quarta-feira, 30 de junho de 2021

Simulacros e simulações (25)

Ilse Bing, Self Portrait with a Mirrors, 1931

Duplicara-se para poder percorrer a distância que ia de si a si. Quando chegava à sua simulação, sentia uma súbita saudade de si. Retornava. Chegada, a melancolia invadia-a por se ter apartado do seu simulacro. Quando se cansou das viagens rasgou a imagem que de si fizera. Mal os pedaços caíram no chão, sentiu-se perdida, como se a alma a tivesse abandonado.

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Decepções

Romeo Mancini, Apocalisse, 1964

Basta olhar para evolução dos números da pandemia para compreender como os portugueses – uma parte deles, claro, mas uma parte significativa – gostam de ser governados e, infelizmente, parecem precisar. Sob a mão-de-ferro dos confinamentos, tornam-se o povo mais disciplinado do mundo. Devolvida a liberdade, aliviada a vigilância, a indisciplina vai crescendo até atingir patamares perigosos. Não sei o que é mais decepcionante, se a incapacidade de muitos portugueses de sair dessa menoridade de que são culpados, para citar Kant, se a capacidade do governo para crer na fantasia que lidera um povo que se orienta pelos princípio racionais herdados do Iluminismo. Valha-nos Santa Angela Merkel.
 

sábado, 26 de junho de 2021

Nocturnos 63

Walter Sanders, Hamburg Essay, 1951

Há noites onde se adensa o mistério do mundo. Outras há em que tudo se torna transparente, mesmo aquilo que se mascara com o véu do enigma, mesmo o que se sussurra como segredo, seja o motivo que leva os homens correr para um destino desconhecido, seja o que leva uma mulher a atravessar a rua, quando não há, no outro lado, que a espere.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

A Garrafa Vazia 63

Markus Luepertz, Abrigo I. Ditirámbico, 1972
Com o alicate do tempo,
aperto os dedos
até o sangue romper a pele.

Vejo-o cair, uma mancha
no chão,
uma sombra na crosta do dia.

Imploro ao tempo que pare,
a dor grita
nesse sangue que me foge.

E o tempo passa veloz, rindo-se
do pobre pescoço
preso ao furor do garrote.

Junho de 2021

terça-feira, 22 de junho de 2021

A persistência da memória (3)

John Gutmann, Goodbye Berlin, 1933
Talvez o ano de 1933 tenha sido um mau ano para ficar em Berlim, mesmo para pássaros indiferentes aos negócios humanos. Tudo se terá tornado mais escuro, mais tenso, mais insensato. O ar era, então, irrespirável, mesmo se a multidão se tomava de alegria. É possível que as aves ao pressentir não a alegria dos homens, mas a da multidão, sintam uma angústia apossar-se do seu pequeno coração e fujam para longe, quanto mais longe melhor.

domingo, 20 de junho de 2021

Descrições fenomenológicas 66. Paisagem industrial

Gerardo Rueda, Bardala, 1961
O céu tinha desaparecido tragado por nuvens cada vez mais espessas de fumo. Das chaminés, pintadas de branco e vermelho, saíam baforadas contínuas onde o cinza suave e o chumbo pesado se misturavam para deixar um rasto de tristeza no horizonte. Dentro das grandes fábricas haveria, por certo, pessoas, muitas pessoas, mas fora delas não se via ninguém, como se todos tivessem sido capturados por um inimigo feroz ou alguma feiticeira irascível as houvesse enfeitiçado para as fazer desaparecer. Ao redor dos grandes edifícios o deserto progredia. Há muito que as plantas se tinham recusado a crescer ali. Também os animais, temendo o que se escondia sob a capa volátil do odor, teriam emigrado. Quem chegasse ao nosso planeta naquele instante e nada soubesse sobre ele, não imaginaria, ao ver o fluir do fumo, que ali se temperava o ferro para se transformar em aço. Olhasse-se para que lado se olhasse, a sensação era sempre a mesma. Uma viva opressão nascida das inúmeras fábricas, que nunca se cansavam de expelir fumarolas, pequenos vulcões ameaçadores. Por vezes, ouviam-se sirenes. Outras, passavam grandes camiões carregados. O que nunca parava, porém, era a azáfama no interior dos grandes edifícios. Os olhos procuravam uma ou outra mancha de verde, mas nunca a encontravam e perdiam-se num mundo de cinzas e desolação.
 

sexta-feira, 18 de junho de 2021

A iniciativa da Iniciativa Liberal


Não vale a pena falar do arraial que a IL decidiu promover em Lisboa. Fique-se pelo pormenor da barraca do tiro-ao-alvo aos adversários políticos. O partido, perante a repulsa de muita gente, argumentou que era uma brincadeira e como era uma coisa liberal, ninguém devia levar a mal. Qual é a mensagem da brincadeira? Simbolicamente, devemos matar os adversários. Faziam parte do alvo políticos de esquerda e, já na parte exterior, também Rui Rio e, salvo erro, Carlos Carreiras, ambos do PSD, talvez para disfarçar. Caso curioso é André Ventura ter sido poupado à morte simbólica. Também a IL tem uma nostalgia, mal disfarçada, pelo tempo em que a esquerda em vez de estar no parlamento e no governo, estava nas prisões políticas, na clandestinidade, no exílio ou debaixo de terra.

