quarta-feira, 31 de julho de 2013

O Islão e o Ocidente

Vincent Van Gogh - Natureza morta com Bíblia e candelabro (1885)

Se o Alcorão forma um Livro único e monolítico, geometricamente estruturado, onde as suras se ordenam em função do número decrescente dos seus versículos, a Bíblia apresenta-se, quanto a ela, sob o signo da pluralidade ostensiva, como uma simples biblioteca, uma soma de livros, uma colecção altamente babeliana. Esta sucessividade do Livro, por adjunção de livros, é acentuada no Novo testamento devido ao seu carácter de apêndice às Escrituras judaicas. (Christian Belin, Le Corps Pensant, p. 257)

Esta distinção entre o Alcorão e a Bíblia, constatada por Christian Belin, permite perceber muito daquilo que separa o mundo muçulmano e o mundo ocidental. Não é que o Islão seja destituído de pluralismo - existem várias correntes conflituais -, mas esse pluralismo acaba por surgir, a cada uma das partes, como ilegítimo. O mundo ocidental formado, em grande parte, pela religião cristã tem, no seu próprio Livro, o exemplo de um pluralismo, de uma pluralidade ostensiva, como assinala Belin. Não são apenas os estilos dos diversos livros bíblicos que são diferentes, mas o próprio conteúdo está longe de obedecer a uma uniformidade monolítica. 

O pluralismo político ocidental nasceu da necessidade de construir sociedades, com credos cristãos conflituais, tolerantes. Essa tolerância, contudo, só foi possível porque, desde há muito, as comunidades eram trabalhadas por narrativas estilisticamente diversas, por uma multiplicidade babeliana de vozes, por obras diferentes que se harmonizavam numa totalidade, a Bíblia, que as continha. A tolerância não é o ponto de partida do pluralismo. Ele é um momento onde esse pluralismo preexistente ganha consciência de si e ultrapassa a decisão de eliminar as outras vozes.

O mais pertinente da citação de Belin, porém, pode ser encontrado no confronto entre dois tipos de razão. A razão geométrica - de certa forma, aquela que seduziu Descartes e Espinosa - do mundo islâmico e a razão babeliana constitutiva do mundo ocidental. A razão geométrica acaba por legitimar toda uma ordem derivada da unidade monolítica do Alcorão, enquanto a razão babeliana exige um esforço de tradução, um exercício de compreensão do outro e das suas diferenças. No caso do Islão, o resultado é a Charia. No cristianismo, é o dom das línguas, como o retratado nos Actos dos Apóstolos, 2:1-12, onde aquele que fala é entendido pelo outro, apesar da diferença de idiomas.

terça-feira, 30 de julho de 2013

O retorno das Sibilas

Hermen Anglada-Camarasa - Sibila (1913)

Um dos efeitos dos nossos dias - um efeito que nunca deixa de me surpreender - reside no paradoxo que parece habitar no exercício da liberdade. Uma sociedade que se desregula, que cada vez abre mais e mais sectores de acção à liberdade dos homens, gera, ao mesmo tempo, no homem comum, um sentimento de desapropriação da sua liberdade e de aniquilação da sua capacidade de iniciativa, como se o aumento da liberdade possível fizesse crescer, em contrapartida e de forma exponencial, a experiência de uma irremissível fatalidade. Os tempos estão propícios para o retorno das Sibilas.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Da mobilidade especial

Gino Severini - Automóvil a la carrera (1912-1913)

Não é que as sociedades tradicionais fossem imóveis e imutáveis, mas a imutabilidade e a imobilidade eram os princípios ordenadores e que davam sentido à existência social. Na impossibilidade de repousar eternamente no princípio imutável, essas sociedades organizavam o ciclo da vida segundo uma forma de mutação que espelhava o imutável, por exemplo, o ciclo anual visto como um eterno retorno do mesmo. A metafísica platónica racionaliza esse impulso e eterniza no mundo das Ideias essa aspiração à permanência.

A modernidade vai subverter esta visão do mundo. Há um primeiro momento onde o culto dos antigos - o modelo greco-latino - ainda disfarçou a novidade, mas a partir da Querela dos Antigos e dos Modernos (iniciada em 1687) torna-se claro que os modelos fornecidos pela tradição são abandonados e que o passado - que era uma espécie de ponte para o imutável - deixou de ser o foco orientador da acção dos homens modernos. Os séculos XVIII e XIX consagram a ideia de progresso - o moral e o material - e orientam a visão do homem para o futuro, para o bem que há-de vir. O século XX aniquilou a ideia de progresso moral, mas a evolução tecnológica tornou-se absolutamente avassaladora.

Em todo este movimento, o que está em jogo é a mobilidade e a mutabilidade. A sociedade torna-se móvel e a velocidade da mudança ou da deslocação no espaço incrementa-se continuamente. O Estado-nação, apesar de tere um papel central na produção do novo modelo de sociedade, continha em si muitos elementos tradicionais e vinculados à ideia de imobilidade e de imutabilidade. As burocracias estatais e os corpos de funcionários públicos, os grandes agentes da modernização contínua da sociedade em conjugação com a ciência moderna e a empresa capitalista, eram imóveis e imutáveis, tanto quanto isso era possível. E é isso que agora está a ser posto em causa com a lei da mobilidade especial dos funcionários públicos portugueses.

