terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Cardílio (24 sonetos) 6

Vila Cardílio

Havia aldeias de pó, casas de espuma,
Animais de cabeça incendiada.
De vento e som que imagens desse tempo
Na distância ficaram soterradas?

Foram-se os meses, dias foram também.
Tudo se foi tão rápido. Os rios trémulos
Abandonaram-se à foz e o silêncio
Da noite entre colinas logo avançou.

A flecha da memória, uma seta
De cristal, um revérbero de cinza,
A luz branca e animal. Lâmina fria

Em tua cabeça cai. Pesados ombros
Ao feroz peso da água tão vergados,
Sois sombra leve ou lâmpada apagada?

2007

 

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Simulacros e simulações (45)

Imagem gerada através do Dalle 2 da OpenAI

Simula-se a chuva para que chegue a tempestade e, com o furor dos elementos, a natureza se purifique das manchas que nela as ideias semeiam. Não há pior pesadelo para a natureza do que o pensamento. O que é vivo reduz-se às pequenas perfídias da abstracção. Ao crescerem, transformam-se nos martelos furiosos do desejo. Então, batem, batem, batem sem piedade e reduzem o mundo a um simulacro do inferno.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Comentários (3)

Leopoldo Novoa, Brun a deux reliefs, 1970

Recolheu-se a ouvir. De tudo
quanto ouviu não ficou nada
Fernando Echevarría

De todos os limites que circunscrevem o poder dos homens, não haverá limite mais doloroso que o da memória. Cabe-lhe a árdua tarefa da conservação, o desígnio de trazer ao presente as palavras e os gestos havidos, o recordar o que foi dito, para que, perante o jogo das solicitações, se faça presença. A falência da memória é, porém, uma dor que liberta, é a criação de uma clareira para que o não dito e o não acontecido possam, sobre as cinzas do esquecimento, eclodir e trazer sobre o mundo a cintilação de uma nova luz.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Beatitudes (58) A luz da Lua

Caspar David Friedrich, Couple Watching the Moon, 1824

O peso da noite torna-se leve, se a Lua rasga as trevas e abre uma clareira onde os amantes encontram o lugar para o seu amor. Nem a rudeza silvestre da paisagem, nem o ar frio soprado pelo vento norte, nem o temor da escuridão, nem a dúvida que, ainda há momentos, assomava no espírito e tocava no coração, bastam para dissolver o encantamento que a luz do astro lança sobre os corpos, para os raptar do cuidado diurno e os lançar na festa embriagada da beatitude.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Cardílio (24 sonetos) 5

Vila Cardílio

Tão sentado estás na erva verde
Incendiada, fremente como o pólen
De onde destila o tempo. Pelas vinhas
Sopra o Verão voraz, o cru cansaço.

Dos caminhos de sílica, dos fogos
De Outono, do calcário do teu ombro,
Nada resta. Enumeras as palavras,
Mas os dias apagaram-se p’ra ti.

Sombra na superfície das paredes,
Pelo chão derramada, sombra negra,
Tuas mãos o pão deixaram de alumiar.

No fulgor do horizonte, no caminho
Fumegante da vida, és terra, treva,
Ocaso doloroso, um fogo-fátuo…

2007

sábado, 18 de fevereiro de 2023

A questão colonial


A requalificação do Jardim da Praça do Império, de Lisboa, e, especificamente, os brasões das províncias ultramarinas em pedra abrem nova frente de conflito entre direita e esquerda. Não é indiferente dizer província ultramarina ou colónia. Esta linguagem dividia aqueles que apoiavam o regime e os que estavam na oposição, embora entre estes pudesse haver adeptos da colonização. A ideia de império colonial português atravessa tanto a Monarquia como a República e permanece no Estado Novo, reforçando-se com os conflitos coloniais dos anos sessenta e setenta. Salazar abandona a designação de colónias quando os ventos internacionais mudam e a colonização é vista como um atentado à liberdade e à dignidade dos povos colonizados. Portugal, na retórica de Salazar, era uma entidade una que ia do Minho a Timor.

Com o desencadear das guerras coloniais, a oposição, das várias cores, afastou-se do devaneio colonial. O problema é que parte significativa da intelligentsia e da militância da direita democrática e moderada vive na saudade simbólica desse devaneio artificioso que era o Portugal pluricontinental. Tem dificuldade em dizer guerra nas colónias e soletra guerra no ultramar. É uma saudade interessante, pois não acarreta riscos. Aos jovens de direita não se põe o problema de ir combater na guerra e os pais não têm de ver os filhos partir, ou se influentes, usar a influência para que o rapaz tenha uma tropa confortável, longe da frente de combate. Um dos principais problemas do nosso regime, que emerge sempre que se trata do passado, é a cumplicidade da direita portuguesa, ao contrário da italiana ou francesa, com a ditadura. Só o 25 de Abril a libertou e tornou democrática.