Este episódio veio mostrar mais uma vez a realidade portuguesa. Não existe, efectivamente, um espírito liberal. Quando emergem grupos de pessoas, ou partidos, que se dizem liberais isso significa, quase sempre, uma inimizade aos direitos dos trabalhadores, à existência e papel dos sindicatos, ao Estado social, a tudo o que proteja os mais desfavorecidos e as frágeis classe médias nacionais, mesmo quando se propõe a substituição do Estado na protecção das pessoas pela iniciativa privada, com a inevitável busca de lucro e a pouca preocupação com a protecção. A defesa de um feroz liberalismo económico raramente é acompanhada por ardor idêntico na do liberalismo político. Este parece ser uma coisa que tem de se suportar, enquanto não houver uma melhor solução, ou enquanto essa solução não tenha força para se impor. Falar em liberais portugueses não passa de um equívoco.

Por outro lado, o episódio do tiro-ao-alvo, e a subsequente desvalorização, inscrevem-se numa estratégia que os sectores mais radicais estão apostados há muito. Destruir os laços de convivência cívica entre pessoas que pensam de modo diferente, substituir adversários políticos por inimigos políticos. Trespassar com dardos, mesmo num jogo de arraial, as figuras dos adversários é desencadear um ritual mágico onde se mata simbolicamente as pessoas alvo. É apelar ao fundo inconsciente e tenebroso que existe em cada um de nós, é dar-lhe possibilidade de se tornar público. Um espírito liberal, enraizado nos valores da razão e do Iluminismo, detestaria este tipo manipulação das forças tenebrosas existentes nos seres humanos. Isso, porém, pressupunha que em Portugal existisse um espírito liberal. Não há.

domingo, 13 de junho de 2021

Nocturnos 62

Milton Greene, Marilyn Monroe “The Black sitting”, 1956
Como se levada por uma ânsia de luz, ela tenta libertar-se do peso da escuridão. Dá um passo, mais outro e ainda um terceiro. Logo a tentação lhe inclina o olhar que, habituado à noite, se volta para trás e arrasta com ele todo o corpo para o lugar de onde acabara de sair.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

A Garrafa Vazia 62

Willem de Kooning, 24 dibujos con los ojos cerrados, 1966
Bebo o vinho azedo
da paixão
de cada hora.

O corpo estremece
ao sabor
do vento da irrisão.

Nem pródigo sou
como filho
bastardo de mim.

Ergo do chão o copo
e deixo cair
a garrafa vazia.

Junho de 2021

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Simulacros e simulações (24)

Ho Fan, Pattern, 1956

Um homem caminha preso à existência. Leva a vida às costas. Ela vai adormecida no fundo da cesta, sem dar por ele, aquele que lhe dispensa, em cada dia, todas as suas horas. Na parede, o homem nem repara, desenha-se, numa simulação geométrica, um mapa de luzes e trevas. É essa carta que guia, mesmo na sua ignorância, a existência onde o homem que caminha se prende com a vida às costas.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

O progresso moral da humanidade (2)

John Gutmann, Artillery on Market Street, San Francisco, 1934
Durante anos, a espécie pode sentir-se feliz por se eximir aos trabalhos da guerra. O sangue enjoou-a, a dor tolheu-lhe o entusiasmo. Com o passar dos anos, a memória do horror dissolve-se, o enjoo passa e volta o velho entusiasmo de quem se extasia perante as marchas militares e o canto dos feitos de guerra. Exige então o sangue que em tempos a enjoara e o desejo de aniquilar o outro é o único que lhe parece ter sentido. A memória do mal é sempre um escudo precário para o desvario dos instintos.

sábado, 5 de junho de 2021

Os ingleses, o PSD, o Brasil e a senhora Merkel


A invasão inglesa. Depois da impotência no controlo nos festejos dos adeptos sportinguistas, tivemos agora direito à invasão inglesa, motivada também pelo futebol. Adeptos do Chelsea e do Manchester City acharam por bem eximir-se ao cumprimento das regras a que os cafres estão sujeitos. As autoridades, por seu turno, decidiram apostar na falta de comparência. Não me refiro à polícia, claro. Refiro-me aos responsáveis políticos. Talvez tenham tido medo de pôr em causa a mais velha aliança do mundo ou então recearam um novo ultimato inglês. Se foi um destes casos, só podemos louvar o talento político do Ministro da Administração Interna, caso tenhamos um.