O que se está a passar não é apenas um problema ideológico - embora também o seja -, mas o desenvolvimento lógico de uma ideia central do projecto da modernidade: a realização da pura mobilidade de todos os elementos sociais, o desenvolvimento de redes continuamente mutáveis. O dilema que se coloca na interpretação destes acontecimentos prende-se com as consequências da introdução da mobilidade no seio dos corpos imutáveis e imóveis da burocracia estatal e do funcionalismo público: significará esta mobilidade, visto que esses corpos foram e ainda são agentes de modernização, o fim do projecto da modernidade, ou estamos perante um novo momento do desenvolvimento do projecto moderno que dispensa ele mesmo os corpos imutáveis e imóveis que o ajudaram a vir à luz? Estaremos perante novo sintoma de uma pós-modernidade ou assistimos apenas à radicalização da modernidade? Esta querela arrasta-se já há alguns decénios, mas o ataque à imobilidade e à imutabilidade dentro do Estado é um elemento que, não sendo novo, tem um pesado significado no destino das nossas sociedades e do projecto da modernidade.

domingo, 28 de julho de 2013

Meditações dialécticas (15) Pretérito perfeito

Paul Signac - Boulevard de Clichy (1886)

Quantas vezes olhamos para um quadro antigo e surpreendemos nele uma perfeição inultrapassável? Não é uma questão técnica, pois não é isso que prende, de imediato, a atenção. Trata-se da perfeição do modo de vida que ali vemos representado. Seria, contudo, desavisado pensar que esse sentimento de perfeição nasce de uma nostalgia por algo que se viveu ou que, na impossibilidade temporal de o ter vivido, se desejaria viver. Essa perfeição deriva antes daquilo que, do ponto de vista gramatical, designamos como pretérito perfeito. É o sentimento de algo que está concluído, de um modo de vida que encontrou o seu fim e se perfez, de um mundo que se fechou e, nessa sua oclusão, encontrou todo o seu sentido. A perfeição inultrapassável é então sintoma de um estranhamento. Aquele mundo não é já o nosso e ganhou a perfeição das coisas imutáveis. Todo o pretérito perfeito anuncia a imperfeição do nosso presente inconcluído e inconclusivo.

sábado, 27 de julho de 2013

Poema 75 - São diferentes agora os dias

Joaquin Sorolla y Bastida - María en el mar (1900)

75. São diferentes agora os dias

São diferentes agora os dias.
A luz brilha vagarosa e indecisa
e tudo traz em si a lentidão,
um rumor de outonos pelos quartos,
a casa de onde partiram os que faltam.

No jardim, retornaram as crianças
e as flores madrugam para sorrir,
quando chegas à janela
e perguntas ao céu a cor das ondas.

Deixas ainda as mãos sobre a mesa,
e eu conto-te os dedos
para saber o desejo das estações
ou escutar o eco do teu coração
ao abrir-se no silêncio do meu.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Uma fábula persistente

A minha crónica desta semana no Jornal Torrejano.

Uma das fábulas mais persistentes da política portuguesa é o carácter arbitral do Presidente da República. Dizer que o PR é um árbitro significa afirmar que ele é independente dos que jogam o jogo político. Ora nem a Constituição define o PR como um árbitro ou um juiz imparcial, nem a prática dos vários presidentes eleitos tem sido independente do jogo político e do conflito partidário. Talvez o caso mais interessante seja o do general Ramalho Eanes que, não pertencendo a qualquer partido político, acabou por patrocinar o nascimento, enquanto estava na Presidência, do seu próprio partido político, o PRD.

Cavaco Silva nunca deixou de dar provas de uma visão política partidária. O seu desempenho na crise aberta pela maioria governamental – a carta de saída de Vítor Gaspar e o reconhecimento da falência da política seguida, bem como a irrevogável demissão de Paulo Portas – mostraram à saciedade que o actual PR não está acima do conflito partidário, pelo contrário. Perante o descalabro das políticas seguidas e os estados de alma dos governantes, Cavaco Silva tudo fez para salvar a maioria e, ao mesmo tempo, para colocar o PS e o seu líder em extrema dificuldade.

A sua proposta de um acordo de salvação nacional foi um belo presente para a maioria e uma maçã envenenada para Seguro. Portugal, com pouca cultura democrática, não compreende os benefícios do pluralismo de ideias e do conflito de soluções rivais, sendo, por isso, muito vulnerável a pretensos e ilusórios consensos. Uma espécie de saudosismo da União Nacional, do tempo do dr. Salazar. Os socialistas ficaram colocados perante um dilema: ou faziam um acordo com os partidos da maioria, o que tornava o PS responsável pelas políticas do governo, ou rejeitavam, como o fizeram, e seriam – como serão – acusados de falta de responsabilidade e de pouco espírito patriótico. Fosse qual fosse a posição de Seguro, os socialistas ficariam mal na fotografia e a maioria seria tornada inocente e pura.


Foi uma excelente jogada partidária de Cavaco Silva. Mas foi uma boa jogada para os portugueses? Para alguns, foi. Mas para aqueles que sofrem as consequências das más decisões do actual governo – quase sempre apoiadas pelo Presidente – foi uma péssima solução. Dizer que a proposta de Cavaco Silva não serviu para nada não é verdade. Serviu para defender os partidos que o apoiaram, serviu para mostrar que não é independente, serviu, por fim, para reforçar a força daqueles que estão apostados em fazer de Portugal um novo Bangladesh.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Tempo suspenso


Para retornar à actividade - como está um tempo de preguiça - aqui fica a minha crónica da semana passada no Jornal Torrejano.

Talvez seja dos dias de calor ou da instabilidade do clima, talvez seja apenas mau olhado, mas Portugal vive um tempo suspenso. Disfarçamos, olhamos para o lado, assobiamos para o ar. Nada se passa. O Dr. Vítor Gaspar decidiu ir-se embora, dizendo, depois de arruinar centenas de milhares de pessoas, que as suas sábias políticas estavam erradas. O Dr. Portas, azougado e feérico, achou que o tempo se apressava e bateu com a porta, para que ele se tornasse mais vagaroso. O Sr. Primeiro-Ministro já não sabe para onde se voltar, nem sabe se quer que o tempo avance rapidamente ou pare. O próprio Presidente da República decidiu convocar os partidos para suspenderem o tempo. Mesmo na esquerda, todas aquelas propostas de negociações são formas de suspender o tempo.

