Vincent Van Gogh - Lírios (1889)
Quem bem sabe fazer o militar não é marcial;
quem bem sabe guerrear não é colérico;
quem bem sabe vencer o inimigo não se faz
presente;
quem bem sabe utilizar homens fica abaixo
deles.
Lao
Tse, Tao Te King, LXVIII
Não há
sombra que ofusque a cintilação dos lírios do campo. Como a dos pássaros, a sua
glória é maior que a de Salomão. Assim, gloriosos, permanecem naquele instante em
que a vida os toca e abrem-se resplandecentes sob a luz solar ou as nuvens negras
do horizonte. Não se sabem cintilantes mas cintilam, não se sabem irradiantes
mas irradiam, não se sabem luminosos mas iluminam. Também aquele a quem a
sabedoria tocou cintila, irradia e ilumina, mas das suas virtudes nada sabe,
nem quer do mundo recompensa, reconhecimento ou um simples lugar que possa
dizer seu.
Caminha
livre pois abandonou a submissão ao desejo de parecer. Basta-lhe aquele saber
que tomou conta do corpo e se inscreveu em cada uma das células. Ele já não é
ele, mas a sabedoria. Quando era ainda demasiado imaturo, a ira depressa tomava
conta de si. O sangue corria-lhe depressa pelas veias e todos podiam ver o
espectáculo da sua cólera. Um dia descobriu que se riam. Não era temido nem
amado. O exercício colérico era apenas o sinal terrível da sua fraqueza. O
fraco que se imaginava forte, o mortal que se tingia de cores divinas, a
criança que se fingia homem. Quando, um dia, se perdeu na floresta, descobriu a
verdade que era a sua. Toda a sua força era ainda um sinal de impotência, de
uma fraqueza desmedida, da fragilidade de todos aqueles que, na arena do mundo,
recorrem ao espectáculo do poder para construírem de si uma figura, a imagem
que os tranquilizará durante a noite.
Como os
lírios no campo, também a floresta estava ali e não sabia. Limitava-se a ser
toda naqueles instantes. Luminosa se havia luz, obscura se entardecia, negra se
a noite vinha sem a lua. A princípio, perdido e sem saber o caminho de volta, sentiu
o medo a arder no peito. Cada ruído sobressaltava-lhe o coração e punha-o
alerta, como se um perigo sem nome o rodeasse e estivesse pronto a cair sobre
ele. Dias e noites passaram, e ele aprendeu a viver com o medo. Dormia onde
calhava e comia o que a natureza lhe oferecia. Mais tarde esqueceu-se do medo e
sentiu a floresta como a sua casa. Ter uma casa ainda é lembrar-se de si. O seu
tempo não chegara. Continuou preso à casa que o acolhera. Passaram meses e anos
até que um dia descobriu que ele era a árvore que via ou o pássaro que
escutava. Não, a floresta não era a sua casa, mas ele próprio era floresta.
Nesse dia, encontrou o caminho e voltou para a sua terra. Olhavam-no como se o
não vissem e falavam para ele como se fala para o mais querido dos amigos. Observou
os campos e viu, pela primeira vez, os lírios a cintilar no horizonte. Ele era a
cintilação, os lírios, os campos.
Seria bom que o Homem pudesse ser contemplativo, mas, infelizmente, ele não é floresta é selva.
ResponderEliminarBoa semana (por cá)
Abraço
Sim. A selva triunfa muitas vezes sobre a floresta.
EliminarBoa semana.
Abraço
Que texto fantástico este. Parte de uma bela citação, também.
ResponderEliminarGostava de saber se já pensava isto antes de o escrever ou se as ideias se foram compondo à medida que o ia escrevendo.
Resposta difícil. As duas coisas são verdade, não se excluem. Há um horizonte de pensamento prévio à escrita. Depois, no acto de escrever, ele foi tomando o caminho que está aí. Neste tipo de textos (mais literários) eu não premedito nem planeio o que escrevo. Estou lá com o que sou e penso, depois as palavras vão-me guiando. Deixo-me instruir por elas, não sou o seu dono. Curiosamente, os textos acabam por fazer sempre sentido. Mas não há aqui metafísica, mas abertura aquilo que sou.
EliminarPareceu-me isso. As palavras a guiarem-no através da floresta até ser parte dela. Foi o que me pareceu ao ler.
ResponderEliminarGostei muito, escuso de dizer.