Uma democracia deve aprender a olhar para o seu passado com aquilo que teve de exaltante e de aviltante. Faz parte do exaltante o facto de Portugal ter sido um dos artesãos principais da primeira globalização e, desse modo, ter também preparado o mundo para os tempos modernos. Isso não pode tapar o facto de Portugal ter sido uma potência colonial, que esbracejou com outras potências coloniais europeias o domínio de territórios onde existiam pessoas que foram colonizadas e escravizadas. Era o espírito europeu da época, mas esse espírito era objectivamente errado, mesmo que os políticos da altura não o achassem. Era importante que os partidos democráticos, à esquerda e à direita, tivessem uma visão comum sobre a questão colonial, pois esta não é um problema apenas do passado. Toca as relações com os Povos Africanos de Língua Oficial Portuguesa, que terão pouca paciência para o negacionismo luso.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Simulacros e simulações (44)

Pier Luigi Lavagnino, Estate, 1963

O Estio é um rebanho de terras incendiadas pelo silêncio solar, a promessa de um fogo eterno, puro e resplandecente como um fruto acabado de amadurecer. Quem o olha de longe não sabe se vê uma simulação do inferno ou o símbolo da sabedoria que se eleva para guiar os mortais na escuridão.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Nocturnos 97

Brassaï, Le pilier du Métro Corvisart, 1934

A noite semeia sombras como secretos símbolos. Rasga as pedras brancas com a mancha da escuridão. Inventa estranhas personagens que povoam ruas e praças, figuras maiores do arquipélago selvagem dos sonhos, ilhas rodeadas pelo pélago da fantasia, lugar onde as estações do ano perdem o contorno e o tempo se funde na linha da obscuridade.

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Comentários (2)

Vincent Van Gogh, Roots and Tree Trunks, 1890

A raiz é um pássaro
voa pelo interior da terra
Jorge Gomes Miranda
 
O voo inexplicável das árvores é uma sombra que fende a poeira e, nas cavernas mais escuras, esconde-se dos olhos de fogo dos pássaros sem nome. É nesse território sem som nem luz que as florestas tomam o impulso que lhes anima o desejo do ambiente rarefeito dos céus. A raiz procura o fogo interior, o combustível que alimenta o voo em direcção à morada azul onde os deuses benfazejo aguardam o odor das suas folhas e a sombra onde repousarão dos trabalhos e dos dias que preenchem a sua vida divina.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Cardílio (24 sonetos) 4

Vila Cardílio

Cardílio a resgatada casa tua
É pela tarde um lago devastado.
Definharam as ervas, e os poços
Secaram. Já não tens nome nem pátria.

Se teus pés nestas pedras resvalaram,
Estão agora exaustos, tão cansados
de séculos voláteis, de anos idos,
de sonhos não cumpridos. Morto estás.

Que te vale a fendida mancha negra
Aberta na pesada pulsação,
Silenciosa na noite pura e vã?

Os escravos partiram, e as mulheres
Não sabem o teu nome. Adormeceste.
E sonâmbulo a morte te encontrou.

2007

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Cadernos do esquecimento 51 Não quebrar os contratos

George Platt Lynes, Lew Christiensen, William Dollar, and Daphne Vane
performing Orpheus and Eurydice,
1934
Há esquecimentos irremediáveis. O ânimo cede perante o punhal do desejo e o que era o horizonte de uma esperança torna-se a experiência da desilusão. Quando, por fim, se descobria no amor o caminho para remir da morte os que para ela tinham sido atirados, a falência da memória aniquila a jubilosa expectativa e deixa que o curso das coisas retome a norma traçada pela feroz necessidade, fechando para sempre a porta que separa os mortos do mundo dos vivos. Nunca os homens devem quebrar um contrato que graciosamente os deuses permitiram a celebração.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

As direitas

A vida política nas democracias liberais é marcada pelo movimento pendular entre direita e esquerda. Quando uma colapsa, a outra torna-se forte, até que a situação se inverta. O que se está a assistir em Portugal é a uma derrocada das esquerdas e a um fortalecimento das direitas. É destas que se espera a futura governação do país. O problema que se coloca, porém, é que a direita está num processo de reconversão, que passou pela eliminação do tradicional e previsível CDS, o encolhimento do PSD e a clara afirmação de dois novos partidos na direita do espectro político.

A Iniciativa Liberal é uma congregação curiosa. Muitas daquelas pessoas poderiam ser, caso estivéssemos nos anos setenta do século passado, militantes dos grupos de extrema-esquerda maoístas e estalinistas. A mesma intolerância, a mesma rigidez ideológica, a mesma vontade de afirmação pessoal. Portugal assim como nunca teve qualquer inclinação marxista, também nunca se interessou pelo liberalismo. Muita pesporrência dos nossos recentes liberais, idêntica à da antiga extrema-esquerda, deve-se a uma visão enviesada, nascida na universidade, da realidade nacional. Veremos se têm capacidade para moderarem os instintos ideológicos.