O que está em jogo é uma coisa muito simples, as eleições alemãs. Está toda a gente à espera de um milagre, que o tempo em Portugal se suspenda, o que significa que não se tomam decisões aborrecidas, enquanto, sorrateiro e desavisado, o tempo, na Alemanha, se precipita nos braços das eleições. Desse amplexo, esperam, suspensos, os portugueses que, rejubilante, a senhora Merkel fique com melhor feitio. O que temos assistido, nestes últimos tempos, só tem uma causa: esperar que, liberta do juízo dos cidadãos alemães, gente indisposta com o pessoal do Sul, a Senhora se apiede de nós e abra uma fresta para renegociar a dívida e pôr em acção alguns mecanismos de coesão europeia, para evitar o colapso puro e simples dos países periféricos.

Não vejo outra alternativa à imensa desgraça que se avizinha. Ela contém, todavia, duas manchas que há que ter em conta. A primeira nódoa diz respeito à relação entre a vitória eleitoral e a boa disposição de Angela Merkel. Nada nos garante que, após eleições, ela se torne mais compreensível com o desespero do Sul. A segunda diz respeito aos responsáveis indígenas. Anda toda a gente deserta para voltar à sua vidinha, aos negócios do costume. É este retorno à vidinha que é o principal problema, pois foi essa vidinha que nos trouxe aqui. Por vidinha entendo não o Estado Social, mas as vaidades de primeiros-ministros e presidentes de câmara, as auto-estradas sem carros, os estádios de futebol vazios, o buraco sem fundo da Madeira, os negócios do BPN, a primazia dos bancos, as Parcerias Público-Privadas e os milhentos negócios que parasitaram o Estado e as autarquias, e mostraram a natureza das nossas elites políticas. Podem suspender o tempo, mas o melhor seria suspender o carácter, ou a falta dele. Foi isso que nos trouxe a este lamaçal e a esta ignomínia.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Igualdade e rivalidade

Joaquin Sorolla y Bastida - As duas irmãs (1909)

Estou em maré de falta de respeito pela lógica. Ao observar o comportamento das minhas netas, fez-se luz, no meu pobre e triste cérebro, acerca da persistência na humanidade dos ideais igualitários, entre eles o comunismo. Serão elas umas terríveis e precoces teóricas da igualdade? Claro que não, as pobres só têm dois anos e meio, uma, e quase cinco, outra, e comportam-se como todas as crianças da sua idade. E o problema está todo aí. Não há coisa que se dê ou faça a uma que a outra não queira exactamente o mesmo. Se não o obtiver sente-se injustiçada  e discriminada. A exigência de igualdade é, para elas, uma norma absoluta. 

Dir-se-á, não sem alguma razão, que o crescimento e a socialização moderarão esta atracção pela igualdade material, e um principio de rivalidade, nomeadamente em relação aos que estão fora da família, mas também  aos próprios irmãos, fará o seu caminho, sendo uma espécie de fundamento antropológico do ponto de vista liberal. O que é importante sublinhar, contudo e nestes dias de incenso à rivalidade, é a força deste igualitarismo originário. 

Um dos problemas que conduziu à falência de todas as experiências comunistas foi a anulação - na verdade, foi apenas um transfert da vida económica para a vida política dentro dos partidos comunistas - da inclinação para a rivalidade que existe em todos nós. O que é preocupante no liberalismo, por outro lado, é a anulação da aspiração à igualdade, aspiração que está depositada bem fundo no coração humano. Na verdade, aspiração à igualdade e inclinação para a rivalidade são duas faces da mesma moeda. Quando pretendemos separar e deitar fora uma das faces, destruímos a moeda. Foi isso que aconteceu nos países comunistas. É isso que está a acontecer nos países ocidentais.

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E com esta indução, fundada na observação de um único caso, este blogue dá a si mesmo um justo intervalo de meia dúzia de dias. Não são férias do blogger, mas um intervalo do blogue. Alors, a bientôt!

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Evitar a anagnórise

Ramón Pérez Carrió - Anagnórisis (1994)


Um dos principais problemas do drama português é a inexistência de momentos de anagnórise. Nunca descobrimos os dados essenciais da nossa realidade nem da realidade que nos envolve. Quando o filósofo José Gil escreveu que o problema português é um problema de não inscrição - de não tornar real aquilo que desejamos - ficou na superfície. A questão é mais funda e liga-se com a ausência de desocultação, de revelação. Não é apenas a classe política que, deliberada e sistematicamente, nos oculta a realidade em que vivemos. Somos nós, portugueses, que evitamos a revelação da verdade. A verdade proveniente do reconhecimento, como ensina a Poética de Aristóteles, obriga as personagens dramáticas a formar uma ideia mais exacta de si mesmas, daquilo que as rodeia e da sua própria conduta. A democracia portuguesa, fundamentalmente após a adesão à União Europeia, então CEE, foi um exercício terrível de cumplicidades entre eleitos e eleitores. Todos conspiraram, e conspiram ainda hoje, para evitar a hora terrível da anagnórise. Não é a não inscrição, a falta de produtividade, a ausência de competitividade, etc. que são problemáticas. Terrível é que construímos uma sociedade que lida mal, muito mal, com a revelação da verdade, que evita, a todo o custo, o momento de anagnórise, fingindo que nada se passa. O preço é a inultrapassável embrulhada onde nos encontramos.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Compromisso histórico

Rufino Tamayo - Llamada de la revolución (1935)

Em todo este drama que se abateu sobre Portugal, aquilo que não deixa de me surpreender é a baixa atracção que os partidos de protesto - PCP e BE - continuam a ter. Seria expectável que, com a aplicação do programa da troika, as sondagens mostrassem uma afirmação clara destes partidos. A verdade, porém, é que isso está longe de acontecer. A sondagem publicada há dois dias no Correio da Manhã mostra até o contrário, a soma de ambos, no último mês e já depois das peripécias governamentais que todos conhecemos, recua cerca de três pontos percentuais. Somam agora cerca de 17% contra os cerca de 71% do arco da troika.

Mostrarão estes resultados que existe um largo consenso nacional sobre o caminho a seguir? Em aparência sim. Na verdade, porém, a realidade é outra. PCP e BE são vistos apenas como partidos de protesto, mas que não têm qualquer solução viável para o problema onde nos encontramos metidos. Independentemente daquilo que pensam militantes e dirigentes desses partidos, eles não fazem parte, segundo os portugueses, da solução e como tal as sondagens que possam mostrar o seu crescimento nunca disparam verdadeiramente.

