havia diferentes castas (não bem castas, mas estamentos, pois havia alguma porosidade entre elas), que tinham direitos e deveres diferentes, mas que tinham deveres recíprocos. Isso não era sem importância. Depois, a libertação dos homens da sua condição servil, acabou por os entregar aos seu destino e às suas próprias forças, submetidos agora não há ordem, mas à "desordem" emergente da autonomização dos diversos sectores sociais. Quanto a Deus, parece que foi derrotado pelas alturas do Renascimento. A Ordo medieval que existia em seu nome desfez-se em nome do humanismo e da autonomia do homem. Não sei se se estará a rir.

      Abraço

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  2. Cada trabalhador é, nas empresas, um código ao qual está associado um centro de custo. Parte da gestão das empresas, quando a coisa dá para o torto e não têm cabeça para grandes raciocínios, quer diminuir os custos e, aí, frequentemente, contam-se cabeças (literalmente).

    Claro que há quem perceba que a coisa pode ir lá de outra maneira (vendendo mais, melhorando as condições de venda, melhorando as condições de compra, optimizando a produção ou a logística, etc).

    Mas depois há também quem, no meio da maior tormenta, alinhe em coisas como 'o amor como critério de gestão, ou 'gerir para a felicidade'.

    Coisas estranhas que se passam nas empresas e no mundo da gestão em geral, coisas muito bizarras, muito desligadas da essência das coisas.

    Os países movem-se em cima de coisas deste tipo.

    Às vezes, nem sei bem onde é que a religião pode entrar no meio de tempos tão caóticos.

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    1. Julgo que a religião, uma religião como o cristianismo, está condenada, num mundo como este, a ser aquilo que foi no seu início: um espaço crítico do mundo, um sinal do que as coisas não devem ser. Penso que Ratzinger percebeu isso, mas era um intelectual e não um homem de acção. Este Papa parece conduzir a Igreja para esse caminho. Não sei se os católicos gostarão, pelo menos alguns deles.

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