A zanga do PSD. Decorreu mais um congresso do Chega, um partido político dirigido por um candidato a pastor evangélico. Consta que o espectáculo não foi edificante. O mais notável foi a zanga do PSD. Durante os dias de congresso, o PSD e Rui Rio foram bombos da festa. Como quem não se sente não é filho de boa gente, o PSD sentiu-se, zangou-se e não foi ao encerramento do congresso. Ora, o PSD anda tão embevecido com a nova maravilha que ainda não notou que o grande inimigo do Chega é o próprio PSD. O partido de Ventura não tem qualquer capacidade para penetrar no eleitorado de esquerda. Como o CDS é uma sombra fantasmática do que foi, resta ao Chega tentar devorar o PSD, para liquidar a direita democrática. Costa ri seráfico, mas o riso de Costa é tão idiota quanto a normalização do Chega empreendida pelo PSD.

Talvez esteja a acordar. Refiro-me ao Brasil. Depois de terem eleito Bolsonaro, um político completamente impreparado e que vive num universo paralelo, dominado pelas mais extraordinárias fantasias, os brasileiros começam a perceber o preço da brincadeira. A gestão da pandemia é apenas o caso mais notório de um descalabro com consequências nacionais e internacionais, devido ao peso que o Brasil tem no mundo, bem como a floresta da Amazónia, uma das vítimas do bolsonarismo.

Um problema para a Europa. Em breve, Angela Merkel abandonará o cargo de Chanceler. De todos os políticos democráticos do mundo ocidental, ela é a mais consistente, a mais estruturada, mas também a mais humilde e sóbria. Ela é, por outro lado, um exemplo de líder que acredita nos valores democráticos. Nunca tergiversou sobre eles, nunca se aliou com o diabo – isto é, a extrema-direita – por uma questão de poder. Nunca abandonou os princípios, mesmo quando isso poderia ter consequências para o seu poder. Aqueles que acreditam na democracia liberal e no projecto europeu vão ter muitas saudades da senhora Merkel.

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Baixos padrões


Segundo o Público, Dominic Cummings, antigo conselheiro de Boris Johnson, terá afirmado, referindo-se à pandemia de COVID-19: “A verdade é que os ministros de topo, os funcionários de topo e os conselheiros de topo, como eu, ficaram desastrosamente aquém dos padrões que a população tem o direito de exigir ao seu Governo durante uma crise desta natureza. Quando a população mais precisou de nós, o Governo falhou”. A declaração de Cummings alerta para um facto curioso que está a ocorrer nas democracias ocidentais. Ao mesmo tempo que cresce o escrutínio dos governos, devido às redes sociais, cresce uma espécie de complacência com as más decisões, os erros ou a cegueira dos governos. Os governos aprenderam a lidar com o ruído dessa opinião pública e esta, apesar da sua virulência palavrosa, foi apanhada numa rede que lhe tolhe o espírito crítico.

As palavras de Dominic Cummings sublinham outra questão. A governação deve estar a cargo de uma elite. Democrática, no seu acesso, mas uma elite. Quem governa deve pautar-se por elevados padrões, submeter-se a uma apertada disciplina e a uma grande exigência no cumprimento das suas tarefas de governação. Há ‘padrões que a população tem o direito de exigir do seu governo’. Isto parece ter sido esquecido tanto por governantes, como por governados. Generalizou-se a ideia de que a governação e os altos cargos do funcionalismo pertencem aos medíocres, desde que sejam hábeis manobradores dos eleitorados ou se acolitem sob o guarda-chuva de um manobrador eleito.

Uma leitura apressada poderá julgar que o problema terá a ver com o regime democrático. Haverá quem ache que um regime autoritário traria um mais alto padrão de elites governamentais. Na verdade, aquilo a que estamos a assistir é um problema que toca as democracias, mas não torna as soluções autoritárias melhores. O que se passa com a democracia e o crescimento dos baixões padrões de governação estará relacionado com o fenómeno da polarização política que se tem desenhado nas democracias ocidentais, devido ao crescimento do populismo de cariz autoritário. Os eleitores deixaram-se capturar por uma lógica tribal e avaliam as governações apenas pelo facto de serem ou não da sua tribo política. Tudo aos da sua tribo é perdoado, nenhum mérito, por maior que seja, é reconhecido a políticos provenientes da tribo inimiga. O resultado, para além da crescente tensão, é o da proliferação da mediocridade e os baixos padrões que os governantes têm a oferecer às suas populações. Nas situações de catástrofe, tudo isso se torna dolorosamente visível.

terça-feira, 1 de junho de 2021

A Garrafa Vazia 61

Caspar David Friedrich, A Mountain Peak with Drifting Clouds, 1835
Canto, a voz rouca,
o ritmo pausado,
não a desdita
mas o fausto,
o ressoar da derrota.

Canto pelas ruas,
cabeça caída,
o andar manco
de quem vive
na escarpa da desordem.

Maio de 2021