É pena que PCP e BE sejam vistos apenas como partidos de protesto, é pena que eles, de forma deliberada, passem também essa imagem para a opinião pública. Em primeiro lugar, ambos têm um ethos muito diferente dos partidos de governo, um ethos marcado pelo respeito pelo bem público, marcado por colocar o bem da comunidade acima do interesse dos agentes políticos. Em segundo lugar, ambos defendem um conjunto de valores políticos, nomeadamente ao nível das funções sociais do Estado, que mereceriam ser defendidos não apenas pelo protesto mas pelo compromisso político. 

Se ambos os partidos se dispusessem a um compromisso histórico com os socialistas, um compromisso que se situasse dentro da realidade (e a realidade é que estamos sob assistência financeira) em que vivemos e que visasse a defesa do essencial, talvez os portugueses olhassem para eles com mais atenção e percebessem que alguma coisa de novo poderia vir da esquerda. Não vale a pena esperar o chamamento da revolução social, os portugueses são surdos para ele. Mas certamente teriam ouvidos muito atentos para uma ética do respeito pelo bem comum e para o compromisso que os ajudasse a sair do lodaçal onde o arco da governação os meteu.

domingo, 14 de julho de 2013

Poema 74 - Este saber que nasce das águas marítimas

Claude Monet - Etretat (1883)

74. Este saber que nasce das águas marítimas

Este saber que nasce das águas marítimas,
do eterno jogo da rebentação,
dos gritos que do mar se soltam frios,
o fogo dissimulado a extinguir-se no oceano.

Uma fábrica de areia e sal estende-se para poente,
dissimula-se e ronrona na manhã perdida,
para chegar transfigurada ao cair da noite
e rugir entre dunas e rochas escarpadas.

Trago em mim um filme oceânico,
a memória de todos os barcos que partiram
e deixaram um rasto ultramarino
em cada porto onde nunca aportaram.

Eis a silenciosa solidão da mulher que olha
e traz em cada dedo um anel de algas azuis,
e na mudez dos seus olhos há um cântico,
a vibração de uma onda sussurrada e ofegante.

Este é o mar que nasce na fonte da tua alma,
a sombra e o segredo das tardes de domingo,
quando o vento enfuna as velas eriçadas
e o corpo, navio  à deriva na praia do desejo.

sábado, 13 de julho de 2013

Meditações dialécticas (14) O papel do negativo

Gerhard Richte - Abstraktes Bild (1994)

O atributo da "abertura", antes um produto precioso, ainda que frágil, da corajosa mas estafante auto-afirmação, é associado, hoje, principalmente a um destino irresistível -, aos efeitos não-planejados e imprevistos da "globalização negativa" -, ou seja, uma globalização seletiva do comércio e do capital, da vigilância e da informação, da violência e das armas, do crime e do terrorismo; todos unânimes em seu desdém pelo princípio da soberania territorial e em sua falta de respeito a qualquer fronteira entre Estados. Uma sociedade "aberta" é uma sociedade exposta aos golpes do "destino". (Zygmunt Bauman, Tempos Líquidos(2007), p. 13)

Por uma vez sejamos hegelianos. Observemos o papel do negativo dado no conceito de globalização negativa. Os agentes da negação são enumerados por Bauman: comércio, capital, vigilância, informação, violências, as armas, crime e o terrorismo. Estes agentes não devem ser pensados como negativos apenas porque destroem um modo de vida que, para muitos de nós, era tido como bom e aprazível, porque desfazem uma vida agora sentida como «exposta aos golpes do "destino"». São negativos porque representam a insatisfação do espírito do mundo com o existente e a necessidade sentida de se libertar do mundo construído, das instituições erigidas e já anquilosadas, do ethos particular em que se tem vivido. Este negativo dirige-se contra aquilo que se poderia chamar as universalidades particulares - a mais importante de todas, o Estado-Nação -, contra o seu carácter limitado e, por isso, injusto, contra o conceito de fronteira.

O desafio mais difícil que esta negatividade nos coloca não se prende à compreensão da natureza sórdida da coligação que une o livre-comércio, a circulação de capitais, a vigilância global - vejam-se as denúncias de Edward Snowden -, o crime organizado e o terrorismo, mas ao poder de sedução do passado, à tentação da nostalgia perante um mundo que está moribundo, à tentação de fingirmos que é possível conservar o que está dado, como se ele fosse eterno e não o produto de uma fabricação que, no seu próprio tempo, foi destruidora. A maior das ilusões, às quais o espírito particular dos sujeitos tende a ceder, reside na sedução exercida por uma memória sublimada do que passou. Esta ilusão é, obviamente, o resultado de um mecanismo de defesa perante o sofrimento que a negatividade traz consigo e faz cair sobre o destino dos indivíduos, ao desarticular-lhes o modo de vida onde nasceram e para o qual foram educados.

A desordem mundial em que vivemos - da qual a nossa presente e paroquial desordem política é um mero reflexo - é uma manifestação dessa negatividade do espírito do mundo - para falar à maneira de Hegel -, de um espírito que já não se sente chez soi nas actuais instituições e que parece apostado em fazê-las cair uma a uma. Perante tudo isto, existem várias posições possíveis. A da consciência nostálgica que sonha isolar-se numa utopia conservadora, de carácter narcisista. A da consciência apocalíptica que antevê na acção da negatividade actual o processo de produção do fim do mundo. A da consciência católica (no sentido grego de universalidade e não de uma religião específica) que suspeita na situação actual o caminho de libertação de particularismos e o começo de edificação de novas instituições, agora de natureza universal, onde o espírito poderá, por um momento, repousar como estando em sua própria casa. Esta consciência católica é a mais difícil pois assenta na crença na positividade do negativo, na crença que se funda na suspeita, para a confirmação da qual não abundam provas, que assistimos, mais uma vez e apesar de tudo, a um processo de libertação. Talvez a pergunta primeira que sejamos obrigados a fazer seja: estamos a libertar-nos de quê?

