segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Meditações melancólicas (89) A perfeição do passado

William Henry Fox Talbot, Oxford High Street, 1845
Um dos efeitos mais poderosos da passagem do tempo é o de tornar o passado numa coisa perfeita. Aquilo que no presente nos incomoda não encontra paralelo no tempo que passou, nesses momentos que não se viveram, mas que surgem perante a consciência despidos de contrariedades. A memória, mesmo a colectiva, tende a rasurar tudo o que foi contratempo, desventura, dor lancinante. Resta aquilo que parece bom, destilando no coração uma doce melancolia, um desejo de se transportar para essas horas em que tudo era perfeito. Esta ilusão é o território onde a consciência exausta encontra um lugar para, submersa na fantasia, descansar da dureza da realidade, da imperfeição dos dias, da maldade que a vida sempre mistura no labor de cada hora.

sábado, 26 de novembro de 2022

Simulacros e simulações (41)

André Kertész, Distortion #51, 1933
Toda a distorção é já o esboço de um simulacro, a ocorrência da diluição das fronteiras que contêm cada coisa em si mesma, o trabalho silencioso para que de uma aparência nasça outra, no infinito jogo de simulações, aquilo que num outro tempo se terá chamado metamorfoses.

sábado, 19 de novembro de 2022

A resistência das democracias

A democracia liberal tem vindo a ser submetida a um conjunto de desafios que, não poucas vezes, parecem pôr em causa a sua capacidade de, num futuro próximo, resistir à avalancha de tiranias que existem um pouco por todo o lado. Sempre que há eleições, teme-se que as forças inimigas das liberdades democráticas as ganhem e se dê início a um processo de descaracterização, primeiro, e de destruição, depois, dos regimes democráticos. Dito em linguagem popular, sempre que há eleições os defensores da democracia liberal – tanto na direita como na esquerda – andam com o credo na boca. Há razões para isso. Vejam-se as derivas iliberais na Índia, na Turquia e, dentro da casa comum da União Europeia, da Polónia e da Hungria. Teme-se que o mesmo possa suceder, na sequência das últimas eleições, em Itália.

Contudo, poderá haver lugar para uma visão menos negra do futuro dos regimes democráticos. No Brasil e nos EUA, as instituições políticas deram provas de suportar bem o teste de stress a que democracia foi submetida. A derrota de Bolsonaro, no Brasil, e o resultado decepcionante dos republicanos pró Trump, nas eleições intermédias nos EUA, mostraram que as instituições democráticas talvez tenham mais vigor do que se pensa. O caso do Brasil é interessante. É uma democracia recente, onde um Presidente assumidamente defensor da ditadura foi eleito, mas que, apesar de tudo, não conseguiu subverter o sistema democrático para se perpetuar no poder. Também o facto de nos EUA não ter havido uma maré trumpiana vitoriosa mostra que a funda tradição democrática americana possui alicerces mais sólidos do que se suspeitava.

Numa entrevista ao Público de domingo passado, Kerry Brown, professor de Estudos Chineses no King’s College, de Londres, e autor de um livro sobre Xi Jinping, o líder chinês, sublinhava que as autoridades chinesas crêem que as potências ocidentais estão em decadência. A crença no declínio do Ocidente e a crença no declínio das democracias liberais, não sendo a mesma coisa, irmanaram-se no decorrer da história dos séculos XX e XXI. Também as potências do eixo, aquando da segunda guerra mundial, com Hitler à cabeça, estavam convencidas da decadência das democracias. É assim plausível pensar que a retórica, tanto dos amigos como dos inimigos, acerca da decadência ocidental e das democracias faça parte do metabolismo político e cultural que permite a esse Ocidente e a esses regimes democráticos regenerarem-se, recriando-se e reinventando-se. As democracias, julgo, continuam em acentuado perigo, mas talvez possuam mais poderes para enfrentar as adversidades do que se pensava.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Nocturnos 92

André Kertész, Paris by night, 1929
A noite é uma mulher que caminha levada pelo segredo que esconde no ventre. Descansa sob a luz pública, para poder contemplar com demora as sombras que se desenham na terra. Depois, tomada pela palidez, segue o seu caminho até que a aurora descubra o que em si se esconde.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

A persistência da memória (18)

