A substituição de Jerónimo de Sousa por Paulo Raimundo como secretário-geral do Partido Comunista Português gerou, como seria de esperar, um conjunto significativo de exercícios hermenêuticos e proféticos. Constatou-se que o Partido Comunista era um Partido Comunista, profetizou-se, mais uma vez, o seu desaparecimento, contrapôs-se o modelo de escolha das lideranças do PCP ao dos outros partidos políticos da democracia portuguesa. Houve artigos que desconstruíram a narrativa de que o operário Jerónimo de Sousa seria substituído por outro operário, Paulo Raimundo, manifestando que este é funcionário político desde os 19 anos e que as suas limitadas experiências do mundo do trabalho seriam irrelevantes para demonstrar a condição de classe do novo secretário-geral. Terá a sua origem em famílias pobres, aliás como parte significativa da população, mas isso não faz dele um proletário, como aqueles que nos tempos da transição à democracia existiam nas grandes, médias e pequenas empresas industriais do país.
A construção narrativa, por parte do PCP, de Paulo Raimundo como operário não deixa, todavia, de ser um exercício interessante e revelador. É uma mensagem para dentro do partido, para mostrar a fidelidade à sua tradição – e todas as tradições têm muito de imaginado, como o mostrou Eric Hobsbawm, um historiador marxista – e aos seus princípios. É, também, uma mensagem para fora do partido, uma tentativa desesperada de dar um sentido positivo e de esperança à condição operária ou, como o PCP gosta de dizer, dos trabalhadores. Por que razão se está perante uma tentativa desesperada? Porque a percepção da condição operária – ou de trabalhador – mudou radicalmente, em Portugal, desde os anos setenta do século passado aos nossos dias. Não foi apenas o peso demográfico do operariado que se alterou substancialmente, mas a sua própria consciência de classe.
Em 1974, os operários ainda tinham uma representação positiva da sua função na história do mundo. Apesar dessa representação ser já anacrónica no plano europeu, em Portugal ainda era possível que parte substancial das classes operárias se visse como portadora de um novo mundo, onde a justiça seria alicerçada na igualdade e no fim da chamada exploração capitalista. Ser operário era, naqueles dias, um motivo de orgulho e, ao mesmo tempo, de esperança. Assumir essas crenças significava ter consciência de classe, ter consciência de possuir um papel decisivo na história. O desenvolvimento da história do mundo e de Portugal erodiu completamente estas crenças. A consciência de classe dos operários ainda existentes será hoje em dia algo quase residual. Poucos acreditarão na narrativa marxista sobre o seu papel na transformação do mundo. Perderam as ilusões ideológicas sobre o seu papel histórico. Eles sabem que não são agentes históricos e têm a difusa consciência de serem pacientes, aqueles que sofrem os efeitos dessa história.
Uma das declarações mais estranhas, embora das mais reveladoras, é aquela que afirmava que o PCP escolhia Paulo Raimundo para travar o Chega (ver aqui). Porquê o Chega? Morta a consciência de classe, desaparecida a crença no papel do operariado na história do mundo, resta a situação de se ver como operário, mal pago, num mundo pleno de seduções. Ser operário deixou de ser motivo de orgulho revolucionário, mas, num tempo de escolarização democratizada, sinal de que se falhou na vida, de que as coisas não correram bem nos estudos ou que não se fizeram as escolhas correctas, de que a existência se encontra limitada pela função que se desempenha. Este sentimento de uma falência pessoal não conduz à consciência revolucionária, mas à indiferença resignada e, em muitos casos, a uma consciência ressentida perante as elites. Este não é um fenómeno português. Existe um pouco por todo o mundo ocidental. Veja-se o apoio das classes operárias brancas a Trump ou, em França, a transição directa do voto das classes operárias do Partido Comunista Francês para a extrema-direita.
A escolha do
anónimo Paulo Raimundo, reconstruído biograficamente como operário, é uma
tentativa de dizer que no PCP ainda não são as elites que mandam, que aquele é
o partido dos que perderam na concorrência existencial, dos que são vítimas da
sociedade de mercado. Uma tentativa de salvar a boa consciência operária. Ora,
o problema é que o Chega é mais atractivo para aqueles que sofrem com a
história do mundo, para os que no lugar de uma consciência de classe revolucionária
possuem uma consciência ressentida relativamente ao seu lugar na sociedade. Os
operários de hoje, na sua generalidade, não querem ser agentes da revolução,
querem deixar de ser operários, para poderem fruir mais completamente da sua
existência. Revoltam-se, eventualmente, mas não são revolucionários. Não querem
outro mundo, querem ter um lugar melhor neste ou, em caso de desespero, que
este mundo rebente nas mãos de aventureiros, para punição dos pecados das
elites, vistas como avaras e corruptas. Os actuais operários – os trabalhadores, na linguagem do PCP – não têm consciência
de classe, têm consciência de si, da sua individualidade e da vida estreita em
que essa individualidade está mergulhada. O Comité Central do PCP atribuiu a Paulo
Raimundo, como se de um Atlas se tratasse, o papel soteriológico de salvar a consciência
de classe.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.