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Reforma do Estado


Vale a pena reflectir sobre um dos aspectos da chamada reforma do Estado. Diz respeito à diminuição do número de funcionários públicos. Esta diminuição está ligada a duas ideias que são facilmente aceites pela opinião pública. Existem funcionários públicos a mais e é necessário que trabalhem mais horas. Qual é o peso do emprego nas administrações públicas nos países da OCDE? Segundo os últimos dados, esse peso é de 15%. Pensará o leitor, tendo em conta tudo o que ouve, que Portugal terá no mínimo 20% da população activa na administração pública. Lamento, mas está enganado. Portugal apenas emprega na chamada função pública 11,1% da sua população activa. Portugal, contrariamente ao que se diz, não tem emprego público a mais. Tem, consideravelmente, a menos. A passagem do horário de trabalho das 35 horas semanais para 40 horas visa reduzir ainda mais o emprego em funções públicas.

Estas opções do governo geram, em muitas pessoas que trabalham em empresas privadas, um sentimento de acordo, uma espécie sensação de justiça. A questão que se coloca, contudo, é se as pessoas que trabalham por conta de outrem, fora da função pública, ganham ou perdem com a passagem das 35 para as 40 horas e com o despedimento de funcionários públicos.

Para lá do sentimento de justiça, qualquer cálculo racional mostra que quem trabalha fora do Estado só tem a perder com estas medidas que afectam a função pública. Em primeiro lugar, porque o horário da função pública é uma espécie de regulador e moderador das pretensões patronais. Se a função pública passar para as 40 horas, haverá lugar para as empresas privadas começarem a exigir horários acima das 40 horas, numa espiral que não se sabe onde acabará, mas cuja ideia reguladora são os mercados de trabalho asiáticos. Em segundo lugar, os despedimentos na função pública vão aumentar a mão-de-obra disponível, a concorrência entre pessoas para cada posto de trabalho criado – se for criado – e, por isso mesmo, fazer diminuir o valor dos salários e das condições de trabalho nas empresas privadas.

Aquilo que pode parecer justo – os despedimentos na função pública e o aumento do horário – não passa de uma artimanha, mais uma, que visa, em última análise, baixar o valor do trabalho fora do Estado. Faz parte de uma estratégia de empobrecimento da maioria da população e de enriquecimento de um pequeno grupo de pessoas. Tem avirtude de nos afastar cada vez mais de padrões civilizados de vida e de nos aproximar das zonas onde o trabalho é quase escravatura. Vamos a caminho do Bangladesh.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Uma arqueologia da paixão política

Lucas van Leyden - The Game of Chess (1508)

Perante a actual crise política e o impacto que ela tem sobre as emoções das pessoas, perguntei-me várias vezes que estranha ligação nos vincula ao desenrolar de um conjunto de acontecimentos que não dominamos, nem no qual temos qualquer possibilidade de intervir com um mínimo de eficácia. Eu sei que há os interesses que se manifestam no palco da política, e que cada um de nós tem os seus interesses particulares, para os quais pretende defesa. Estes interesses são poderosos mas não explicam, por exemplo, a cegueira com que muitos de nós nos entregamos à defesa de um dos lados da contenda política, muitas vezes em contradição objectiva com os seus interesses. Há uma paixão política que ultrapassa, e muito, a relação entre opção política e defesa racional do interesse próprio. Mesmo nas pessoas que tentam olhar com mais frieza e distância a actividade política,  nota-se sempre, mais ou menos disfarçada, uma inclinação para um dos lados.

Enredado nestas meditações, nas peripécias da vida nacional e nas reacções emotivas de muitas pessoas, por norma razoáveis, comecei a fazer a arqueologia do meu interesse pelo fenómeno político, uma coisa que nunca tinha feito. Essa arqueologia tem o poder de reconstruir uma dada história - no caso, privada - e conferir-lhe um sentido que já lá se encontrava, mas que estava soterrado. Nesse escavar da memória, sou arrastado, inopinadamente, para o ano de 1972. Ia a caminho dos dezasseis anos e os meus interesses políticos eram as vitórias do Benfica e o mundial de Fórmula 1, como adepto do Jackie Stewart. Entre Julho e Setembro desse ano dá-se um acontecimento decisivo para a minha ligação à política, o match para a atribuição do título mundial de Xadrez entre Fischer e Spassky. Não sabia nada de Xadrez, mas aprendi a jogar e acompanhei os resultados, torcendo pelo americano contra o russo. 

É a paixão pelo Xadrez que me vai conduzir ao Cine Clube de Torres Novas, onde o jogo era praticado. Quem conhece a história dos Cine Clubes percebe de imediato onde é que entrei. O Cine Clube de Torres Novas era uma associação composta, na sua generalidade, por oposicionistas ao regime. A paixão pelo Xadrez logo deu lugar à paixão pela política. Na verdade, foi uma espécie de transfert. Como no desporto, a política é composta pelos nossos e pelos que são contra os nossos. A irracionalidade original é depois trabalhada e intensificada pela razão e justificada a posteriori. É esta paixão originária que torna o diálogo entre pessoas de paixões contrárias impossível. Não há forma de convencer o outro de que os seus são piores que os meus. Este exercício arqueológico tem um efeito dissolvente: faz-nos ver a risibilidade das nossas opções, a sua fragilidade. A partir dele tornamo-nos mais sábios, mas ao mesmo tempo mais cínicos. Se ainda alguma fé restar da velha paixão, ela desaparece perante o prazer de ver o desenrolar do jogo político como (sublinho o como) se estivesse fora dele.