Theodor and Oskar Hofmeister, Gebet, 1910

Talvez a oração seja o exercício de uma reminiscência, o trabalho secreto e silencioso de descer ao fundo de si mesmo, para o encontro com o inominável. Com o decorrer dos anos, os homens foram-se esquecendo de que também há para eles um caminho interior. Tudo é agora pura exterioridade. Não há caminhos senão aqueles que os olhos podem ver e se neles encontram o desconhecido, logo tratam de colocar-lhe um nome, para o domar e, ao domesticá-lo, o poderem dominar. Por vezes, uma súbita nostalgia acomete-os, como se no fundo de si persistisse a memória delida daquilo que não tem nome, nem figura, nem pode ser domado. Então, sentem que lhes falta alguma coisa, que há um caminho a trilhar, mas é já demasiado tarde para o descobrir.

domingo, 13 de novembro de 2022

Um salvador da consciência de classe


A substituição de Jerónimo de Sousa por Paulo Raimundo como secretário-geral do Partido Comunista Português gerou, como seria de esperar, um conjunto significativo de exercícios hermenêuticos e proféticos. Constatou-se que o Partido Comunista era um Partido Comunista, profetizou-se, mais uma vez, o seu desaparecimento, contrapôs-se o modelo de escolha das lideranças do PCP ao dos outros partidos políticos da democracia portuguesa. Houve artigos que desconstruíram a narrativa de que o operário Jerónimo de Sousa seria substituído por outro operário, Paulo Raimundo, manifestando que este é funcionário político desde os 19 anos e que as suas limitadas experiências do mundo do trabalho seriam irrelevantes para demonstrar a condição de classe do novo secretário-geral. Terá a sua origem em famílias pobres, aliás como parte significativa da população, mas isso não faz dele um proletário, como aqueles que nos tempos da transição à democracia existiam nas grandes, médias e pequenas empresas industriais do país.

A construção narrativa, por parte do PCP, de Paulo Raimundo como operário não deixa, todavia, de ser um exercício interessante e revelador. É uma mensagem para dentro do partido, para mostrar a fidelidade à sua tradição – e todas as tradições têm muito de imaginado, como o mostrou Eric Hobsbawm, um historiador marxista – e aos seus princípios. É, também, uma mensagem para fora do partido, uma tentativa desesperada de dar um sentido positivo e de esperança à condição operária ou, como o PCP gosta de dizer, dos trabalhadores. Por que razão se está perante uma tentativa desesperada? Porque a percepção da condição operária – ou de trabalhador – mudou radicalmente, em Portugal, desde os anos setenta do século passado aos nossos dias. Não foi apenas o peso demográfico do operariado que se alterou substancialmente, mas a sua própria consciência de classe.

Em 1974, os operários ainda tinham uma representação positiva da sua função na história do mundo. Apesar dessa representação ser já anacrónica no plano europeu, em Portugal ainda era possível que parte substancial das classes operárias se visse como portadora de um novo mundo, onde a justiça seria alicerçada na igualdade e no fim da chamada exploração capitalista. Ser operário era, naqueles dias, um motivo de orgulho e, ao mesmo tempo, de esperança. Assumir essas crenças significava ter consciência de classe, ter consciência de possuir um papel decisivo na história. O desenvolvimento da história do mundo e de Portugal erodiu completamente estas crenças. A consciência de classe dos operários ainda existentes será hoje em dia algo quase residual. Poucos acreditarão na narrativa marxista sobre o seu papel na transformação do mundo. Perderam as ilusões ideológicas sobre o seu papel histórico. Eles sabem que não são agentes históricos e têm a difusa consciência de serem pacientes, aqueles que sofrem os efeitos dessa história.

Uma das declarações mais estranhas, embora das mais reveladoras, é aquela que afirmava que o PCP escolhia Paulo Raimundo para travar o Chega (ver aqui). Porquê o Chega? Morta a consciência de classe, desaparecida a crença no papel do operariado na história do mundo, resta a situação de se ver como operário, mal pago, num mundo pleno de seduções. Ser operário deixou de ser motivo de orgulho revolucionário, mas, num tempo de escolarização democratizada, sinal de que se falhou na vida, de que as coisas não correram bem nos estudos ou que não se fizeram as escolhas correctas, de que a existência se encontra limitada pela função que se desempenha. Este sentimento de uma falência pessoal não conduz à consciência revolucionária, mas à indiferença resignada e, em muitos casos, a uma consciência ressentida perante as elites. Este não é um fenómeno português. Existe um pouco por todo o mundo ocidental. Veja-se o apoio das classes operárias brancas a Trump ou, em França, a transição directa do voto das classes operárias do Partido Comunista Francês para a extrema-direita.