Olhado de fora, percebe-se que o Chega é uma organização patética. Faz política a partir de um sentimento antipolítico, mobiliza a moral como trampolim para o poder. Sabe-se bem a que imoralidades conduz o discurso moral em política, mas as pessoas são cegas e surdas. Em tudo isto reside o perigo. Quem queira perceber o que seria o país entregue ao Chega, basta olhar ao que Ventura faz no próprio partido. No Chega confluem um projecto de poder pessoal e interesses económicos poderosos desejosos de se libertarem da ‘trapalhada’ da democracia representativa, dos sindicatos, das negociações, etc. Como o sentimento antipolítico é grande no país, o Chega tem campo para crescer.

Como sempre que está fora do poder, o drama do PSD reside numa liderança cinzenta. Luís Montenegro não tem o carisma de um Passos Coelho, de um Cavaco Silva e, muito menos, de um Sá Carneiro. E isto torna a posição do PSD periclitante. Um líder forte do PSD penetra no país e seca as outras direitas, sem alienar o centro, como foi o caso de Cavaco Silva. Um líder sem fulgor expõe o PSD à necessidade de se coligar com o diabo e de ter de abdicar de uma visão moderada e civilizada da governação. Quanto mais fraca for a liderança do PSD, mais este terá de se sujeitar aos delírios dos novos partidos da direita, o que será péssimo para a democracia e pior para o país e para a maioria das pessoas.

sábado, 4 de fevereiro de 2023

O colapso da esquerda

Uma sondagem da Pitagórica, realizada entre 11 e 17 de Janeiro, mostrava uma radical alteração no panorama político nacional. A grande novidade não será que o PSD tenha ultrapassado o PS em intenções de voto, mas que a direita (PSD, Iniciativa Liberal e Chega) tenha mais peso no eleitorado do que a esquerda (PS, BE, CDU e Livre). Na sondagem, a direita vale 52,8% e a esquerda soma 36,6%. Poder-se-á pensar que é apenas uma sondagem e que esta disposição do eleitorado é conjuntural. Contudo, a tendência e o próprio espírito do tempo parecem indicar que não será assim. O país prepara-se para fazer uma nova experiência política. Valerá a pena fazer uma arqueologia deste colapso.

O momento inaugural da queda é aquele em que a esquerda pareceu mais forte, o dia em que António Costa e os socialistas, apesar de terem perdido as eleições, formaram governo com o apoio parlamentar do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda. Este momento é decisivo porque é a matriz do que vem depois. A esquerda tinha encontrado uma solução de governo que impedia a direita de governar, mas não tinha descoberto uma solução comum para o país. A geringonça foi, na prática, uma coligação negativa, unida por aquilo que não queria, mas incapaz de encontrar uma política unificada para dar rumo à sociedade portuguesa e uma plataforma para reformar seriamente o país. A queda do segundo governo de António Costa, ajudada pelo BE e PCP, não foi mais do que a confirmação de tudo isto. O eleitorado decidiu punir a esquerda que derrubara o governo e deu uma maioria absoluta aos socialistas.

O problema é que nem os socialistas, entregues a si mesmos, têm qualquer coisa de sólida para oferecer. Sem um rumo para as grandes questões da saúde e da educação, viram chegar um conjunto de conflitos sociais a que se adicionou uma tempestade ética e judicial. Neste momento, os socialistas são olhados com uma agência de emprego e uma sociedade com crescentes dificuldades com a justiça. A esta degradação moral do PS junta-se a sensação da irrelevância política de comunistas e bloquistas, presos aos seus fantasmas. António Costa, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins tiveram a ousadia para iniciar um caminho, mas faltou-lhes talento para encontrarem um programa credível e exequível que ajudasse a reformar as instituições e adaptar Portugal aos tempos conturbados em que vivemos. Se a direita vier em breve a ocupar o poder juntamente com a extrema-direita, a esquerda escusa de brandir a ameaça do populismo. Foi ela que, por motivos vários, lhe abriu o caminho.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Cardílio (24 sonetos) 3

Vila Cardílio
Cavaleiro fortuito, o teu cavalo

Trémulo pela arriba cai. Para onde

Te levam os seus passos, se nas asas

Do vento ao orvalho ele te prende?


A segura derrota por teu nome

Chama, no rude campo onde definham

Da parca vida as áridas arestas.

Não cantes, a tua voz é sombra vã.


Sendas em teu cavalgar desenhadas,

Ruas ferozes vencidas de cansaço,

Pedras feridas, sujas pela mão.


Os deuses esqueceram-te. Vai. Parte,

Pois o alado cavalo em teu caminho

Um destino fortuito te dará. 


2007