Aqueles que agora esbracejam e arrancam os cabelos pela pátria dorida e sofredora, muito preocupados com as reacções dos mercados, mais valia que pusessem de lado a crise de histeria, a paixão pelo seu clube, e observassem o talento dos vários players. Toda a gente sabe, embora todos nós finjamos que não e afirmemos a pés juntos que não, que a política pouco tem a ver com o essencial das nossas vidas. Assistamos, com prazer estético redobrado, aos lances onde os protagonistas tentam pura e simplesmente derrotar e humilhar os concorrentes. É isso que está em jogo. A única coisa a lamentar, na verdade, não é o descalabro da pátria - esse existe com ou sem política, pois é o nosso descalabro - mas a falta de qualidade dos jogadores. Mas isso é defeito de quem cresceu a ver jogar gente como Mário Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal ou mesmo Freitas do Amaral. Dificilmente é capaz de apreciar um Passos Coelho, um Seguro ou aquela gente bondosa que dirige o BE e o PCP. Portas é um grande jogador e Cavaco, ao lançar o país na confusão total, esteve ao seu melhor nível. 

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Poema 73 - Creio nas manhãs azuis sobre a cidade

George Grosz - Manhã Azul (1912)

73. Creio nas manhãs azuis sobre a cidade

Creio nas manhãs azuis sobre a cidade,
na desolação de quem passa
e traz nos olhos uma cortina de fogo,
nas mãos, o sangue frio da noite.

Toda a minha fé está nesse jardim:
Árvores cariadas, folhas mortas,
o braço decepado de uma roseira,
o suor que te mancha o vestido.

Exacto e azul, o meu sentimento
cresce no vazio, transborda e canta.
E tudo se move empurrado pelo vento:
O dia, as lágrimas, a sombra sobre a terra.

terça-feira, 9 de julho de 2013

O reforço da coligação

Carlos Orozco Romero - O protesto (1939)

O Presidente da República ainda não concluiu a audição dos partidos, mas não dispõe já de qualquer margem de manobra para fazer outra coisa que não seja aceitar o acordo entre Portas e Passos Coelho.  Os mercados, o Ecofin e os alemães, a verdadeira fonte de legitimidade, já abençoaram o governo. A questão que se coloca agora é a seguinte: a coligação sai, de toda esta tramóia, enfraquecida ou reforçada? Parece óbvio, apesar daquilo que os comentadores sublinham, que a coligação no poder sai muito reforçada. Não porque tenha deixado de haver motivos para atritos e que tudo esteja agora bem. Pelo contrário, a situação entre os partidos do governo tornou-se mais sombria e as relações pessoais mais tensas. Como é que, neste cenário, se pode afirmar que a coligação sai reforçada?

A crise tornou patente aquilo que toda a gente sabe. Não existe, aos olhos da opinião pública, uma clara alternativa política que possa avançar para a governação do país. A esquerda está fracturada, como é hábito, e sem pontos de contacto entre si. Seguro é uma personagem política ao nível de Passos Coelho, nem melhor nem pior, o mesmo vazio, a mesma impreparação, o mesmo desconhecimento da realidade. Quer eleições apenas para ser ele primeiro-ministro, mas, na verdade, não tem nada para dizer ou fazer que seja diferente daquilo que se está a fazer. Aspira a uma maioria absoluta porque sim, mas se não a obtiver governará, com aquele ar de sacristão, com a direita. Talvez aspire a ser ovacionado numa próxima missa do Cardeal Clemente.

Quanto ao BE e ao PCP pouco há a dizer. Podem até valer 30% do universo eleitoral (vão nos 22 a 23%), mas não têm nada para dizer que seja audível para além do universo do protesto. É esta divisão na esquerda que reforça a coligação no poder, mesmo que as pessoas que a constituem se odeiem e se atraiçoem todos os dias. O trágico é que as pessoas sabem que o actual governo as irá imolar sem dó nem piedade, como o tem feito até aqui, mas também sabem que não existe uma alternativa política séria à imolação dos inocentes. Pensam que morrer sob o cutelo de Portas e Passos ou sob o punhal assacristoado de Seguro lhes é indiferente. Por isso não deram, nem darão, um passo para que sejam convocadas eleições. Com o calor que está, mais vale ir para a praia. A impotência da esquerda, motivada pelas suas eternas divisões orgânicas, tornou a direita inimputável. Pode fazer as cabriolices que lhe apetecer.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Os mortos que ninguém chora

Jacob Lawrence - They were very poor (1940-41)

A primeira saída de Roma do Papa Francisco foi para se dirigir à ilha de Lampedusa, a ilha que serve de porto de abrigo a milhares de imigrantes vindos do Médio Oriente e do Norte de África. Muitos desses imigrantes morrem em naufrágios. São os mortos que ninguém chora. O Papa lembrou-se deles, lembrou-se dessa gente que, por certo, não será católica, gente que ninguém quer. E lembrou-se de uma outra coisa, da necessidade de despertar as consciências para combater a globalização da indiferença.

Em princípio a Igreja não faz política, em princípio. Mas quando se escolhe chorar os mortos que ninguém chora ou afirmar a necessidade de combater a globalização da indiferença, está-se a tomar posição. Como se toma posição quando, como aconteceu ontem nos Jerónimos, numa primeira missa se é rodeado pelo poder, pelos agentes nacionais da globalização da indiferença. 

Gostava muito que em cada bispo da Igreja Católica houvesse um Papa Francisco. Não para afrontar quem quer que seja, mas para chorar os mortos que ninguém chora, para lembrar que, na miséria mais extrema, também está presente a humanidade e, segundo a crença dos cristãos, a imagem e a semelhança de Deus. Para lembrar que pode haver outro caminho político que não a globalização da indiferença (uma potente imagem de crítica política). 

domingo, 7 de julho de 2013

Os nossos

Henri Rousseau - The Football Players (1908)


Os tempos estão perigosos. O texto de Pacheco Pereira é, como tem sido habitual nos último tempos, muito lúcido e retrata a perigosa situação onde nos encontramos. Um sinal muito preocupante veio, inesperadamente, da primeira missa celebrada pelo novo Cardeal Patriarca de Lisboa. Parte substancial do regime estava presente, fundamentalmente gente ligada à direita, mas não só. D. Manuel Clemente, mas também Cavaco Silva e Passos Coelho foram recebidos, nos Jerónimos, com ovações. Ao ler isto fiquei perplexo e muito preocupado.