A escolha do anónimo Paulo Raimundo, reconstruído biograficamente como operário, é uma tentativa de dizer que no PCP ainda não são as elites que mandam, que aquele é o partido dos que perderam na concorrência existencial, dos que são vítimas da sociedade de mercado. Uma tentativa de salvar a boa consciência operária. Ora, o problema é que o Chega é mais atractivo para aqueles que sofrem com a história do mundo, para os que no lugar de uma consciência de classe revolucionária possuem uma consciência ressentida relativamente ao seu lugar na sociedade. Os operários de hoje, na sua generalidade, não querem ser agentes da revolução, querem deixar de ser operários, para poderem fruir mais completamente da sua existência. Revoltam-se, eventualmente, mas não são revolucionários. Não querem outro mundo, querem ter um lugar melhor neste ou, em caso de desespero, que este mundo rebente nas mãos de aventureiros, para punição dos pecados das elites, vistas como avaras e corruptas. Os actuais operários – os trabalhadores, na linguagem do PCP –  não têm consciência de classe, têm consciência de si, da sua individualidade e da vida estreita em que essa individualidade está mergulhada. O Comité Central do PCP atribuiu a Paulo Raimundo, como se de um Atlas se tratasse, o papel soteriológico de salvar a consciência de classe.

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Simulacros e simulações (40)

Paul Almasy, Nuns, Paris, 1950
Quem olha pergunta se no simulacro do silêncio não se manifestará uma simulação da vida. Quem é olhado, porém, pensará que abandonou toda a simulação, para que a vida deixasse de ser um simulacro e se tornasse presença viva e real. Entre a pergunta de uns e o pensamento de outros haverá um hiato que nenhuma simulação poderá unir num simulacro de acordo ou sequer de comunicação.

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

O progresso moral da humanidade (9)

Lee Miller, Charred bones, Buchenwald, Germany, april 1945
O desprezo com que parte da espécie humana trata o mundo circundante e os outros animais não é uma situação de excepção em relação a si mesma. Dois séculos de Luzes, século e meio após a publicação de O que é o Iluminismo, de Immanuel Kant, e todas as boas intenções foram incapazes de evitar os campos de concentração, os fornos crematórios, todo um cortejo de inomináveis sevícias. O choque tremendo da descoberta da natureza dos campos de concentração não parece ser suficiente para evitar que novas edições - por agora em escala menos industrial - venham à luz do dia. O progresso moral da humanidade não tem de enfrentar apenas a maldade que habita o coração dos homens. Tem de enfrentar também aquilo que todo o progresso implica. E aquilo que o progresso implica é o esquecimento das situações vividas, a destruição das memórias reais. O tempo acabará por destruir os traços que horrorizaram as consciências e isso abrirá o caminho para que o horrível surja de novo, mesmo que seja segundo outras aparências. Também o horrível tem mil máscaras.

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Declinação da Sombra 7

António Saúde, Dia de trovoada, 1906

Um brusco bater de asas,
o uivo distante do cão.

Universos de barro e pó,

o som das folhas caídas,

mãos e musgos,

a noite estremecida

no negro trono de rainha.

 

Desprendia-se da macieira

um odor azul,

a cinza sobre a terra,

a paisagem de cal.

 

Na estrada, passava quem ia,

cobria-se a casa de pano:

a seda, o linho,

o algodão em árido ardil.

 

Assim fiavam as fiandeiras,

o tempo

de suas mãos desabava,

um brusco bater de asas,

uma sombra

ao sol do meio-dia.

 

Da árvore, a folha desce.

Nela, uiva o cão,

o grito da tarde

suspende-se, logo cai.

 

(1998)

sábado, 5 de novembro de 2022

O principal conflito político

Durante muito tempo, a clivagem direita – esquerda estruturou a vida política. Orientava as opções do Estado e os votos dos eleitores. Essa clivagem que começou, em França, como uma querela entre os defensores do Absolutismo e os dos interesses de uma burguesia ascendente desejosa de os fazer valer politicamente, foi tomando novos sentidos. O mais significativo era o que opunha as classes triunfantes com o liberalismo e as classes trabalhadoras. Jogava-se fundamentalmente no terreno da justiça distributiva, sobre aquilo que nos rendimentos deveria caber ao capital e ao trabalho, havendo todo um espectro de distribuições, que iam de uma quase escravatura até à abolição da propriedade privada dos meios de produção. No meio destes dois marcos havia, e há, gradações distributivas muito diversas.