Deixemos de lado a ovação a D. Manuel Clemente (seria dispensável, pois um cardeal não é um artista, um toureiro ou um jogador de futebol, mas enfim...), as ovações ao Presidente da República e ao primeiro-ministro são um sinal claro do ambiente em que se vive e que traz o cheiro de alguma coisa muito perigosa. Ninguém tem dúvidas de que ambos são, hoje em dia, personagens medíocres, responsáveis por muitos dos males que acometem os portugueses. Por que motivo foram, então, aplaudidos? O motivo está todo ele explicado no excerto, em epígrafe,  de Pacheco Pereira. O que assistimos foi a um triste, porque numa Igreja e como antecipação da celebração da liturgia cristã, episódio de luta de classes. Cavaco Silva e Passos Coelho são dos "nossos", defendem-nos dos outros, daqueles que não têm lugar aqui, daqueles que desprezamos e que, na verdade, odiamos e tememos.

Não sei o que ficou a pensar D. Manuel Clemente, mas se não for destituído de lucidez política terá percebido que o que se passou nos Jerónimos foi de uma grande gravidade. Mostrou a temperatura do rancor político que existe neste momento em Portugal. Não são apenas os perdedores - as classes baixas e médias - que têm rancor. O desprezo, o ódio, o medo também existem nos de cima, ou naqueles que estão sempre disponíveis para os suportar. E ele manifestou-se nestas simples ovações. 

Espero que o novo Cardeal Patriarca tenha percebido que a sua própria homilia - dando o exemplo das gentes do norte - está pura e simplesmente descontextualizada da realidade do país. Se o não perceber, corre o risco de se tornar impotente para ajudar a conjurar a tragédia que se aproxima, corre o risco de deixar arrastar a Igreja portuguesa para essa tragédia. "Os nossos" significa sempre um excluir dos "outros", neste caso daqueles que não têm pedigree social, nem político, nem são monárquicos, nem afortunados. Aquelas ovações são um sintoma da tempestade que se aproxima. Diria mesmo que são sinais dos tempos. E os tempos, senhor Cardeal, estão perigosos, muito perigosos.

sábado, 6 de julho de 2013

A infâmia

Katsushika Hokusai - Prostituta e cliente (1811)

Quando reparei, logo nos primeiros tempos, que este governo se apresentava em público sempre de bandeira de Portugal na lapela, duas coisas vieram-me ao espírito. A primeira, a célebre frase de Samuel Johnson, um crítico e jornalista inglês do século XVIII, o patriotismo é o último refúgio de um canalha; a segunda foi a pergunta que graves patifarias políticas, sociais e económicas contra os portugueses está esta gente a preparar? Não vale a pena fazer aqui a história destes desgraçados dois anos. A última semana foi o corolário de uma governação que perseguiu os portugueses desde a primeira hora. Um exercício continuado de patifaria política contra as classes médias e populares. Mas uma patifaria que destruiu o país como o reconhece Vítor Gaspar, um dos génios do descalabro, quando decidiu sair do barco naufragado.

Apesar de tudo isto ser infame, a infâmia cresceu exponencialmente na última semana, com o espectáculo desencadeado pela demissão de Paulo Portas.  Tudo o que os portugueses são obrigados a assistir, todo este deprimente espectáculo das conversações entre Coelho e Portas, com as visitas a Belém, atingiu proporções inimagináveis. No centro deste infame espectáculo está a figura do Presidente da República (PR). Apresentada a demissão de Paulo Portas, a única coisa que havia a fazer era a audição imediata dos partidos políticos e do Conselho de Estado, a dissolução do parlamento e a convocação de novas eleições. O PR prestou-se porém a este espectáculo, suscitou-o a partir do momento que empossou Maria Luís Albuquerque, exigiu-o depois de Passos Coelho. Mesmo que venha a dissolver o parlamento, o que é absolutamente inverosímil, estará indelevelmente ligado a todo este espectáculo dado pela direita portuguesa. A partir de ontem, teremos uma intensa campanha de mentiras tentando sublinhar a sensatez e o patriotismo dos intervenientes nesta infâmia. Que ponham duas bandeiras de Portugal, uma em cada lapela, e que a tatuem na testa. De facto, o patriotismo de certa gente...

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Como foi possível?


Escrevo depois de ouvir a patética declaração do primeiro-ministro. Repeti a pergunta que faço muitas vezes: como foi possível chegar a um ponto em que entregámos a governação do país a gente tão imatura e irresponsável? Não sou contra os partidos políticos. Sem eles não há democracia, pelo menos nos moldes a que estamos habituados. Mas não deixa de ser extraordinário que os partidos políticos tenham uma capacidade inesgotável de promover gente medíocre. Esta mediocridade infantil não permitiu ao governo, com uma ou outra excepção, perceber o país em que se vive. 

Todo este imbróglio não se deve ao mau génio do Dr. Portas nem à maldade do Prof. Gaspar. Isto nasce da tontice, de todo o governo e da União Europeia, de querer, de um dia para o outro, transformar um país envelhecido e muito fragilizado socialmente, com diminutas competências, com pouca capacidade de iniciativa, com uma cultura de compadrio e de nepotismo, com uma dose de irresponsabilidade social e individual grande, num país liberal, onde seres racionais e autónomos gerem a sua vida sem dependências do Estado. Este desejo do governo de Passos Coelho é mais infantil do que os meus delírios de teenager revolucionário, nos anos setenta do século passado. 

Uma sociedade liberal deve ser um ideal regulador da acção política e da conduta moral. O que significa,  na verdade, uma sociedade liberal? Significa que os indivíduos que a compõem têm a capacidade de gerir autonomamente o seu destino, que são dotados de iniciativa suficiente para poderem enfrentar os infortúnios da existência, que as suas capacidades de decisão racional estão educadas. Isto, porém, é um ideal. Portugal não é assim, por isso os indivíduos precisam de mecanismos de protecção que só o Estado pode actualmente fornecer. 

Quando estes mecanismos são destruídos politicamente por um suposto programa liberal, não é o liberalismo que nasce, não é o espírito de iniciativa que cresce, nem são as decisões racionais que triunfam. O que triunfa e cresce é o medo, o desespero, a vergonha, mas também a corrosão do carácter, a batota, o salve-se quem puder. E são estes factores que estão a gerar este conjunto de furacões políticos que se abatem, inexoravelmente, sobre agentes governativos impreparados, cheios de preconceitos ideológicos e absolutamente impotentes perante uma realidade que, na verdade, desconhecem. Para que o mal ainda seja pior, Portugal tem a pouca sorte de ter em Belém Cavaco Silva, o maior responsável político pelo estado a que se chegou. 


Como foi possível? 

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Poema 72 - Estranhos poderes os do corpo

Francis Bacon - Studies from the Human Body (1970)

72. Estranhos poderes os do corpo

Estranhos poderes os do corpo.
Dançam ao sabor do vento,
crescem na primavera
e abandonam-se no outono.

A súbita geografia de uma dor,
o pulsar anoitecido do coração,
o destino vazio do sangue:
leve, enlouquecido, leviano.

Sucumbo ao desejo insinuado,
ao latejar das horas no ventre,
ao ardor que se incendeia no olhar.
Pobres poderes os do corpo.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

A demissão de Paulo Portas "for dummies"

Francisco Arjona - ¡Adelante con la duda! (1985)

Perante a demissão de Paulo Portas, depois do choque sentido, convém fazer um exercício de racionalização e compreender aquilo que se está a passar. Os pressupostos de onde se parte são os seguintes: a) os agentes políticos são racionais e tomam decisões racionais que melhor servem os seus interesses políticos; b) em situações críticas, como a que vivemos, os interesses dos agentes políticos têm em conta o interesse comum, tal como este pode ser percepcionado pela maioria da opinião pública, caso contrário, o interesse do agente político será cilindrado por essa mesma opinião pública; c) a análise que se vai fazer é meramente especulativa, correndo o risco de ser rapidamente desmentida, mas é independente das preferências pessoais de carácter ideológico-político.

1. Razões da demissão: a) a nomeação de Maria Luís Albuquerque para o cargo de ministra das Finanças não é uma razão da demissão de Paulo Portas, mas um mero e muito útil pretexto; b) a razão número um que levou à demissão reside no compromisso que Portas tinha de apresentar o guião para a denominada reforma do Estado. Pura e simplesmente, o líder do CDS-PP não quis associar o seu nome a uma tragédia inominável e ficar com o ónus desse conjunto de medidas; c) a fragilidade política do governo, o isolamento do primeiro-ministro, a ausência de um consenso social mínimo anunciavam uma segunda parte da legislatura muito penosa para a maioria, sem que o CDS-PP conseguisse demarcar-se do governo. A estratégia da demarcação, habilmente usada por Portas até aqui, tinha chegado ao fim; d) a terceira razão está ligada ao momento político europeu, ao timing, digamos assim, das eleições alemãs. Portas deve ter compreendido que a política de austeridade na Europa não tem futuro e, se o tiver, vai acabar por destruir a União Europeia. Por que motivo haveria de ficar ligado, como o pai da reforma do Estado, a decisões que acentuam a política actual? Politicamente prudente será esperar para ver o que acontece na Alemanha, e Portas decidiu dar a si e ao país o compasso de espera necessário; e) por fim, comprometer, na solução futura, que será sempre penosa, o Partido Socialista, alargando a base de apoio do governo, e isso só se consegue através de eleições antecipadas.

2. Riscos estratégicos: a) convulsões sociais: período pouco propício a convulsões sociais e a existência de eleições antecipadas diluirá ainda mais esse risco, canalizando para o voto o protesto social, que com a queda do governo fica sem alvo; b) convulsões políticas: algum crescimento do PCP e do BE, mas irrelevante para os objectivos do arco da governação. Mesmo com votações na ordem dos 40% (coisa absolutamente impensável), o peso político da esquerda à esquerda do PS é, nos tempos que correm, diminuta, como se viu na Grécia; c) derrapagem da dívida: acontecerá, mas aconteceria na mesma com o governo em funções e a coligação em harmonia, pois a derrapagem combina elementos estruturais com elementos conjunturais, políticos, que, devido à ideologia dominante, tendem a emergir como estruturais; d) reacção dos parceiros da UE: devido à pressão política da Alemanha e da Europa do Norte, o compasso de espera poderá acabar por ser inútil, mas aí Portas não fica sozinho com o ónus e leva com ele o PSD e o PS; e) destino pessoal: Portas já percebeu que nunca chegará a Presidente da República, pelo menos com o apoio do PSD, resta-lhe a hipótese de sair da política como sendo aquele que restabeleceu as pontes entre o arco governativo e criou as condições para uma espécie de "união nacional"; o risco reside numa maioria absoluta do PS que o tornará dispensável.

3. Derrotados e vitoriosos: a) Passos Coelho é o primeiro derrotado, pois perdeu qualquer condição para governar, tornou-se cadáver político à procura da sua própria morte; b) Cavaco Silva é o segundo grande derrotado. Portas fez aquilo que Cavaco foi incapaz de fazer e mostrou que Cavaco não tem autoridade, nem saber nem perspicácia política para o cargo que desempenha; c) António José Seguro é o terceiro derrotado. Ele pedia há tempos eleições, mas era para inglês ver. Agora vai ser obrigado a ir a jogo e pôr as mãos na massa, vai ser obrigado a comprometer-se, o que é sempre uma enorme chatice; d) PCP e BE também estão longe de poder cantar vitória, pois vão ter de explicar como tirariam o país desta situação e vão ser confrontados com a sua votação; e) Paulo Portas escolheu entre ser um derrotado ficando no governo, sendo obrigado à rábula da reforma do Estado, ou abrir uma nova situação onde talvez, sublinho o talvez, ainda possa ter uma palavra a dizer numa saída para o país. O gesto de Paulo Portas tem alguma grandeza trágica, aliou o seu destino pessoal ao destino do regime: salva-se se o regime se salvar e encontrar uma nova plataforma que permita ao país sair da situação onde se encontra.