Hoje em dia, a clivagem direita – esquerda deixou de ser estruturante da vida política. Não é que tenha acabado. Ela persiste. Contudo, uma outra clivagem sobrepôs-se à que era dominante. Está ligada à tensão entre regimes democráticos e regimes autoritários. Não é que esse conflito não existisse há muito. Existia, mas não apresentava os aspectos dramáticos que ostenta nos tempos que correm. A avaliação das situações depende das expectativas. Ora, nas democracias surgiu, a partir da Queda do Muro de Berlim, uma crença de que o mundo caminharia, mais depressa ou mais devagar, para regimes democráticos, tal como são concebidos no Ocidente. A terceira vaga de democratizações, iniciada em Portugal, com o 25 de Abril, iria alastrar-se a todo o planeta, numa espécie de globalização da democracia.

Um conjunto de acontecimentos traumáticos vieram abalar essa confiança num devir democrático do mundo. A evolução política da Rússia, o falhanço democrático das Primaveras Árabes, a rigidez autoritária da China que, em momento algum, deu sinais de se aproximar de uma democracia, a evolução do nacionalismo indiano, tudo isto é uma má notícia. Assim como são más notícias a força do bolsonarismo no Brasil, do trumpismo nos EUA e, também, a evolução da Turquia e de alguns regimes da União Europeia, como o húngaro ou o polaco, ou o peso da extrema-direita em muitos países europeus. Isto para não falar do Irão, Venezuela, Coreia do Norte, Cuba, Afeganistão, a generalidade do mundo árabe. A vaga de democratizações nascida em 1974 encontra-se em refluxo. A intensa luta entre democracias e regimes autoritárias tornou-se o principal foco de conflito que atravessa o mundo e que organiza todos os outros, mesmo os referentes à justiça distributiva.


quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Nocturnos 91

Cleora Clark Wheeler, Evening, 1922
A transparência dos dias desagua na assombração das noite. Então, tudo se torna esboço, desejo, promessa em busca da coerência dos contornos ou da fixidez das fronteiras. Se as estrelas brilham ou se a Lua, virginal e inquieta, derrama a sua luz sobre a Terra, os animais adormecem protegidos pelo murmúrio das árvores batidas pela floração do vento.
 

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Não a religião, mas as redes sociais


Não é a religião, mas as redes sociais que estão a destruir a herança do Iluminismo. Este foi um movimento multifacetado cujo momento central é o século XVIII. Trazia uma visão do mundo baseada na razão e na crença de que, sendo o homem um animal racional, todos deveriam orientar a vida pelos ditames da razão. O Iluminismo foi um movimento de libertação dos indivíduos dos preconceitos, da tradição e da tutela de príncipes e pastores. Não sendo um movimento ateísta, as Luzes questionavam a aceitação acrítica de dogmas e, fundamentalmente, o facto de a religião, através dos seus agentes, exercer um poder sobre a consciência dos indivíduos, mantendo-os numa espécie de menoridade. A influência do Iluminismo prolongou-se, com diversas vicissitudes, até aos nossos dias, embora sempre contestado.

A herança das Luzes, no que tem de melhor, sublinha a autonomia dos indivíduos, o poder de dirigirem por si a sua existência. A religião, com a sua estrutura de controlo das consciências individuais, foi vista como a principal ameaça aos valores Iluministas. Hoje, em dia, quando se observa uma forte degradação desse legado do século XVIII, constata-se, não sem perplexidade, que as igrejas cristãs se adaptaram, com mais ou menos entusiasmo, aos valores do Iluminismo, muitos deles originados no próprio cristianismo e secularizados pelas Luzes. É nas redes sociais e nos comportamentos que estas permitem ou suscitam que parece estar um dos principais factores de ameaça aos melhores valores Iluministas. Dois exemplos.

A noção de seguidor, um dos elementos centrais da vivência nas redes, é um exemplo de negação do ideal da autonomia dos indivíduos. A crença Iluminista é que cada um apenas deve seguir, de modo imparcial, a sua razão. Como seres racionais, é uma degradação ser seguidor seja do que for e de quem for, a não ser da razão. As redes desocultaram e passaram a explorar até à saciedade o desejo de ser seguidor, de adoptar alguém como pastor que indica um caminho. Um segundo exemplo é o do debate. Segundo os valores Iluministas, o debate público deve ser ele mesmo orientado não pelos preconceitos, nem pelos afectos ou sentimentos de cada um, mas por valores racionais de compromisso com a verdade. Ora, o debate nas redes sociais é o contrário de tudo isso. Uma gritaria exaltada, irracional, avessa à verdade. Uma afirmação de preconceitos de uns contra os preconceitos de outros. Com tudo isto, não é apenas a herança das Luzes que está a ser destruída, mas as próprias comunidades e as regras de uma convivência sã num mundo plural.